Volto sempre a Camilo. Problemas de saúde, hemoglobina a disparar, problemas de trabalho, dois desempregados em cinco pessoas, problemas de dinheiro, frequentes saldos negativos na conta, enfim, o diabo a quatro, mas volto a Camilo e a disposição melhora logo. Reparem neste divertido texto de 1858 sobre o trivial que ameaça os cronistas a todo o momento:
«Obriga-se o cronista a manter invariáveis os seguintes adjectivos quando vierem usados para os seguintes substantivos: Prelado será sempre virtuoso; cantora será sempre mimosa; jornalista será sempre consciencioso; jovem escritor será sempre esperançoso; patriota será sempre exímio; negociante será sempre honrado; caluniador será sempre infame. As maneiras de quem dá um baile serão sempre amáveis; os convidados sairão sempre penhorados. O folhetinista será sempre espirituoso: o poeta será sempre inspirado. Os irmãos terceiros serão sempre veneráveis. Os sócios de qualquer coisa mercantil serão sempre acreditados. Os meninos recém-nascidos serão sempre robustos. As viúvas serão sempre inconsoláveis. Se o ricaço der doze vinténs aos inválidos, este feito será sempre um rasgo filantrópico e a fortuna dele será sempre abençoada. Não haverá baile que não seja animado, nem jantar que não seja lauto, nem serviço que não seja abundante ou profuso, para variar. Nenhum homem rico terá amigos que não sejam numerosos. Todo o casamento será próspero. Ninguém poderá morrer que não fique sendo bom cidadão, bom pai, bom marido e terá tudo de bom.»
Hoje, tal como em 1858, as chapas continuam a ser uma rasteira para os cronistas – que somos todos nós. Ontem nos periódicos feitos a chumbo; hoje nos blogs da Internet.
José do Carmo Francisco
Desculpa, Zé do Carmo. Mas esse «Volto sempre a Camilo» é chapa 5 da melhor.
Faz lembrar aqueles melífluos de café que lançam: «Eu volto sempre ao Rilke», ou «Esta semana reli o Eliot» (não dizem qual, a gente tem que saber), ou «Ando a reler o Stendhal».
Não há piedade?
E muito mais interessante do que evitar a chapa 5 é transformá-la numa chapa 6. O Saramago faz isso muito bem.
JP,
Todos os grandes estilistas usaram a Chapa 6 (parabéns pelo achado). Eles deram, sempre, a mais inesperada das voltas aos nossos pobres clichês. Ontem, Cardoso Pires e Fernando Assis Pacheco. Hoje, Mário de Carvalho e Manuel António Pina.
Volto sempre a eles.
Faz bem a todos, regressar a Camilo. Às vezes, é mesmo imperioso, para nos desenojarmos dessa prosa desenxabida, absolutamente maioritária na Comunicação Social.
Além de renovarmos vocabulário, com termos de sabor castiço, bem expressivos, também aproveitamos do ritmo da sua escrita, sempre fluido e desenvolto, como só um Mestre acabado do idioma consegue atingir.
Depois dele, só Aquilino se lhe aproximou no domínio vocabular, mas sem a verve tumultuosa daquele. No entanto, também Aquilino merecia ser mais lido, hoje, nem que fosse para nos castigar de consultas ao Dicionário. Nada perderíamos com isso e, de caminho, colheríamos mais algumas pepitas do imenso vernáculo que por lá permanece esquecido, mas com préstimo.
Só o convívio com os clássicos permite enriquecer e por vezes até revivificar a nossa linguagem, a quotidiana e a de uso mais literário.
Por termos perdido, em grande parte, esse convívio, falamos no presente um português demasiado estereotipado, repetitivo, limitado, lamentavelmente empobrecido e damos por exóticos muitos vocábulos que ainda deveriam pertencer ao domínio comum da Língua, restituindo-lhe a expressividade que vai desaparecendo.
Os programas escolares, ao darem desproporcionada primazia à linguagem da comunicação social, prática, corrente, actual, afastam os jovens do contacto com os clássicos. E se este não se iniciar nessa fase de aprendizagem, de maior curiosidade intelectual, dificilmente surgirá mais tarde, na idade adulta.
Infelizmente, as reformas têm desprezado a leitura dos clássicos, escorraçando-os das antologias, a pretexto de que são velharias imprestáveis para a linguagem hodierna.
Pode ser que ainda surja um movimento que preconize o regresso aos clássicos, para bem da nossa portuguesa língua, que, para Rodrigues Lobo, tinha imensas qualidades, de todas o melhor, como ele dizia, numa conhecida passagem da sua «Corte na Aldeia».
Reconheça-se, porém, que nestas coisas da Língua, nunca há derrotas definitivas. Basta que haja quem lhe conheça os seus inexplorados recursos, os seus escritores, em particular, velhos e novos. Se estes tiverem imaginação criadora e audácia, a língua pode mais facilmente renovar-se e enriquecer-se. Mas, no fundo, todos os seus falantes podem para isso contribuir, porque o património linguístico é de todos, não está cativo de ninguém.
