Vemos, ouvimos e lemos
Isabel do Carmo
Médica
Quantas vezes ouvimos dizer que durante a II Guerra Mundial as populações desconheciam o que se estava a passar? Agora todos os dias “vemos, ouvimos e lemos” e até “não podemos ignorar”, mas a nossa impotência é a mesma. Como é a mesma a indiferença dos que não temem o julgamento histórico: apostam no apagamento da memória, na precariedade das imagens que nascem e morrem em fracções de segundo. Julgávamos que tínhamos visto tudo e agora temos de novo o Líbano aqui tão perto, geograficamente, culturalmente.
As imagens de destruição do Líbano trazem-nos à memória (mas a quantos?) essas dilacerantes descrições de Sebald na História Natural da Destruição onde corajosamente nos fala do não-dito: a destruição das cidades alemãs, a morte em massa dos civis, praticada pelos bombardeamentos dos aliados, neste caso os ingleses, quando a guerra já estava ganha, mas as bombas também já estavam feitas e não podiam ser desperdiçadas. Toda a Alemanha assumiu a culpa, ninguém escreveu sobre isto e, como diz Sebald, só algumas dezenas de anos depois alguns escritores falaram sobre o assunto sob a forma de parábola. Já a história de Hiroxima tomou outra amplitude e ficou claro que aqueles japoneses não tinham culpa do eixo nazi-fascista.
São sempre as crianças, as mais inocentes, cujos rostos vão ficando como um rastro desta diabolização que o ser humano assume. Ficam-nos as imagens das faces inocentes das crianças que partiam para os campos de concentração, tristes, mas sem perceberem. Ficam-nos todas as imagens do Holocausto, que não atingiu só judeus. Foram os comunistas (liquidação física da totalidade do partido), foram os socialistas, os ciganos, os oligofrénicos, os homossexuais. Mas podemos ignorar as crianças do outro lado? Das descrições de Sebald fica um flash terrível: a das mães sobreviventes dos bombardeamentos que transportavam em malas de viagem os cadáveres dos filhos mortos. Passageiras loucas e perdidas de destino nenhum.
E agora, a destruição do Líbano fica-nos a imagem dos montes de cadáveres de crianças embrulhadas em sacos de lixo à porta do hospital de Tiro, à espera que as famílias as identificassem. Mas quais famílias? As mortas? Dos internados do hospital, das crianças mortas, dizia o médico que ninguém dessa gente era do Hezbollah. Também o médico é suspeito? Necessariamente não o eram as crianças.
Há quem tenha a coragem de escrever por aí que Israel só está a bombardear os territórios onde já esteve – o Sul do Líbano e Gaza. É deles? Ora Israel não esteve em sítio nenhum ou esteve vagamente há 2000 anos. Por isso “esta guerra começou em 1948 e tem tido vários nomes”, como diz o dirigente israelita. E não se sabe quando vai acabar. Como todas as guerras de ocupação, colonização e racismo vai acabar mal. É certo que há uma situação de facto que tem que ser considerada. É certo que nada justifica acções terroristas, como são praticadas pelo Hamas e o Hezbollah, com morte de civis. É certo que o Irão tem um dirigente louco. Mas tudo isto é uma espiral. É bom não esquecer como nasceu o Hamas. É que as conspirações são como as bruxas, há a “teoria”, mas lá que as há, há… Quem percebe disto é o John le Carré. O que acaba por suceder é que esta espiral conduz a que o fundamentalismo obscurantista (igual aos cristianismos de há pouco tempo) seja a bandeira dos injustiçados.
Como sempre é dramático que os movimentos anti-sionistas de Israel não tenham visibilidade, como se o país fosse uniforme. As várias organizações israelitas de mulheres pela paz – Bat Shalom, Mulheres de Negro, Mulheres e Mães pela Paz, Novo Perfil, Liga internacional das mulheres pela paz, Tandi, (movimento democrático de mulheres pela paz fundado em 1951), NELED (mulheres pela coexistência), Machsom Watch (obervatório das barragens). Algumas dizem: “Os generais não sabem tratar de paz, deixem as mulheres tratar disso.” Quase todos estes movimentos estão em ligação com as mulheres palestinianas. E há os corajosos movimentos de refractários dentro do Exército (Yesh Gvoul! “Há um limite”), que levou a julgamentos e prisões.
Estes são os movimentos, as pessoas, invisíveis, porque não têm voz internacional. São israelitas e não são sionistas. A estes não os vemos, porque não nos deixam ver. No entanto, é suficiente aquilo que “vemos, ouvimos e lemos”. A comunicação já não é a da II Guerra Mundial. As crianças refugiadas com a casa às costas têm o mesmo sorriso triste, mas perguntam ao repórter português pelo Figo e pelo Ricardo. Então é porque hoje “vemos, ouvimos e lemos” mais depressa. E como diria a Sophia, “não podemos ignorar”. Nem arranjar desculpas.