Que a Alemanha possui o recheio e a chave do cofre europeu, todos sabemos. Que, por isso, e enquanto a sua situação económica for boa, não tem interesse em alterar o rumo da política europeia por si definida, também sabemos e, imaginando-nos alemães, até compreendemos, apesar de não termos de nos resignar, não sendo nós, de facto, alemães e sendo o nosso interesse diferente. Que Portugal está temporariamente subjugado pelos atuais credores e sem margem para não cumprir os termos do acordo de empréstimo sob pena de entrar em bancarrota também não há grandes dúvidas. Mas que estas circunstâncias anulem a luta política interna já não é compreensível. O atual governo, se governa mal, deve ir embora. Se diz mentiras, inventa desvios colossais e comete erros flagrantes na elaboração do orçamento, deve suscitar um clamor de revolta e ser corrido na primeira oportunidade.
Ainda ontem, Passos disse cínica e ambiguamente que não deixaria de cumprir um acordo que não negociou. Ora, todos sabemos que, não só não deixa de o cumprir por se identificar com ele (nas suas próprias palavras), como também o ultrapassa em dureza, declarando repetidas vezes, e com grande entusiasmo e frieza, ir “ainda mais longe”, o que só nos pode levar a concluir que, fora ele a negociá-lo, o acordo seria ainda mais violento para a população. Donde, a expressão “o acordo que não negociou” não passa de veneno sobre os seus antecessores, lançado de uma maneira parva e reles. Não só o PSD participou nas negociações como também não foi dada qualquer hipótese ao anterior governo de não ser ele a negociá-lo, como pretendia Sócrates, que, de modo sábio mas incompreendido, tudo fez para o evitar.
Voltando ao primeiro parágrafo, a nossa situação de escravizados não pode nem deve impedir a constituição de uma alternativa interna a este governo. E aqui discordo do que diz Porfírio Silva no final deste seu post Reflexões em voz baixa. Não falando já no princípio da igualdade na distribuição dos sacrifícios, bastante desrespeitado neste momento, e que os socialistas poderiam garantir melhor, ou no radicalismo neoliberal da dupla Gaspar/Passos e a sua visão, deslocadamente salazarenta, dos trabalhadores e dos apoios sociais que a oposição pode e deve combater e, uma vez no governo, repudiar, há também as características pessoais de quem governa e de quem pode vir a governar. Esta tropa fandanga que tomou de assalto o executivo com base em mentiras é leviana, socialmente insensível, experimentalista usando cobaias humanas e focada no dinheiro, perfeitamente confortada com o facto de este não ter pátria e de Portugal, irremediavelmente, fatalmente, convenientemente pobre, dever enxotar os seus miseráveis habitantes para longe e ser posto à venda. Francamente, não me parece difícil propor uma alternativa aos portugueses. Assim haja um líder à altura.
Pode ser que, noutros países europeus onde os governos de direita não estejam a implementar medidas tão radicais e recessivas como em Portugal, as oposições sociais-democratas ou socialistas tenham alguma dificuldade em encontrar um discurso e políticas alternativas convincentes (no entanto, mesmo em França, tudo parece indicar que a simples mudança de personalidades agrada ao eleitorado). O caso de Portugal é diferente. Este governo quer desmantelar o Estado (exceto os cargos que ainda pode distribuir pelos amigos) e os serviços públicos, propósito verdadeiramente raro na Europa, e ainda mais raro no próspero Norte. O governo de Sócrates, ao mesmo tempo que procurava o rigor orçamental sem cair em desregulamentações ultraliberais, pressionava a Europa (na realidade a Alemanha) para que, reconhecendo o esforço de ajustamento, desse condições de crescimento ao país. As críticas ao atual líder do PS prendem-se com o facto de não fazer uma defesa clara dessa linha de atuação (ou, se a defende, apresenta-a como nova, nunca reconhecendo mérito a quem já se bateu por isso e pagou um elevado preço), linha essa que é a única que, ainda hoje, faz sentido: um ajustamento gradual tendo em conta a crise brutal de 2008 e ao que ela obrigou, acompanhado de estímulos à economia. Seguro não defende o legado positivo do governo anterior, nem quando atacado pelo atual de maneira mentirosa ou demagógica. Com tanta matéria criticável na atuação de Passos e seus sócios, Seguro mostra-se no geral pactuante, hesitante e receoso de fazer ondas. Merece ser criticado e duramente. Além de não ter qualquer carisma nem visão própria para o país. Neste momento, e dando de barato que o abandono do clube do euro é uma impossibilidade (perspetiva que pode mudar perante um sufoco sem fim à vista, dependendo da situação a que chegarmos dentro da moeda única), é para todos claro que a situação internacional obriga a um completo rigor orçamental. Mas rigor orçamental não é sinónimo de desmantelamento do Estado nem de empobrecimento programado. É aqui que deve entrar um bom líder da oposição, que se mostre genuinamente crítico do fundamentalismo dos atuais governantes e convicto de saber fazer diferente para melhor, o que, repito, não me parece difícil. E que lute por isso. Não é de todo o caso do atual secretário-geral do PS.