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Esta pergunta não é parva

E se…

E se os brilhantes espíritos, os inefáveis artistas que decidiram misturar religião com política de maneira desnecessária e ofensiva, tivessem reflectido duas vezes antes de criar a confusão e interferir com a existência e a segurança de outras pessoas, tinha-se perdido alguma coisa? O que é que se ganhou, em todo o caso? Quem é que ganhou alguma coisa com esse exercício fútil da “liberdade de expressão”?

João Camilo no seu blogue blueeverest.blogspot.com

Pagar o galo a Asclépio

O tema do Holocausto Nazi é aquele que, desde o início da WWW, mais flame wars provoca. Ao ponto de ser seguro abandonar qualquer discussão onde ele apareça, pois o que virá a seguir é o cardápio da irracionalidade. O tema do terrorismo sob bandeira islâmica vai por igual caminho. Unindo os dois temas, uma mesma fulguração: a lógica da ausência de sentido. Para designar essa experiência paradoxal, em que assistimos à organização metódica do caos, temos um palavrão com muito pouco gasto: derrelicção. Mas a derrelicção é tramada, não dá para um gajo se sentar e fumar um cigarro, fazer uma mijinha. Por isso, o costume é a malta voltar para trás e ir abancar noutro lado qualquer ou nem sequer lá entrar.

Quando alguém (seguramente de boa-fé, bem intencionado, “boa pessoa”; isso nem se discute, dando-se já como provado) se permite falar do Holocausto Nazi com a facilidade com que fala de pilinhas e bananas, apresentando uma contabilidade macabra como critério de valor e substância de argumentos, eu reconheço-me incapaz de retorquir. Porque fico triste, e depois dá-me para o silêncio. É que o nazismo continua a desafiar-me, e cada uma das suas vítimas a tentar falar comigo. Imagino-me lá, nessa época, em qualquer um dos lados da barricada, mas especialmente represento-me como cidadão alemão. Que teria feito? Teria sido cúmplice activo? Cúmplice passivo? Cobarde? Mártir? Herói? E acabo sempre com a suspeita de que teria sido mais um esmagado pela máquina nazi, provavelmente um cobarde. A mesma agonia trágica para o nosso período salazarista: teria tido a coragem daqueles que lutaram pela liberdade em Portugal ou teria sido um filho-da-puta qualquer?…

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Cocoricó

No DN de ontem, terça-feira 7 de Fevereiro, saiu um curto depoimento meu sobre a questão do momento. Como entre o ditar o texto ao telefone e a edição final se perde sempre qualquer coisa, eis aqui o texto restituido ao original:

“Ao contrário dos fundamentalistas e do próprio Vaticano, que se pronunciou recentemente sobre o assunto, sou da opinião de que a liberdade de expressão inclui ofender os outros nas suas crenças religiosas, voluntária ou involuntariamente. Vejo com agrado que parece começar a gerar-se entre nós um consenso neste sentido: ainda no ano passado, aquando da morte do papa, este princípio fundamental não tinha feito o seu caminho entre os nossos neoconservadores. Espero que, a longo prazo, estes acontecimentos possam ajudar de alguma forma a aumentar o espaço da liberdade de expressão para todos. Como é natural, a prova dos nove far-se-á quando for fácil caricaturar Maomé do lado de lá e ofender os cristãos do lado de cá.Também nesse momento será mais fácil demarcarmo-nos das espirais de racismo e indignação fácil como as que vivemos actualmente.”

Apesar da imperfeição e da pressa, aqui fica. É até ao momento a minha única tomada de opinião sobre este assunto crucial, assustador, mas fascinante.

Duas notinhas finais:

A primeira para notar que, após diversos dias de tensão com esta polémica, chegou o primeiro momento de alívio cómico sob a forma da ridícula nota do MNE Freitas do Amaral dedicada à questão dos cartunes.

