A primeira parte da resposta que Vasco Pulido Valente me dá é dedicada a bicar em Gandhi, apresentado como um “produto típico do Império Britânico”. Gandhi? O hindu gujarati, filho de devotos da comunidade modh, cujo mestre foi um monge jainista e a sua maior influência estrangeira um escritor russo? Um “produto típico do Império Britânico”? O mesmo Gandhi que disse que “Hinduism as I know it entirely satisfies my soul, fills my whole being … When doubts haunt me… I turn to the Bhagavad Gita”? Não nego que o contexto britânico seja importante para a formação de Gandhi, mas descrevê-lo enjoadamente como “produto típico do Império Britânico” não é mais do que a confirmação das fracas lentes com que os nossos anglocentristas vêem o mundo. Gandhi tinha umas ideias sobre auto-determinação, liberdade individual, igualdade perante a lei e democracia. Como sabemos, é impensável que (contra a sua própria opinião) as tenha ido buscar a outro lado senão à terra do Yorkshire pudding e do chapéu de coco.
Só que na realidade, Gandhi não é um produto típico deste mundo estreitinho. VPV escreve que “sem a moderação e o legalismo do Raj [britânico] e, sobretudo, sem o espírito “liberal” da opinião pública inglesa, não haveria Gandhi”– não sei se aqui VPV se esqueceu dos milhares de mortos e dezenas de milhares de presos da repressão britânica – e que “não se imagina a “não-violência” do Mahatma face à China ou, por exemplo, à Rússia de Estaline ou dos czares”. Mas nem de propósito, a grande influência política e filosófica de Gandhi foi o russo Tolstoi, com quem se correspondia, e cujo pacifismo cristão criou grandes embaraços aos czares e lhes minou a influência entre milhões dos seus súbditos. Quando Tolstoi morreu, em 1911, o lugar que ocupava na sociedade russa dos czares não andaria muito longe do estatuto de santo laico que o seu discípulo indiano também veio a alcançar. Só possível no império britânico e nunca na Rússia dos czares?
No fundo, aquela passagem a contragosto por Gandhi é apenas uma distracção, ou melhor, um adiamento da confissão – que se imagina tão custosa quanto é rara em Vasco Pulido Valente – de que o seu oponente lhe fez uma pergunta “séria e merece uma resposta séria”. Com justiça, deve dizer-se que VPV tentou ao máximo dar essa resposta séria. Começou por baixar radicalmente a bolinha à civilização ocidental. Há dois dias, ela era simplesmente superior; agora VPV admite que “às vezes, muitas vezes, quase constantemente, duvido”. Ao menos não tentou, como outros comentadores, fingir que o holocausto e muitos outros crimes sejam estranhos a esta civilização. Sob VPV 2.0 seremos, então, maus como as cobras; mas os muçulmanos é que terão de ser péssimos sem remissão [“uma civilização fanática, despótica e analfabeta”]. Tão analfabeta que, apetece dizer, até o seu anti-judaísmo foi herdado do anti-semitismo ocidental, felizmente que sem resultados tão criminosos como os seis milhões de judeus mortos por europeus.
É aqui que talvez valha a pena voltar ao início. O hindu Gandhi morreu a tentar explicar aos seus conterrâneos que os muçulmanos não eram um povo inferior. Foi assassinado por um hindu tão convencido da superioridade da sua civilização que achava que os muçulmanos não tinham sequer direito às reparações que a União Indiana aceitara conceder-lhes por iniciativa, precisamente, de Gandhi. O resto foi o que se viu. Foi também quando os alemães se encontravam mais enamorados da superioridade da sua civilização que os crimes do holocausto começaram a nascer. Quem combateu estes crimes não precisou de o fazer em nome da superioridade de outra civilização mas somente da repugnância de que tais ideias pudessem vir a vencer. No fim da guerra, os aliados tiveram o cuidado de não exigir rituais de humilhação da “civilização germânica”, como haviam feito em 1918 contra os que chamavam de “hunos” e “bárbaros teutónicos”, com maus resultados. Desnazificaram onde tiveram de desnazificar, e deixaram a “civilização germânica” em paz. Aliás despreocupados dessas desforras, os Europeus ocidentais construiram décadas de paz e bem-estar. Assim foi, mas agora milhões de muçulmanos estão convencidos da superioridade da “sua” civilização, e no Ocidente há quem acredite que a mera insistência na superioridade da “nossa” civilização resolve magicamente alguma coisa.
Contudo, pregar a superioridade da nossa civilização é coisa fácil: estamos rodeados dos nossos, enchemo-los de orgulho e somos pagos com adulação. Rende bons dividendos na farsa do politicamente incorrecto. De ambos os lados, não falta quem abuse desta manha. O resto fica por fazer.
[Rui Tavares]
Gandhi não é um produto típico do império britânico porque não há produtos típicos de nada (e se o fosse, não seria necessariamente ‘estreitinho’). Mas há pequenos pormenores que ajudam no ponto de VPV.
