Arquivo da Categoria: Fernando Venâncio

A culpa do Mello

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Quando o major Vítor Pinto vê passar na rua uma criança descalça, fica com raiva ao senhor Jorge de Mello porque acha que é por culpa dele que há crianças descalças na rua. Esta característica, substância de uma maneira de ser da esquerda em Portugal, entremeia com uma segunda característica, substância de outra maneira de também o ser. Quando o major Vítor Pinto vê passar na rua o próprio senhor Jorge de Mello dentro de um BMW novo em folha, torna a ficar-lhe com raiva porque acha que é por culpa dele que os majores divorciados não podem aspirar a mais que Escorts em segunda mão.

A. B. Kotter (José Cutileiro), «Bilhetes de Colares», Semanário, 10 de Dezembro de 1983

Quanto se sabe, o «major» é figura ficcionada. De resto, a citação nada tem a ver com o livro acima, que está aí à míngua de fotografias do empresário.

Litania para um domingo de Lisboa

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Dizem que é domingo
a graça desce
em seus roucos paramentos
e as gentes passam rebocando o tédio
o coração afeito à fuligem
que se derrama pelos vãos das coronárias

cobre a ferrugem
promessas de vão futuro
gravemente a natureza
(que é sempre verdadeira)
faz-se espelho de ausências

talvez seja domingo
com seu branco morno tinto
e seus pretos e seus ritos
e algum brando desatino

e desarvora o deus
a infindável rebentação
que sacode praias e ilhas
souvenir que me levasse
pela mão da sorte
aos céus dos anos moços

talvez seja outra vez domingo
na solidão vigiada pelo olhar da filha
pela cinza que enluva silos e guindastes
pelo metal da mágoa
atravessando os poços da alma

quisera já as penas de segunda
o débito que vence de rasgão
pois há sempre quem traz a alma
enroscado ao aro da incerteza
confiado que a manhã estende
uma carta de rumos até onde
o domingo é um tropo esvanecendo-se
num débil rufar de cinzas

José Luiz Tavares

«Os pequenos pides do PS»

Na última página do «Público» de hoje, o cronista Vasco Pulido Valente expõe o que se passou recentemente no Centro de Saúde de Vieira do Minho, e rememora o caso Charrua. Suponho os detalhes conhecidos. Reproduzo a segunda parte da crónica do historiador.

A moral da história é simples: o PS, que os portugueses se habituaram a ver como o defensor da liberdade e da democracia, não passa hoje de um partido intolerante e persecutório, que age por denúncia (aqui como na DREN) e tem uma rede potencial de esbirros, pronta a punir e a liquidar qualquer português por puro delito de opinião. Pior ainda, personagens como Correia de Campos colaboram pessoalmente nesta lamentável empresa de intimidação. Não admira. Nem o eng. Sócrates nem o dr. Cavaco manifestamente compreendem que a repressão da dissidência e da crítica começa a corromper o regime e torna inevitável o futuro “saneamento” dos “saneadores”. O silêncio de cima encoraja o miserável trabalho de baixo. Em Portugal, a colaboração do Estado com os pequenos pides do PS já não é uma vergonha.

«O caso Fernando Charrua»

Do artigo de A. Marinho e Pinto hoje no Público:

«O primeiro-ministro certamente não ignorará o que dele se dirá no quartéis, nas salas de professores das escolas, nos hospitais e, em geral, nas repartições públicas do país. E, nem por isso, daí vem nenhum mal especial para o funcionamento dos órgãos do Estado e da administração.

«Em contrapartida, o procedimento disciplinar instaurado ao professor Fernando Charrua será (sobretudo se acarretar qualquer sanção) um convite à generalização da delação entre os funcionários públicos.

«Há no aparelho de Estado, sobretudo na administração pública, pulsões liberticidas e de delação que urge combater. Essas pulsões têm as suas raízes na cultura dominante no Estado Novo. O que havia de pior nesses tempos de tirania não era a actuação repressiva das polícias ou de outros organismos de vigilância e protecção do regime. O que havia de pior era, precisamente, a existência dos “informadores”, dos “bufos”, ou seja, de pessoas aparentemente normais, que se sentavam à nossa mesa, que entravam nos nossos gabinetes e até nas nossas casas, com quem por vezes se tinha conversas reservadas e até íntimas, mas que, depois, traiçoeiramente, pela calada, iam comunicar essas conversas à polícia ou aos superiores hierárquicos.