A segunda para dizer que, uma vez que não sou actualmente membro de nenhum blogue de assuntos correntes, nos próximos tempos usarei (muito esporadicamente) a casa emprestada de amigos. Uma dessas casas é aqui a Aspirina, a quem agradeço pela hospitalidade. Outra casa emprestada será a pensão residencial Caravaggio Montecarlo, do João Macdonald, onde faço tenções de deixar um texto mais desenvolvido sobre a questão que nos tem ocupado.

Os bloggers, como as galinhas, cacarejam quando põem um post.

[Rui Tavares]

A colecção

Eu também faço desporto, como as pessoas sensatas, faço uma colecção, como os chatos: colecciono lugares-comuns. Parece fácil, mas dá trabalho: é preciso conseguir detectar, de entre a multidão de palavrinhas anódinas que a todas as horas procuram entrar pelos nossos olhos e ouvidos adentro, aquelas expressões que, sendo por um lado as mais evidentes, são também, e perversamente, as mais pomposas, e logo, as mais ridículas: é isso, para mim, um belo lugar-comum. Três fontes há de particular relevo no que à abundância e qualidade dos seus lugares-comuns diz respeito: a televisão, toutes chaînes confundues (estamos a transmitir para todas as partes do mundo onde se fala português – e fala-se português em todas as partes do mundo – não é verdade, Gabriel?), a pornografia, sobretudo quando aspira à literatura (lábios sedentos, membros vigorosos, gozos sublimes, frémitos de prazer, etc., etc.) e o jornalismo desportivo, nas suas variantes escrita, radiofónica e televisiva (tivera eu tempo e pachorra e dedicar-me-ia à preparação de um monumental dicionário de futebol, vasta obra que asseguraria ao português desportivo contemporâneo o destaque que lhe é devido no ainda mais vasto âmbito dos grandes lugares-comuns da história da nossa língua).

Mas o verdadeiro connoisseur não se limita a coleccionar os lugares-comuns alheios: topa-lhes o estilo e permite-se também as suas variações pessoais. A propósito do último disco de um famoso trompetista defunto, escrevi uma vez que tinha sido “…gravado antes que a morte o ceifasse prematuramente e o seu sopro se apagasse para sempre” (e não houve reacções). Tempos depois, apresentado pelo E. a uma gaja (plutôt bien) que se chamava Helena Suspiro, suspendi a respiração (de propósito), olhei-a com ar admirativo (idem, idem) e disse-lhe com imensa convicção: – “Helena, você desculpe, porque já deve ter ouvido isto muitas vezes, mas é impossível não suspirar por si…” Sempre a roçar o mau-gosto (pelo lado de dentro da parede), disse uma outra vez a quem me quis ouvir, num emprego que em tempos frequentei, ao saber da morte violenta de um colega que nem conhecia: “Esse, pelo menos sarampo não há-de voltar a ter…” Mas o melhor (porque o pior) de todos os lugares-comuns da minha carreira aconteceu depois disso, quando um avião caíu e com ele toda a equipa de futebol de sub-21 da Zâmbia, e eu compungido dei a trágica notícia do seu desaparecimento “sem qualquer espécie de humor negro…”

Para os psicopatologistas da vida quotidiana, a dimensão obsessivo-compulsiva que uma organização sistemática dos factos da vida incorpora, para mais quando condimentada por uma mal disfarçada ausência de gosto de fundo escatológico, é por demais evidente; os lugares-comuns da minha preferência bem poderiam ser colecções Philae, selos de correio ou cromos da bola, textos de quinhentas palavras (como este) ou livros de cinquenta mil, que isso pouco mudaria as coisas; a minha colecção é uma maradice, sei-o bem, que apenas a minha própria maradice pode explicar, mas ainda assim, e mesmo correndo o risco de rimar, no final apetece perguntar – e depois?

