Aviso aos pacientes: este blogue é antianalgésico, pirético e inflamatório. Em caso de agravamento dos sintomas, escreva aos enfermeiros de plantão.
Apenas para administração interna; o fabricante não se responsabiliza por usos incorrectos deste fármaco.

A soberba em forma de gente

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No “Público” de hoje, Miguel Sousa Tavares trata de trucidar o “Esta Noite a Liberdade”, livro de onde sacou à má fila, para usar a feliz expressão do Fernando Venâncio, algum “colorido narrativo”. Tal livro “não é ficção, é um relato histórico, e muito mau” e de lá só se aproveitam mesmo as fotografias. Não sei se a cruel descrição corresponde à verdade, pois não li a obra em (des)apreço. Mas dá para desconfiar de alguém com um umbigo de tal forma inflacionado que lhe tapa a vista e o bom senso ao ponto de se sair com esta: “Sem modéstia, escrevi um grande livro”. “Grande”, só se for pelo número de páginas. “Grandes” são obras como “Moby Dick” ou “Gravity’s Rainbow”. O resto é conversa.

AAA emigrou para a Twilight Zone?

Inspirado por um artigo que leu há pouco, André Abrantes Amaral resolveu agora que os EUA não têm nada de estar envergonhados pela iminência de abandonar as areias movediças do Iraque entregues à sua sorte. Não: deveriam andar em paradas e foguetório comemorativo. Na realidade, venceram a luta contra o terrorismo!
Juro que isto vem lá escrito: “É certo que o mundo não está mais seguro que em 1998, mas está bastante menos perigoso que o esperado no dia 11 de Setembro de 2001. Os EUA nunca mais foram atacados, várias células terroristas foram destruídas, esquemas de financiamento aniquilados. Hoje é bastante improvável um ataque da mesma envergadura ao ocorrido em Nova Iorque e Washington.”
O ponto de vista é o de um americano radicalmente isolacionista: o resto do mundo nem sequer existe. Os EUA não foram mais atacados mas da mesma sorte não se podem gabar alguns seus aliados. As células foram destruídas e outras tomaram logo o seu lugar, como se vê pela chuva de bombas que cai todos os dias no Iraque; quanto tempo demorará até que aquela malta recém-formada se espalhe pelo mundo? Quantos mais estarão agora mesmo a converter-se ao fanatismo e à violência? E “improvável” já foi o 11 de Setembro; só por uma incrível mistura de sorte e incompetência das autoridades americanas é que um bando de grunhos armados de x-actos conseguiu aquilo. E, mesmo assim, a fazer fé no recente alarme em Londres, não vejo onde está a improbabilidade de uma reprise.
Por fim, como pode um país cantar vitória quando se deixou transformar pelo seu inimigo? Escutas arbitrárias, detidos sem processo, Guantánamo, sadismo no Iraque… cada uma destas tristes constatações soa a toque de finados pelo país justo e livre que os EUA já foram. Amarga vitória, a que o Blasfemo agora celebra.
Ele diz “com confiança que, tanto o terrorismo como a Coreia do Norte são problemas do passado”. O solipsismo tem um novo e fulgurante paladino.

Ração para porcos

“Depois de as coisas acontecerem, é quase irresistível reflectir sobre o que teria sido a vida, se se tem feito diferente. Se soubesse o que o destino lhe reservava nos próximos tempos, talvez Luís Bernardo Valença nunca tivesse apanhado o comboio, naquela chuvosa manhã de Dezembro de 1905, na Estação do Barreiro.

Mas agora, recostado na confortável poltrona de veludo carmim da 1ª classe, Luís Bernardo via desfilar tranquilamente a paisagem através da janela, observando como aos poucos se instalava o terreno plano, semeado de sobreiros e azinheiras, tão característico do Alentejo, e como o céu de chuva que deixara em Lisboa ia timidamente abrindo clareiras pelas quais espreitava já um reconfortante sol de Inverno.”

É desta forma, e não desta, que se inicia o romance Equador, de Miguel Sousa Tavares.

É verdade que o abjecto rapazola que assina lapierre & collins não coloca aspas nos parágrafos que precedem a frase “Assim se iniciam os livros «Equador», de Miguel Sousa Tavares, e «Fredom at Midnight», de Dominique Lapierre e Larry Collins.” Mas também é verdade que a blogosfera já está a ficar apinhada de “citações” dos dois infames resumos como se os mesmos correspondessem, à letra, ao início dos supracitados romances.

