No suplemento «Actual» do Expresso de ontem saiu este texto cá do Degas. Leia e trema.
Editar em português a literatura galega põe particulares exigências. A tremenda proximidade dos dois idiomas (ou das duas variedades de um só idioma) vem semear, a cada frase, escolhos ao tradutor. Muitos termos, muitas expressões, têm em galego um significado, ou um valor, ou uma carga, que não são os nossos. A própria morfologia cria problemas. O galego desconhece o nosso presente composto (em galego, «tenho lido» significa outra coisa), assim como ignora o mais-que-perfeito composto («tinha lido») e dá ao simples («lera») também sentido de perfeito («li»). Só o assíduo contacto com o galego escrito e falado pode guiar um tradutor.
Como se tal não bastasse, o galego actual, mesmo o literário, encontra-se repassado de castelhano. Tal como, um dia, sucedeu ao português. Mas as descoincidências connosco são inúmeras. Assim, um bom tradutor do galego tem de sê-lo, também, do espanhol. Esquecer isso é expor-se a riscos.
Li, recentemente, Ser ou Não, de Xurxo Borrazás (n. 1963), que a Deriva Editores, grande divulgadora entre nós das letras galegas, publicou. É um livro ousado, imensamente perspicaz, donde o mundo literário, o da escrita, mas também o do «marketing» e dos prémios, sai gostosamente desnudado.
A versão portuguesa é de Dina Almeida, com revisão de Isabel Ramalhete, mas o blogue do editor atribui à segunda a tradução, dizendo-a «rigorosíssima». Decerto, o português dela, ou delas, é nítido, desenvolto, a espaços brilhante. E a tradução do galego é, em si mesma, apurada. Mas labora num equívoco deprimente. Explico. Os galegos têm uma tolerância ao palavrão que nós desconhecemos e nos engana. Assim, e é um exemplo, o frequentíssimo «carallo» equivale, quase sempre, aos nossos «raio», «caraças», «carago», «diacho». Não mais do que isso. São, pois, imensamente inadequadas as passagens do tipo «um retiro do caralho», «A que caralho é que tu cheiras?», «a ti que caralho te interessa?», «Ao caralho! – exclamou o professor», e dezenas, dezenas de outras. O tradutor supor-se-á atrevido. Mas está apenas a ser ridículo.
Depois, há o material espanhol, já não questão de gosto mas de informação. Há centos de termos enganosos, os «falsos amigos», a pedirem cuidado. Que faltou a este livro. Aí damos com «apenas» (por «mal», «quase não»), «traje» (fato), «tópicos» (clichés), «compasso» (bússola), «Venha!» (Vamos a isso!), «noiva» (namorada), «chatear» (fazer um «chat»), «logro» (conseguimento), «colónia» (água-de-colónia), «prata» (dinheiro), «corrida» (ejaculação), «ovos» («tomates»), «por certo» (aliás), «escaparate» (montra), «torpe» (desajeitado), e mais, bastantes mais. Para quem recear um estado de coisas em que o espanhol desestabilizou definitivamente o português, este livro é um pesadelo.
Entenda-se-me bem. É importante conhecer espanhol, falá-lo com segurança, transmitir nele, com garbo, a cultura portuguesa. Mas, também, não ceder um milímetro do nosso idioma.
E quanto ao galego, mais isto. Tente conservar-se, onde for adequado, a coloração lexical ou idiomática do original. Não para que a absorvamos. Mas para que, tal como a brasileira, ela venha tocar-nos, serenamente, os sentidos e o entendimento.