Uma Esquerda limpinha de cima a baixo

A Esquerda é muito sensível, muito consciente e muito exemplar. Tão sensível, tão exemplar e tão consciente, que toma sobre si todo o peso do Mundo. Por isso a vemos por aí intimamente encurvada, vergastando-se, pedindo penitência. A Esquerda assusta-se à ideia de que haja havido algum grande crime que não denunciou, alguma grande injustiça de que não lavou expressamente as mãos. E assim se dispõe a pagar por todos: por quanto o filho faz, por quanto fez o pai. Onde a Direita é uma balzaquiana vendendo frivolidade, a Esquerda sofre cronicamente de má consciência. Só a santidade a satisfaz. Resultado: tão entusiasmada anda no caminho da perfeição que qualquer chantagem fundamentalista terá nela uma presa feliz. E aí anda ela, pronta a entregar-se a quantos integrismos, locais ou mundiais, lhe apareçam. Para qualquer azar, a menina anda sempre limpinha de cima a baixo.

A manha

A primeira parte da resposta que Vasco Pulido Valente me dá é dedicada a bicar em Gandhi, apresentado como um “produto típico do Império Britânico”. Gandhi? O hindu gujarati, filho de devotos da comunidade modh, cujo mestre foi um monge jainista e a sua maior influência estrangeira um escritor russo? Um “produto típico do Império Britânico”? O mesmo Gandhi que disse que “Hinduism as I know it entirely satisfies my soul, fills my whole being … When doubts haunt me… I turn to the Bhagavad Gita”? Não nego que o contexto britânico seja importante para a formação de Gandhi, mas descrevê-lo enjoadamente como “produto típico do Império Britânico” não é mais do que a confirmação das fracas lentes com que os nossos anglocentristas vêem o mundo. Gandhi tinha umas ideias sobre auto-determinação, liberdade individual, igualdade perante a lei e democracia. Como sabemos, é impensável que (contra a sua própria opinião) as tenha ido buscar a outro lado senão à terra do Yorkshire pudding e do chapéu de coco.

Só que na realidade, Gandhi não é um produto típico deste mundo estreitinho. VPV escreve que “sem a moderação e o legalismo do Raj [britânico] e, sobretudo, sem o espírito “liberal” da opinião pública inglesa, não haveria Gandhi”– não sei se aqui VPV se esqueceu dos milhares de mortos e dezenas de milhares de presos da repressão britânica – e que “não se imagina a “não-violência” do Mahatma face à China ou, por exemplo, à Rússia de Estaline ou dos czares”. Mas nem de propósito, a grande influência política e filosófica de Gandhi foi o russo Tolstoi, com quem se correspondia, e cujo pacifismo cristão criou grandes embaraços aos czares e lhes minou a influência entre milhões dos seus súbditos. Quando Tolstoi morreu, em 1911, o lugar que ocupava na sociedade russa dos czares não andaria muito longe do estatuto de santo laico que o seu discípulo indiano também veio a alcançar. Só possível no império britânico e nunca na Rússia dos czares?

No fundo, aquela passagem a contragosto por Gandhi é apenas uma distracção, ou melhor, um adiamento da confissão – que se imagina tão custosa quanto é rara em Vasco Pulido Valente – de que o seu oponente lhe fez uma pergunta “séria e merece uma resposta séria”. Com justiça, deve dizer-se que VPV tentou ao máximo dar essa resposta séria. Começou por baixar radicalmente a bolinha à civilização ocidental. Há dois dias, ela era simplesmente superior; agora VPV admite que “às vezes, muitas vezes, quase constantemente, duvido”. Ao menos não tentou, como outros comentadores, fingir que o holocausto e muitos outros crimes sejam estranhos a esta civilização. Sob VPV 2.0 seremos, então, maus como as cobras; mas os muçulmanos é que terão de ser péssimos sem remissão [“uma civilização fanática, despótica e analfabeta”]. Tão analfabeta que, apetece dizer, até o seu anti-judaísmo foi herdado do anti-semitismo ocidental, felizmente que sem resultados tão criminosos como os seis milhões de judeus mortos por europeus.