Foi, exactamente esse, de resto, o objectivo do pusilânime animal, ao disfarçar de “início de romance” os ditos parágrafos. Tudo para que o Zé, exultando com a suposta desvelada desgraça alheia, cegasse e, à boa maneira portuguesa, tratasse de pôr a circular as ditas frases como se de verdadeiras citações (iguaizinhas, Maria, iguaizinhas!) se tratassem.

Porém, e essa é que é a merda, no antro em que esta espécie de país está feito, é também isso que fica para a posteridade. As duas frases. Os dois abusivos resumos. Iguais. Que não são início de romance nenhum. Por certo que, metade da malta que leu a coisa, parou à primeira frase em inglês, ficando-se pelos fajutos inícios de romance. O desprezível insecto contou com isso – com a sua imbecilidade e com a estupidez natural do populacho.

E o resto? Não há absolutamente mais nada digno de registo. Trata-se, tão só, da simples menção a factos históricos. Semelhantes, claro. E por isso mesmo – porque são factos. Como diz o João Miranda, em referência a Sir Buphinder Sing, “Dizer que ele era rico, tinha um metro e noventa de altura e cento e quarenta quilos de peso é plagiar a realidade. Ele era mesmo rico e provavelmente tinha mesmo um metro e noventa de altura e cento e quarenta quilos de peso.”

Uma última coisa. Passou-vos mesmo pelas cabecitas que o MST se desse ao luxo de plagiar e de aludir, ao mesmo tempo, no livro produto do suposto plágio, ao livro objecto do suposto plágio? Que fita métrica estão a usar? A mesma com que medem as pilinhas?

Acalmai, pois, a vossa sede de sangue, que esta tontaria é menos que nada.

Albert Camus # Budapeste 1956

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LE SANG DES HONGROIS

Je ne suis pas de ceux qui souhaitent que le peuple hongrois prenne à nouveau les armes dans une insurrection vouée à l’écrasement, sous les yeux d’une société interntionale qui ne lui ménagera ni applaudissements, ni larmes vertueuses, mais qui retournera ensuite à ses pantoufles comme font les sportifs de gradins, le dimanche soir, après un match de coupe.

Il y a déjà trop de morts dans le stade et nous ne pouvons être généreux que de notre propre sang. Le sang hongrois s’est relevé trop précieux à l’Europe et à la liberté pour que nous n’en soyons pas avares jusqu’à la moindre goutte.

Mais je ne suis pas de ceux qui pensent qu’il peut y avoir un accommodement, même résigné, même provisoire, avec un régime de terreur qui a autant de droit à s’appeler socialiste que les bourreaux de l’Inquisition en avaient à s’appeler chrétiens.

Continuar a lerAlbert Camus # Budapeste 1956

Coisas giras que se lêem na blogosfera…

João Miranda, o inultrapassável paladino da liberdade em todas as actividades humanas, parece achar bem que um estado possa declarar que um dado cidadão estrangeiro é “combatente irregular” e o trancafie ad eternum sem lhe dar sequer um vislumbre do interior de um tribunal.
Miguel Sousa Tavares, o iracundo flagelador de maus hábitos e morais vacilantes, é bem capaz de ter plagiado extensas passagens do seu êxito, o “Equador”.
Já andam por aí alguns blogues a favor do “não” no referendo sobre o aborto. Um dos quais até inclui alguns conhecidos nossos. Outro, onde pontifica um tal “Camisa Negra”, lança estrídulos apelos a manifestações, com slogans de indiscutível inspiração maoísta: “Contra as manobras dos Pró-Abortistas e seus Lacaios.”
Isto vai andar animado…