«É essa actuação ignóbil, é, em suma, essa imensa ignomínia, que urge banir definitivamente da sociedade portuguesa e da administração pública.»

O garfo

Era um restaurante com alguma distinção, mas ele insistia em dizê-lo ‘de bairro’.
Limpou o garfo ao guardanapo, gesto muito seu, e disse:
– Não é, já vês, o tipo de relação que nos convém.
Eu esperava algo assim, após dias sem um telefonema.
Vínhamos naquilo há meses. Era o divórcio deles, era o reatamento deles, eram os sogros deles, tudo a atrapalhar.
– Lá por isso… – fiz eu, quase tão ténue como o som do guardanapo.
Olhou-me desconsolado. O garfo estava mais que limpo. Vi-o tomar balanço e cravá-lo com convicção no lado mais palpitante do peito.
A carteira, essa, é que não esteve para tragédias.

Viradeira

O facto é que depressa nos cansámos. De fazer andar as fábricas de panos, de plantar vinhas novas, de aprender alguma coisa nas escolas, de blasfemar contra a fatalidade. E de ver a espirrar o sangue azul dos Távoras, que nos enterneceu o manso coração. De modo que, morto el-rei, voltámos aos marialvas, às procissões, à fadistagem e aos pátios das cantigas.

Ele havia umas estradas, no reino, por fazer. E logo se mandou que uns alvenéis lavrassem, numa serra, uns marcos monumentais, para assinalar cada légua aos viandantes. Dispunha cada marco dum relógio de sol. Porém algumas léguas terminavam à sombra, como é frequente acontecer, quando o sol se lembra de acordar. E ou bem que se ofendia o rigor das medições, ou se esbanjavam as custas do relógio.

Não chegou o desempate a ir a cortes, nem se lhe alcançou resolução. E as estradas ficaram por fazer.
Veio-me à lembrança um tal aperto, a propósito dum aeroporto que também anda aí nas mãos da viradeira.

Jorge Carvalheira

São Pedro de Alcântara

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São Pedro de Alcântara (Estaleiro)

No limite da luz do horizonte dos telhados
Fica à esquerda a Sé do nosso São Vicente
Ali a cidade pede perdão dos seus pecados
E vai rezar a Santo António quase em frente

Logo à direita fica um arco de conquistas
Louvando o poder da espada e da guerra
Cá em baixo passam os bandos de turistas
Sem tempo para ver o que o arco encerra

Ao centro está o Tejo sempre igual e eterno
O som da voz dos calafates chega à janela
O vento neste porta-contentores moderno
É o mesmo que empurrou naus e caravelas

Daqui deste meu jardim onde um estaleiro
Me impede de ver Lisboa como um espelho
Salva-me um tempo lisboeta tão verdadeiro
Num quadro cheio de luz de Carlos Botelho

José do Carmo Francisco

Camilo contra as chapas

Volto sempre a Camilo. Problemas de saúde, hemoglobina a disparar, problemas de trabalho, dois desempregados em cinco pessoas, problemas de dinheiro, frequentes saldos negativos na conta, enfim, o diabo a quatro, mas volto a Camilo e a disposição melhora logo. Reparem neste divertido texto de 1858 sobre o trivial que ameaça os cronistas a todo o momento:

«Obriga-se o cronista a manter invariáveis os seguintes adjectivos quando vierem usados para os seguintes substantivos: Prelado será sempre virtuoso; cantora será sempre mimosa; jornalista será sempre consciencioso; jovem escritor será sempre esperançoso; patriota será sempre exímio; negociante será sempre honrado; caluniador será sempre infame. As maneiras de quem dá um baile serão sempre amáveis; os convidados sairão sempre penhorados. O folhetinista será sempre espirituoso: o poeta será sempre inspirado. Os irmãos terceiros serão sempre veneráveis. Os sócios de qualquer coisa mercantil serão sempre acreditados. Os meninos recém-nascidos serão sempre robustos. As viúvas serão sempre inconsoláveis. Se o ricaço der doze vinténs aos inválidos, este feito será sempre um rasgo filantrópico e a fortuna dele será sempre abençoada. Não haverá baile que não seja animado, nem jantar que não seja lauto, nem serviço que não seja abundante ou profuso, para variar. Nenhum homem rico terá amigos que não sejam numerosos. Todo o casamento será próspero. Ninguém poderá morrer que não fique sendo bom cidadão, bom pai, bom marido e terá tudo de bom.»

Hoje, tal como em 1858, as chapas continuam a ser uma rasteira para os cronistas – que somos todos nós. Ontem nos periódicos feitos a chumbo; hoje nos blogs da Internet.

José do Carmo Francisco

O baú

Deu-lhe muito trabalho. Mas ao fim de cinco semanas tinha metido tout Leiria no computador. Descarnara-lhe as histórias uma a uma e apertara-as em fórmulas algébricas que até faziam dores à vista. Mas detectava-se já um princípio de movimento.

Passou uma noite ajustando os códigos, e quando a cabeça lhe tombava saiu a primeira frase. Num vago português, sugeria universos paralelos. Inabitáveis todos.

Decidiu então educar o programa. Não tinha Mário-Henrique querido educar o Mundo? Naquele quarto sem luz do dia, levou nisso mais uma semana, se é que o tempo lá fora passava. As latas de refrigerante rolavam pelo chão, as pizzas começaram a escassear.

Estava ele, caído de borco, no melhor dum sono, pôs-se a impressora a ronronar. Ergueu a fronte e olhou. Linhas, e mais linhas, e mais linhas. E parou. Retomou a marcha, encheu mais uma página. E prosseguiu. Sempre. Até o papel faltar.

Ele ia percorrendo, febril, as folhas. Em todas se narravam coisas com cabeça e pés, aí perpassando, ventura das venturas, um sopro de desvario. Estava inventada a máquina dos contos. A guerra das editoras não demoraria a estalar. E ele poderia, finalmente, aumentar a casa e trocar o carro.

Ninguém acreditou que ele não andara remexendo o baú do Mestre.

Jong Portugal vs. Jong Oranje

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Imagem de arquivo…

Lá vai ter de ser. Mais noventa minutos de coração despedaçado. A desejar que um ganhe,
receando que o outro perca.

Sei que a íntima festa será um pouco maior se a velha pátria vencer. Mas ir passar as próximas semanas rodeado de tristeza também não é para festas.

«Jong Oranje» é a designação habitual para tudo o que seja de ‘esperanças’ holandesas. A alusão à laranja tem a ver com a cor habitual da camisola, que por sua vez remete para a Casa de Orange, a dinastia que, de há séculos, governa o país.

O surradíssimo cliché «Laranja Mecânica» dos locutores, lá voltaremos a gramá-lo. Pobre Burgess!
A tradução «Laranja de Corda» – no limite, «Laranja-Relógio» – era bem mais exacta.

«Carta a mim mesmo no dia dos meus anos»

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José Luís Tavares (Santiago, Cabo Verde, 10 de Junho de 1967) faz hoje 40 anos.
O Aspirina deseja muitos. Anos, poemas. E felicita-se por poder publicar, hoje, esta

CARTA A MIM MESMO
NO DIA DOS MEUS ANOS

Como poeta nasci já quase canónico
(vede se isto não tem seu quê de cómico),
fazem-me quase um preto gentio camões —
não ligueis, que amanhã príncipe dos anões

serei. É certo que não errei o fio à vida,
seus corsos e naufrágios — fui mais fundo
que os demais? — em modo assaz rotundo
percorri-lhe as voltas, os sustos, a recaída.

Saberão vez alguma que nesta escura feira
tudo é sombra e deriva? Que nem as agudas
razões do pranto desvanecem esta surdina?