Peço desculpa deste arremedo de divagação, mas, na companhia de Camilo, com facilidade nos deixamos embalar em matéria linguística.
Não existem dois autores mais distintos na invenção da língua do que o Aquilino (conservadoríssimo) e o Rodrigues Lobo (um iluminado). Isto para além de o léxico ser a dimensão mais superficial e passível de invenção num língua. É na sintaxe que se revelam os meus escritores portugueses favoritos.
Ontem, Vergílio Ferreira e Ruy Belo. Hoje, Lobo Antunes e Manuel Gusmão.
Volto sempre a eles.
Ontem nos periodicos feitos a chumbo,os tipos que os faziam chamavam-se!Linotipistas.Espéro que a fatima esteja d’acordo?Senâo a proxima apariçâo vai ser no 70
L’univérso é o local menos os muros Miguel Torga :sim sim é Portugues,e se tems duvidas do que ele escreveu pergunta ao Bush!Antes de se deitar ele diz depois de resar,graças a deus que nâo estou là!
Neste país em vez de andar para a frente, andamos para trás, o ontem está actualizado para o dia de hoje, e talvez amanhã
Nâo a como,mas sou obrigado a reconhecer que é a verdade.O Portugues que eu falava e escrevia bem,desapareceu a causa foi que o pais onde vi o mundo nâo se interesou os milhares que forçaram a abandonar,para que continuasem a ter as regalias que tinham tido os seus progenitores.A teoria de Charles Darwin,so é reconhecida graças a deus por 95% dos tugas:os outros sérvem para beijar hipocritamente o anél que jà foi beijado por centenas de SIDATICOS.Gostam muito do policarpo e companhia,dâo-se mesmo ao luxo de ter porteiro-mor,a lingua de Camôes e dos escritores Portugueses é verdade que tem que ser respeitada!mas tanto os governos como a classe religiosa se estivéram despresando a clase que os defendia.Com o auxilio de alguns jornalistas bastardos.Hoje a classe politica vai procurar os votos nas vélhas histéricas desdentadas do Paulo Portas,com diplomas à esquerda e direita.Tendo uma riquesa nos filhos daqueles que tivéram que fugir a uma ditadura catolica.Tanto que Portugal nâo tivér a coragem de tirar o poder e o dinheiro que a igreja usurpou ilegalmente,nâo sairà de ser um pais do terceiro mundo
calhordus: acho que falo por todos se disser que precisamos de ler mais coisas tuas. Por favor, desenvolve lá o que te vai na alma.
Como diz António Viriato “Porque o património linguístico é de todos, não está cativo de ninguém”, também não ficou cativo de Camilo. É por isso que não concordo com “c valente”: o ontem não estará tão actualizado como diz…
Se comparar-mos, verificamos que os adjectivos de Camilo mudaram. Há chapas 5 ou 6 mais recentes. Assim, observe-se e repita-se o texto de que se serviu José do Carmo Francisco. Voltemos, pois, a Camilo:
«Obriga-se o cronista a manter invariáveis os seguintes adjectivos quando vierem usados para os seguintes substantivos: Prelado será sempre virtuoso (VENERANDO); cantora será sempre mimosa (FAMOSA); jornalista será sempre consciencioso (CONCEITUADO); jovem escritor será sempre esperançoso (PROMETEDOR); patriota será sempre exímio (RESPEITADO); negociante será sempre honrado (DINÂMICO); caluniador será sempre infame (MAL-FORMADO). As maneiras de quem dá um baile serão sempre amáveis (SIMPÁTICAS); os convidados sairão sempre penhorados (SATISFEITOS). O folhetinista será sempre espirituoso (EXPERIENTE): o poeta será sempre inspirado (CONHECIDO). Os irmãos terceiros serão sempre veneráveis (RESPEITÁVEIS) . Os sócios de qualquer coisa mercantil serão sempre acreditados (RECONHECIDOS). Os meninos recém-nascidos serão sempre robustos (LINDOS). As viúvas serão sempre inconsoláveis (TRISTES). Se o ricaço der doze vinténs aos inválidos, este feito será sempre um rasgo filantrópico (MERITÓRIO) e a fortuna dele será sempre abençoada (COLOSSAL). Não haverá baile que não seja animado (CONCORRIDO), nem jantar que não seja lauto (REQUINTADO), nem serviço que não seja abundante ou profuso (ou ESMERADO), para variar. Nenhum homem rico terá amigos que não sejam numerosos (IMENSOS). Todo o casamento será próspero (ELEGANTE). Ninguém poderá morrer que não fique sendo bom cidadão, bom pai, bom marido (BUÉ DA FIXE)) e terá tudo de bom.»
Este trabalho está um achado. Parabéns a quem o desenvolveu. Brilhante exercício; assim dá gosto estar na Net!