Santana Lopes no seu melhor

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Certamente sem querer, o nosso ex-primeiro-ministro (ainda agora parece impossível que uma tal osga lá tenha chegado, não é?) desmentiu o João Pedro Henriques. Este acusou há dias Sócrates de mentir: “Eu, por acaso, acompanhei a campanha eleitoral que lhe deu maioria absoluta e não me lembro nada de o ouvir dizer que sim, que em determinadas circunstâncias até poderia acabar com umas quantas SCUTs”.
Hoje, Santana veio testemunhar que não foi bem assim: “(Sócrates) disse em várias ocasiões que com ele não haveria portagens nessas mesmas SCUTs a não ser daqui a uns anos, quando o nível de desenvolvimento dessas terras já o permitisse”. (Eu, por acaso, já não me lembrava disto; mas também não “acompanhei a campanha eleitoral” com o empenho do JPH…)
Moral da história: nem a chatear os adversários o Santana é competente.
Depois, na continuação da mesma crónica, ele esforça-se por nos explicar que continua sem entender nada do que lhe aconteceu nas eleições fatais. Afinal, ele perdeu não porque os portugueses estivessem fartos de ver um asno narciso e autista no poder, mas sim porque Sócrates fez “batota política”! A sério. E finaliza em tom poético-ressabiado: “A política não pode continuar a ser feita assim. Como em tudo na vida, só vale a pena se for com decência, com verdade e se for bonito.”
A lata da criatura não tem limites. “Com verdade”? O fulano que conquistou a Câmara de Lisboa montado numa resma infindável de promessas mirabolantes quem nunca ninguém cumpriu tem o descaro de vir agora queixar-se? São irritações destas que ainda me vão rebentar um aneurisma.
Amigo leitor: se quiser um curso instantâneo de demagogia barata, consulte a lista (por certo parcial) de promessas de Santana Lopes, ao candidatar-se contra João Soares. Julgo que só as duas primeiras, em 22, foram parcialmente cumpridas:

Continuar a lerSantana Lopes no seu melhor

O Insurgente rocks!

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Na nova residência do Insurgente (notícia bem atrasada) há quem tente animar as hostes com tiradas a leste das habituais prédicas a desmentir o aquecimento global, a extinção do bacalhau, o fiasco do Iraque, a Evolução, etc., etc.
O bom Helder (não confundir com os outros elders) presenteia-nos hoje com uma pequena celebração da chegada do último disco dos Motörhead. Não sei se ainda atordoado pela audição da coisa em altos berros, esquece-se de mencionar os Hawkwind ao falar de Lemmy Kilminster. Pecado mortal. E ainda se lembra de evocar Chet Baker a propósito de umas tais last rock’n roll stars.
No problemo. A simples leitura de coisas como “P**a que o p***u!” (“pariu” agora é palavrão?) no sorumbático Insurgente inspira a indulgência. Continua assim, Helder: dá-lhes com força. Mas tem atenção com as companhias. É que as más ideologias são como as más drogas: mais cedo ou mais tarde, dão-nos cabo da cabeça…

Orgulho e preconceito

João Pereira Coutinho gosta de se imaginar um aristocrata do pensamento. Vai daí, como todos os parvenus, decreta que os demais não passam de ignaros — a custo organizados em “hordas”, ou “tropas fandangas”— sempre animados da “ignorância larvar” que agora diagnostica, na sua coluna no “Expresso”, a toda a nossa classe política. Para ele, o povo gasta os seus dias a ulular aleivosias, a quilómetros das verdades supremas que esvoaçam nos amplos espaços daquele crânio abençoado. É que o rapaz sonha-se o único a saber ler (ou a consultar resumos na Amazon…) e acha que conseguir soletrar “Oakeshott” é prova de sapiência e elegância. Hoje, prova é que que não foi grandemente dotado nem de uma nem de outra.
O tema é o aborto. Para variar, o menino declara-se incomodado com o ruído que os inferiores andam a fazer em seu redor, começando pelo primeiro-ministro. É que ele, JPC, até já decidiu que não estamos a falar de “mulheres presas (quantas foram?)” nem de “tragédias de vão de escada (quantas existem ao certo?)”. E eis como a ignorância confessa se vê promovida a opinião: ele não sabe quantas pessoas afecta o drama do aborto, logo parece-lhe lógico, como bom solipsista, menorizar a questão.
As perguntas que realmente interessam ao jovem iluminado são: “será que um embrião constitui vida? E, em caso afirmativo, será que o Estado tem uma palavra a dizer quando a cessação de vida pode ocorrer?”
O português empregue nestas “primevas” questões é deplorável e o seu significado nebuloso (que é isso do “constituir vida”? E quem é que alguma vez duvidou que um feto estivesse vivo?). Mas, mesmo assim, ele não tem dúvidas em responder “sim” a ambas. Lá saberá porquê.
O que eu nunca entendi muito bem nestas discussões é a razão de quase todos aceitarem a inexistência de actividade cerebral como definição aceitável de fim da vida humana mas parecerem incapazes de usar padrão simétrico para marcar o seu início. Se um embrião ainda não possui sistema nervoso central activo, estando o seu córtex desligado do tálamo, não é ainda um ser humano. Poderá sê-lo “em potência” ou “aos olhos de Deus”; mas é tão senciente quanto um feto anencefálico. E que médico levaria até ao fim uma gravidez dessas?
Acho óptimo que cada um preze a sua própria bússola moral e acalente a superstição de sua preferência; mas não tentem obrigar os outros a segui-las, por favor.