Não te iludas com os louros na cabeleira:
mais depressa se rirão das tuas agruras
dizendo «outro que não escapou à sina».

José Luís Tavares

Bah!

A Ministra reconduz. O Primeiro consente. O Presidente cala.

É cá uma fezada que o Ministério da Educação está atafulhadinho destas prepotências. Com uma cultura muito local. Quanto menos capazes, mais espezinham, e mais sobem. E com um PS tão rosadamente clientelar…

Por onde pegar, então? Pela primeira ponta que se veja. E esta é cá uma!

«Casal». E que casal!

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Isto de a gente ser portador dum segredo é tramado. Dá à vida um ar de irrealidade, mas não nos faz feliz. Trata-se de quê, desta vez?

Bom. Você já terá andado de metro em Lisboa. Talvez até tenha saído, ou entrado, na estação Cidade Universitária. Possivelmente, reparou que tem azulejaria de luxo e perguntou-se pelo artista. Já menos provável é que certo conjunto, onde figuram dois seres de aparência humana, lhe tenha embargado o passo. E é já da ordem do conto de fadas supor você identificando as figuras. Concedo: não é nada, nada fácil.

Dou-lhe conta duma primeira tentativa. Na edição de luxo de Lisboa, Livro de bordo, de José Cardoso Pires (Dom Quixote, 1997), aparecia a tal figuração, com a legenda: «Estação Cidade Universitária. Painel do Cais, com retrato de casal». E vinha o nome do, neste caso, «da» artista: Vieira da Silva. Pois já então eu soube que carregava um pesado segredo.

O «casal» é formado por Vergílio Ferreira, à direita, e Alexandre Pinheiro Torres. Se há ali um casal, é de discórdia. A autora quis decorar a estação ‘universitária’ com a recordação de uma polémica. Uma polémica intelectual, o que só fica bem.

Os dois escritores degladiaram-se em inícios dos anos 60, a pretexto (sim, puro pretexto, depressa esquecido) da publicação de Rumor Branco, de Almeida Faria, que Vergílio apadrinhara. Uma luta surda fazia ali erupção. Pinheiro Torres batia-se pelo Neo-realismo, Vergílio execrava-o, e Faria, com um romance experimental (a sua extraordinária, e ainda hoje obrigatória, Paixão demoraria ainda uns anos), constituía a bem-vinda pedra de escândalo. Meses a fio, tout Portugal conteve a respiração.

Quando, pois, você de novo por lá passar, lembre-se de que, discretamente, o debate intelectual português tem ali o seu monumento.

Para a petite histoire

Isto, sendo uma revelação, não é a primeira que é feita. Quis o destino que, na mesma exacta hora, dum fim de tarde de 1997, em que, na Câmara de Lisboa, era apresentado o livro de José Cardoso Pires, moderasse eu, na sede da SPA, um debate sobre Alexandre Pinheiro Torres, que vivia há muitos anos fora do País, e que eu achara dever ser homenageado pela passagem de 50 anos de vida literária. Estavam na mesa, e na conversa, Mário de Carvalho, João Aguiar, Inês Pedrosa e Regina Louro, que me pareceram comparsas do bom-gosto e da ironia de Torres. Recordo-me de ter, então, revelado o segredo do Metro de Lisboa. Mas, ainda agora, nenhum motor de busca dá conta dele. Depreendo que o black-out foi, até hoje, geral.

Sobre Alexandre Pinheiro Torres veja a excelente página de Carlos Ceia.

Duas opiniões

«A história que hoje podemos fazer dos últimos trinta anos dá-te [a APT] razão, pois Almeida Faria não se tornou o grande escritor que Vergílio Ferreira augurara» (Carlos Ceia, no site acima)

«Entre 1965 e 1983, Almeida Faria publicou a sua «tetralogia lusitana» (Paixão, Cortes, Lusitânia e Cavaleiro Andante), que confirmou o vaticínio de Vergílio Ferreira: o de que estávamos perante um ‘futuro grande escritor’» (António Guerreiro, hoje no «Expresso»)

Qual é a sua?