A colecção

Eu também faço desporto, como as pessoas sensatas, faço uma colecção, como os chatos: colecciono lugares-comuns. Parece fácil, mas dá trabalho: é preciso conseguir detectar, de entre a multidão de palavrinhas anódinas que a todas as horas procuram entrar pelos nossos olhos e ouvidos adentro, aquelas expressões que, sendo por um lado as mais evidentes, são também, e perversamente, as mais pomposas, e logo, as mais ridículas: é isso, para mim, um belo lugar-comum. Três fontes há de particular relevo no que à abundância e qualidade dos seus lugares-comuns diz respeito: a televisão, toutes chaînes confundues (estamos a transmitir para todas as partes do mundo onde se fala português – e fala-se português em todas as partes do mundo – não é verdade, Gabriel?), a pornografia, sobretudo quando aspira à literatura (lábios sedentos, membros vigorosos, gozos sublimes, frémitos de prazer, etc., etc.) e o jornalismo desportivo, nas suas variantes escrita, radiofónica e televisiva (tivera eu tempo e pachorra e dedicar-me-ia à preparação de um monumental dicionário de futebol, vasta obra que asseguraria ao português desportivo contemporâneo o destaque que lhe é devido no ainda mais vasto âmbito dos grandes lugares-comuns da história da nossa língua).

Mas o verdadeiro connoisseur não se limita a coleccionar os lugares-comuns alheios: topa-lhes o estilo e permite-se também as suas variações pessoais. A propósito do último disco de um famoso trompetista defunto, escrevi uma vez que tinha sido “…gravado antes que a morte o ceifasse prematuramente e o seu sopro se apagasse para sempre” (e não houve reacções). Tempos depois, apresentado pelo E. a uma gaja (plutôt bien) que se chamava Helena Suspiro, suspendi a respiração (de propósito), olhei-a com ar admirativo (idem, idem) e disse-lhe com imensa convicção: – “Helena, você desculpe, porque já deve ter ouvido isto muitas vezes, mas é impossível não suspirar por si…” Sempre a roçar o mau-gosto (pelo lado de dentro da parede), disse uma outra vez a quem me quis ouvir, num emprego que em tempos frequentei, ao saber da morte violenta de um colega que nem conhecia: “Esse, pelo menos sarampo não há-de voltar a ter…” Mas o melhor (porque o pior) de todos os lugares-comuns da minha carreira aconteceu depois disso, quando um avião caíu e com ele toda a equipa de futebol de sub-21 da Zâmbia, e eu compungido dei a trágica notícia do seu desaparecimento “sem qualquer espécie de humor negro…”

Para os psicopatologistas da vida quotidiana, a dimensão obsessivo-compulsiva que uma organização sistemática dos factos da vida incorpora, para mais quando condimentada por uma mal disfarçada ausência de gosto de fundo escatológico, é por demais evidente; os lugares-comuns da minha preferência bem poderiam ser colecções Philae, selos de correio ou cromos da bola, textos de quinhentas palavras (como este) ou livros de cinquenta mil, que isso pouco mudaria as coisas; a minha colecção é uma maradice, sei-o bem, que apenas a minha própria maradice pode explicar, mas ainda assim, e mesmo correndo o risco de rimar, no final apetece perguntar – e depois?

5 thoughts on “A colecção”

  1. Coleccionar lugares-comuns? Mas isso é um lugar-comum, um lagar comum (quão melhor não é coleccionar trocadilhos!).

  2. Nós, pessoas, ficamos felizes quando constatamos que ainda há blogs que defendem a liberdade, a justiça e a igualdade. A situação a que se reporta é do mais infâme e vil e os homens que a engendraram são uns perversos, uns estupores e uns ‘porcos’.

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