PS: um pouco ao lado, na mesma página do “Expresso”, Daniel Oliveira trata de nos explicar que “quem ganha seiscentos ou setecentos euros não é rico. Nem sequer é de classe média”. Abaixo desse patamar, viriam os “miseráveis”. Pois. Mas em 2004, o ordenado mensal médio em Portugal não chegou a 922 euros. 769 para as mulheres. Ilíquidos. Agora, basta imaginar uma daquelas bonitas e úteis curvas em forma de sino para se ver o quão longe anda o Daniel de saber o que é na realidade a “classe média” deste triste país.

Desastres gastronómicos

Seguia eu já bem atrasado para o jantar de ontem, serra de Sintra acima, quando quase fui abalroado por um autocarro repleto de turistas de olhos claros e arregalados. Alguns golpes de volante e de travões depois, percebi que sobrevivera; eu e o grande recipiente plástico que viajava a meu lado, cheio do melhor cozido à alentejana de Lisboa (obra do excelso “Barrote Atiçado”).
Depois, pus-me a imaginar desenlace mais dramático e cénico. O meu rotundo cadáver disposto numa travessa de alcatrão, guarnecido por couves, batatas, nabos, grão, na fumegante companhia de carnes variegadas e enchidos das melhores proveniências. Quem desse comigo em tais preparos não duvidaria que se estava ali a aprestar um banquete para algum deus canibal.
Já me antevi em mortes mais dignas.

Bacalhaus e liberalismo

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Os alarmistas do costume não se cansam de anunciar desastres e cataclismos iminentes. Estes profetas da desgraça vivem em perpétua e feliz inimputabilidade. Não sabem nem querem saber quem irá pagar as extravagantes medidas profiláticas para desgraças que, afinal, só existem mesmo nas suas imaginações inflamadas.
Depois do aquecimento global, chega a vez do bacalhau. Baseados em estudos “científicos”, os arautos do fim do mundo proclamam agora que o Mar do Norte está quase a ficar devoluto das sápidas criaturas. A pesca em massa estaria a levar o bacalhau à extinção, imagine-se! Como não podia deixar de ser, a factura a pagar para fugir ao pesadelo cairia sobre as costas largas das empresas: até já houve quem propusesse o fim da pesca ao bacalhau. Aleivosia! Que seria da indústria de restauração nacional se alguém ligasse a esta malta?
Com estes disparates, a tropa fandanga de “cientistas”, esquerdistas e pseudo-ecologistas só revela, mais uma vez, a sua total iliteracia económica. Então não é óbvio que a pressão da procura levará inevitavelmente a um acréscimo da oferta? Que os simpáticos e generosos bacalhaus, confrontados com um número crescente de barcos pesqueiros, não tardarão a aumentar a sua fertilidade e a densidade dos seus cardumes? Como sempre, as leis do Mercado sobrepõem-se aos caprichos humanos e até à débil vontade das bestas marinhas. Amén.
Quanto aos estudos “científicos”, apoiam-se mais uma vez em metodologias estatísticas desacreditadas (mas não me perguntem agora porquê) e em modelos que, como todos imaginamos saber, “não substituem totalmente a realidade”. Digam-me: já andaram a vasculhar todos os fundos oceânicos do Mar do Norte? Contaram mesmo os casalinhos de bacalhaus que por lá andam, um a um? Claro que não! E se uma tal falácia lógica não basta para vos provar a alienação destes supostos defensores da Natureza, lembrem-se: a Estatística é aquilo que nos diz que um homem com os pés congelados e os cabelos em chamas está normal. Querem confiar o futuro da nossa Gastronomia Típica a uma “ciência” assim?

Prontos, pá!

No seu nunca demasiado reconhecido blogue Letratura (sic, sic!), um dos mais ‘úteis’ da blogosfera portuguesa, escreve Helder Guégués sobre a grafia Épa duma publicidade com os Gato Fedorento. A grafia deveria ser «Eh pá», sim senhor. Mas Helder Guégués (o apelido é, posso afiançar, autêntico ouro legítimo) prossegue, afirmando que o uso de «Pá!» se generalizou, ou floresceu, ou exorbitou, com os revolucionários de 74.