E deveriam pelo menos referênciá-los: formação no Reino Unido (aos 19 anos) e mais de 20 anos passados na África do Sul (Durban). Mais do que a correspondência com Tolstoi, este período foi determinante para Ghandi (tendo assistido à segunda guerra boer aí). Digo isto, evidentemente, por não concordar com o ponto de VPV: não se pode acusar um de manha sendo também manhoso por sua conta.
Fosga-se, Rui, qualquer dia faço-te um altar!
Mas para onde é que o homem podia ir, se quase tudo era Imperio Britânico?
A (des)proposito os Rolling Stones foram (auto)censurados na final da Super Bowl americana.Quero ver o que as
“virgens” neoliberais dizem a isto.
nongoloza:
isso já estava no post do VPV, não valia a pena repetir e de resto eu escrevo que não nego a importância do Imp. Brit. Daí a chamar a Gandhi um produto típicou vai uma enoooorme distância (já agora, a África do Sul também era pouco típica neste império).
Quem fala de “civilização” fala contra a “civilização”. Então se pelo caminho fala de “superioridades”, já sei que o resto não se recomenda…
O mal da civilização é que é a melhor desculpa para todo o tipo de atrocidades…
As façanhas da “civilização superior” no Iraque:
100.000 mortos na auto-estrada da morte em 1991, dois dias depos do cessar-fogo.
Uma divisão iraquiana inteira enterrada viva pelos tanques americanos que passaram por cima das entradas dos seus abrigos no deserto em 1991
500.000 crianças iraquianas (numeros da UNICEF) mortas (91-2003) pelo urânio empobrecido e pelo embargo dos terroristas cruzados
150.000 civis iraquianos mortos no shock and awe de 2003/6, incluindo a população de Fallujah, Qaim e Tal Afar, exterminadas com fórforo branco…
30.000 presos e torturados barbaramente pelos nazi-bushistas e seus caniches em Abu Graib, Guantanamo, Bagram e todas as prisões secretas do Gulague Buhista através do mundo…
E não falemos já da Palestina, do Vietname, de Dresden, Hiroxima e Nagasáqui…
Depois disto, QUEM PODERÁ NEGAR QUE O DEMOCRATA E DEFENSOR DOS DIREITOS DO HOMEM VPV TEM RAZÃO AO CONSIDERAR A CIVILIZAÇÃO DA COCACOLÂNDIA SUPERIOR À ISLÂMICA ?
De facto os muçulmanos não têm, nem de longe, tal curriculo…
Está a ser um diálogo interessante, o vosso.
Mas deixem lá o Gandhi e expliquem o que é uma civilização. A sério.
Brigada Bigornas (os Riapas, chatos como os chatos…): isso é para fazer rir ? É que se é, tem que me vir fazer cócegas…
Segundo Niall Ferguson, Gandhi foi “an English-trained barrister, a decorated veteran of the Boer War [foi maqueiro em Spion Kop], a man whose favourite poem was Kipling´s ‘If’, and yet, to judge by his skinny frame and loincloth, a traditional holy man”, in “Empire. How Britain Made the Modern World”, p. 331. Uma obra que VPV deve conhecer sobejamente e que o Rui devia ler.
Rui,
Estive a reler o post de VPV e em momento algum refere a África do Sul e só por dedução (e porque é do conhecimento geral) se chega ao R.U.
E já agora (e continuo nos pormenores irrelevantes), o que seria para ti um exemplo ‘típico’ do império britânico?
queerdude:
conheço o Niall Ferguson – embora ainda não o livro que cita. leio-o com algum interesse. é talvez o maior apologista do império britânico na actualidade; às vezes parece que não há nada de bom que não tenha saído do império britânico. gandhi é bom, logo gandhi é típico produto britânico? uma visão geral da sua vida não permite comprovar nada disso; o próprio nunca afirmou nada nesse sentido. é um produto pouco típico, que não é só nem muito menos principalmente britânico.
nongoloza: desculpe se dei a ideia de que o VPV tivesse falado especificamente na Afr. do Sul. Mas ele insistiu “produto típico do império britânico”. Império, ou seja, metrópole+colónias, o que inclui as duas fases, inglesa e sul-africana, da vida de Gandhi. Como disse, não nego a importância dessa experiência, mas isso não faz de um erudito e pensador do hinduísmo, perfeitamente imerso na sua cultura de nascimento e muito aberto à literatura global da época, um “produto típico do império britânico”. É redutor e até um pouco ingénuo dizer uma coisa destas.
Quanto à atipicidade da África do Sul, eu referia-me, como é evidente, às lutas contra colonos europeus (as duas guerras dos boers, e Gandhi participou como maqueiro na segunda como tentativa de garantir direitos cívicos aos indianos), a unificação tardia do país (em 1910, quatro anos apenas antes de Gandhi regressar à Índia) e a importância política dos africanderes.
Imagino que o Canadá e a própria Índia pudessem ser apresentados como os exemplos mais paradigmáticos do império. Mas não sou tão conhecedor que não possa estar aqui a cometer um erro.
juxkoxnowe oaio