É aqui que talvez valha a pena voltar ao início. O hindu Gandhi morreu a tentar explicar aos seus conterrâneos que os muçulmanos não eram um povo inferior. Foi assassinado por um hindu tão convencido da superioridade da sua civilização que achava que os muçulmanos não tinham sequer direito às reparações que a União Indiana aceitara conceder-lhes por iniciativa, precisamente, de Gandhi. O resto foi o que se viu. Foi também quando os alemães se encontravam mais enamorados da superioridade da sua civilização que os crimes do holocausto começaram a nascer. Quem combateu estes crimes não precisou de o fazer em nome da superioridade de outra civilização mas somente da repugnância de que tais ideias pudessem vir a vencer. No fim da guerra, os aliados tiveram o cuidado de não exigir rituais de humilhação da “civilização germânica”, como haviam feito em 1918 contra os que chamavam de “hunos” e “bárbaros teutónicos”, com maus resultados. Desnazificaram onde tiveram de desnazificar, e deixaram a “civilização germânica” em paz. Aliás despreocupados dessas desforras, os Europeus ocidentais construiram décadas de paz e bem-estar. Assim foi, mas agora milhões de muçulmanos estão convencidos da superioridade da “sua” civilização, e no Ocidente há quem acredite que a mera insistência na superioridade da “nossa” civilização resolve magicamente alguma coisa.

Contudo, pregar a superioridade da nossa civilização é coisa fácil: estamos rodeados dos nossos, enchemo-los de orgulho e somos pagos com adulação. Rende bons dividendos na farsa do politicamente incorrecto. De ambos os lados, não falta quem abuse desta manha. O resto fica por fazer.

[Rui Tavares]

E agora?

Uma organização judaica holandesa apresentou queixa contra a Liga Árabe Europeia, por esta, em resposta aos cartoons sobre Maomé, ter publicado cartoons antisemitas que faziam paródias com o Holocausto. Não publiquei os primeiros, ainda menos publicaria estes. Mas não deixo de ficar à espera que os jornais portugueses de referência e os blogues as mostrem. E espero que todos se indignem com mais esta inaceitável tentativa de limitação à liberdade de expressão tentada por “fanáticos” judeus. Agora que todos os fantasmas se soltaram, façam todos muito bom proveito. Um dia ainda falaremos sobre a absoluta irresponsabilidade de toda esta história. Mas isso será um dia. Quando todos se acabarem de divertir a chafurdar na porcaria.

Os cristãos novos da blasfémia

São só dois exemplos numa procura rápida. Há dois anos escrevi um post a gozar com a Páscoa e a crucificação de Cristo. Caiu o Carmo e a Trindade. Vale mesmo a pena lerem alguns dos comentários para terem algum contacto com a sempre tão aplaudia tolerância ocidental. Poucas semanas antes, o Barnabé tinha feito o mesmo com uma tragédia numa peregrinação a Meca (sem que isso provocasse nenhum alarido). Achei graça ir ler os comentários ao Kit Páscoa. Na assinatura dos comentadores às vezes vem um link para o seu blogue, se o têm. Cliquei em dois críticos ao mais do que duvidoso gosto do meu post. Um, AAA (André Azevedo Alves), do Insurgente, dizia: “Um desagradável mas elucidativo exercício de mau gosto”. Outro, um tal de Carlos, do Galo Verde, concordava: «Mau gosto. Adepto dum estado laico, mesmo assim me admira muito que os partidos de esquerda tentem sempre minimizar, gozar, banalizar, ideias caras ao povo que querem representar.» O que diz agora o senhor AAA? Diz que o Deus dos muçulmanos é «um Deus que não ri nem quer ser objecto de riso» O seu blogue, aliás, tem estado na primeira linha da defesa da liberdade de expressão e da blasfémia. E senhor Carlos, do Galo Verde? «O Islão tenta impor-se com a sua cultura no ocidente (os véus na França) e até exige que a liberdade de imprensa seja diminuída se estiverem em causa os seus valores.»

E estes são só dois exemplos, à pressa. O que não faltam por aí são cristãos novos nesta matéria. Sobre Cristo, a blasfémia é «mau gosto». Sobre Maomé, é «liberdade de expressão».

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