Posso testemunhar que não é o caso. Já nos anos 50 o uso era o dos futuros revolucionários ou o de hoje. E faz-me lembrar o que se passou com «Prontos!». A popularidade do Miguel Esteves Cardoso da «Noite da Má Língua» (o grande cronista já então era menos popular) fez atribuir-lhe a paternidade da interjeição. Ná, também «Prontos!» era, na Lisboa dos anos 50 (de mais cedo não sou testemunha), já frequentíssimo.

Curioso, este egocentrismo das nossas convicções linguísticas. Não é fácil ser jovem.

Punhetas a grilos reloaded

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Era uma promessa que lhe tinha feito. Havia de escrever um livro. Chegou a pôr um alarme no telemóvel: 2ª feira, 15 horas, avisar 10 minutos antes (era um nokia): “Escrever”. Assim mesmo. “Escrever”. Como se estas coisas de escrever pudessem ser programadas. Levanta-se pela manhã, toma um duche, engole os cereais e vai à bolina no seu carro que “pelo menos é seguro” e que “já não é a primeira pessoa que me diz, e até já li num livro: tem mais 28 cavalos do que diz o livro – sabes como é que é! Questões fiscais”.
E vai asinha porque não pode chegar atrasado ao seu novo emprego de escritor. O patrão é severo. Tem prazos a cumprir. Agora é um romance. Uma história de tragédia. Dois irmãos que se apaixonam um pelo outro e são obrigados a terminar a relação quando descobrem que, afinal, não são irmãos. Depois chega a hora de almoço e à tarde tem de se embrenhar numa comédia.
Há que arranjar um herói. Pode ser o terceiro irmão dos atrás avindos – e que hão-de deixar de o ser.
Que nome lhe havemos de dar? Passa este escriba pelas mesmas agruras dos pais que lhe escolheram o nome, assim como “uma espécie de pai sem o ser”.
Martim. Pronto. Pelo menos aqui não tenho quem discorde. Martim será e pouco me importa que lhe chamem Martins. Afinal as crianças são cruéis e os adultos são medíocres. Quase todos. Não podem ser todos. O próprio conceito e o simples facto de existir, como tal o impõe. Se o oposto da mediocridade, qualquer que ele seja, como de resto tudo o que é ou não é, não existisse, ou não fosse reconhecido, a própria mediocridade não existiria.

Mas já chega de conversa fiada. Vamos a coisas sérias.

Falava-vos do nosso herói! Lindo! Bela tirada: “o nosso herói”. Livro que o queira ser, deste escritor de empreitada (que não sou eu, atenção, não se esqueçam da promessa), tem de ter um princípio, um meio e um fim e, mais que tudo, tem de ter um narrador – aqui posso ser eu – que possa dizer coisas como: “o nosso herói”.

Martim. Irmão do Fulano e da Beltrana – assumi o “Beltrana”. Irmã borralheira da Fulana, a preferida, e da Sicrana, irmã do meio a quem pouco falta. Não é a sério, não se esqueçam, porque irmãos são mesmo só três – recapitulando, Martim, Fulano e Beltrana. Nesta história, sempre que não se quiser nomear alguém, Beltrana será. E assim no feminino, que fica giro. E o raio do corrector ortográfico automático quer à força mudar-lhe o género. Pois que aguente. Não é Beltrano. Nesta estória não há paneleirices, se o outro é fulano, esta tem de ser Beltrana. Bem bonda o incesto que afinal não era.

O Martim, como não pode deixar de ser, é aprendiz de feiticeiro. Genericamente: bruxo – como se intitula. Num mundo de medíocres ninguém quer ser aprendiz de nada. Vamos todos fazer de conta. Fazer de conta que somos felizes. Fazer de conta que somos experimentados. Fazer de conta que temos dinheiro. Fazer de conta que não são os nossos papás que nos sustentam. Fazer de conta que nos esfalfamos a trabalhar. Sábados, Domingos e feriados. E dizer mal do vizinho que é um calão e não trabalha nos dias de descanso – deve-lhe vir da droga. Mesmo que estejamos conscientes, e alguns não fogem a esse estado, o que só lhes deve aumentar a agrura, mesmo que estejamos conscientes que não fazemos a ponta de um corno, que é só para inglês ver e, pior que tudo, que somos, na maior parte das vezes, o nosso próprio inglês. O que interessa é que o nosso vulto apareça na fotografia, que os movimentos mecânicos do trabalho se possam vislumbrar. Mesmo que o produto de toda essa presença no local da ilusória faina não passe dum enorme flato, dado bem alto e ao vento para que ninguém possa ouvir nem cheirar.
Mesmo assim. Como num enorme auto de fé de bruxas vaidosas. E um bruxo não dorme, um bruxo não come, um bruxo não bebe, um bruxo não fode. Pois bem, este aprendiz de feiticeiro faz isso tudo e mais uma botas que sejam precisas para algum pobre ucraniano que por ai ande de pata ao léu.
E lá vai então o Martim para o escritório. Chegou. As estórias misturam-se, a do criador e da criatura. Está quase a tocar o alarme das 10 para as 10. Ele espera, pacientemente. Escrever. Tá bem, tá. Escreve tu que tens bom vagar. Eu tenho muito com que me entreter – afinal, sou o vosso herói, o protagonista desta história. Embora não me desagrade de todo a ideia de tão tonta corrente literária, não gabo a sorte de quem a quiser aproveitar. Demasiado trabalhoso e, tecnicamente, não passa de uma bela dor de cabeça. Ah, e não vende.

Tocou o alarme, toca a escrever.
“Era uma vez um cabrito montês”

655.000? Pode lá ser!

Até agora, imperam duas atitudes críticas face ao discutido estudo da Lancet. Há quem se limite a emitir uns grunhidos do tipo “the methodology is pretty well discredited”, sem se julgar obrigado a explicar porquê. E há quem assuma a posição fetal, esmagado pela imensidão do número. 655.000. Seiscentos e cinquenta e cinco mil mortos. Não pode ser; o meu jornal não me falou dessa gente toda; é uma percentagem enorme da população iraquiana; é impossível; deve haver algo errado com a metodologia.
Mas se quiserem ver como se pode pensar sobre um estudo destes, sem engolir acriticamente cada parágrafo e tentando encontrar explicações plausíveis, têm muito por onde escolher. Começando por quem entende de estatística, consultando depois um epidemiologista e um especialista em saúde pública, acabando por descobrir como é que os cadáveres conseguem fugir às manchetes indiscretas. Informe-se. Depois, se ficar indisposto, pode sempre voltar à santa inocência do “não pode ser!”

Uma pequena parábola sobre o aquecimento global

Eu cá recuso-me a usar cinto de segurança. Tenho aliás por certo que a torrente de palavreado — sempre oriunda dos sítios do costume — com que me desejam persuadir a prender-me à maldita engenhoca é apenas uma operação de propaganda esquerdista e estatista. Querem invadir a esfera sagrada das minhas opções íntimas e obrigar-me a afivelar o cinto. Mas eu continuo a duvidar que exista mesmo, no meu caso pessoal, uma correlação entre o uso da estalinista correia e uma possível degradação do meu estado de saúde. Parece-me mesmo que todo o investimento necessário à montagem desse sistema de segurança de duvidosa eficácia em milhões de veículos é um desperdício e um atentado à liberdade da indústria, que poderia, livre dessa canga, ter aumentado os seus lucros, melhorando assim a qualidade de vida de todos. Armado do meu saudável cepticismo, continuarei livre de cintos. Até ao improvável dia em que tiver mesmo um acidente grave e veja que a minha anatomia sofreu danos que até poderiam ter sido evitados com o funesto apresto. Então, e só então, pode ser que considere mudar de ideias. Se ainda andar por aí, claro.

Momento de lucidez?

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Ghazi Hamad é um dos líderes de topo do Hamas. Em artigo publicado recentemente no diário palestiniano al-Ayyam, Hamad condena a violência interna nos territórios palestinianos e questiona se esta não se tornou uma doença:

“Has violence become a culture implanted in our bodies and our flesh?”
“We have surrendered to it until it has become the master and is obeyed everywhere — in the house, the neighborhood, the family, the clan, the faction and the university.”
“(Violence) has taken away the language of brotherhood and replaced it with arms … It has stolen our unity and divided us into two camps, or three, or ten”
“Shouldn’t we be ashamed of this ugly behavior which scandalizes us before our people and before the world?”
“Are we all responsible? Yes. Do we all participate in this great sin? Yes,” wrote Hamad. “All of us have the desire not to see arms in the streets except with policemen”

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