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Um livro por semana 26



«A mulata do engenheiro» de Inácio Rebelo de Andrade

Poderia chamar-se «O futuro não estava lá» porque esta narrativa de 315 páginas tem essa conclusão: trata-se de um logro, uma ilusão, uma mentira. Carolina, menina nascida em Angola, filha de um branco e de uma negra, andava de olhos abertos mas não via. No Colégio de Nova Lisboa as criadas e as serventes eram negras; as professoras eram brancas. Na missa dominical os brancos ficavam nas filas da frente e os negros nas filas de trás. Na estação de comboios a caminho da fronteira com o Catanga (ao tempo belga) via as carruagens com bancos estofados para os passageiros brancos e bancos de ripas para os negros. Nem uma prolongada estadia em Lisboa onde frequentou a Universidade e onde conheceu o marido afastou da sua mente a ingenuidade de pensar que em Angola era possível uma convivência cordial entre brancos e negros. Foi preciso um empregado do Clube da Companhia de Caminhos-de-ferro de Benguela adverti-la de modo brutal para descobrir essa verdade: «A senhora não pode nadar aqui. Esta piscina é só para brancos. Faça o favor de sair!» O episódio da piscina provoca na protagonista uma amarga reflexão: «Tão segura das suas certezas, com tantas leituras, com tantos estudos, porque ignorara até esse dia que na sua terra, onde nascera meio-branca, meio-negra, os brancos mandavam porque eram brancos e os negros obedeciam porque eram negros?» Obrigada a regressar a Lisboa por não suportar o ambiente hostil da sua terra, Carolina percebe que está condenada a viver entre duas terras, entre dois mundos, entre dois universos. Viaja no paquete Príncipe Perfeito em Novembro de 1959 do Lobita para Lisboa mas sabe que o seu futuro não está em Lisboa tal como não estava em Angola.

(Editora: Novo Imbondeiro, Capa: Francisco Amorim)

Um livro por semana 27

«Porto – da história e da lenda» de Germano Silva

Há neste livro mais história do que lenda: a formação e a prática de quarenta anos de jornalismo (Jornal de Notícias) levam Germano Silva para a procura de documentos escritos. Por exemplo este retrato do Porto em 1549 dum tal Confalonieri, secretário do Núncio Apostólico a caminho de Santiago de Compostela: «A cidade é pequena, muito linda, com muitas hortas, fontes e tem dois mil fogos. Está cercada de muros, abundam nela os panos de linho a bom preço. O fio é branco e finíssimo. São os mais famosos do reino. Os ares são saudáveis e os víveres baratos. Existem muitos mosteiros. A catedral é muito antiga embora mão seja muito grande. Há muito pescado barato. Tudo é fresco, alegre e florido.» Desfazendo um equívoco sobre o santo mais popular do Porto, o autor explica: «Noutros tempos chegaram a fazer-se no Porto grandes festas ao Santo António. Na desaparecida Capelas de São Roque, por exemplo, que ficava à entrada da Rua do Souto e que foi demolida aquando da abertura da Rua Mouzinho da Silveira, havia grandes festejos públicos. Os rapazes solteiros das redondezas eram os mordomos das festas. O Santo António tinha festa também na Capela da Lada, à Ribeira, e no seu dia as tabernas e estalagens do Souto e dos Pelames, e as estalagens de boas tarimbas e excelentes acomodações para pessoa assim como cavalgaduras, iluminavam os nichos do santo protector dos seus negócios.» Quanto às lendas temos a que diz respeito ao facto de Almeida Garrett nunca ter sido eleito deputado pela sua cidade. Segundo Camilo tal deveu-se ao facto de o grande romântico ter chamado ao Porto «grande aldeão». O meu voto tu não levas! – terá dito o Porto mas esse é um assunto de lenda; não de história.

(Editora: Casa das Letras, Capa: Neuza Dias, Prefácio: Geraldo Coelho Dias)

Vinte Linhas 311

Barretes verdes há muitos, seu palerma…

Amália Rodrigues está na ordem do dia. Por causa do filme que já vi por aí classificado como o pior (?) filme português de todos os tempos (as opiniões são livres) mas também por causa do livro – uma «Fotobiografia» editada pelo Círculo de Leitores.

Hoje vive-se tudo numa pressa. Presumo que os livros (em geral) também sofrem desse problema. Uma foto de Amália Rodrigues em Alcochete no ano de 1949 no Aposento do Barrete Verde surge com a seguinte legenda: «nas festas do Barrete Encarnado (em Alcochete) em Setembro de 1949». Ora bem – todos nós sabemos que o que é de facto Encarnado é o Colete e esse é de Vila Franca de Xira. Barrete é verde; colete é encarnado. Ponto final.

Outro dia vi num outro livro sobre o século XX português numa legenda um erro na identificação de uma corporação de Bombeiros de Lisboa: os Voluntários da Ajuda cuja sede é na Praça da Alegria apareciam referidos como sendo do Bairro da Ajuda. Lapso talvez originado no seu nome que nada tem a ver com geografia mas com atitude.

Lembro-me também de um catálogo de um alfarrabista que se referia ao Zé do Telhado como João do Telhado. Alguém lhe chamou a atenção para o evidente lapso e a resposta veio fulminante: «Isso é a mesma coisa…»

Fala-se muito em raças em vias de extinção mas fala-se pouco nos revisores de imprensa. Será que já estão todos extintos, afastados, reformados, dispensados e ignorados? Será verdade que isto não passa de um sinal dos tempos? Será que eu estou a ver mal e os outros é que são senhores da razão? O barrete é mesmo encarnado?

Um livro por semana 29

«Termo de Óbidos» de João Miguel Fernandes Jorge

A partir do Bombarral o espaço dos poemas inclui Sobral, Delgada, Adão Lobo, Pêro Moniz, Salgueiro, Casalinho, A-dos-Ruivos, Columbeira, Barrocalvo, Carvalhal, Óbidos, Rio Maior, Caldas da Rainha: «Voltei ao café onde me levavam quando rapaz. /E onde entrei algumas vezes quando ia às Caldas. /Na parede o unicórnio, o cavalo alado, um terceiro espécime mais pequeno que certa aura ilumina bailado em ouro de gentileza /sobre azul que fôra turquesa e o restauro tornou azul ganga.» O ponto de partida é a memória mas não apenas pessoal («Já passaram tantas coisas pelas nossas mãos e imagens que foram dor e alegria já se foram além para a distância da tela povoada de noite») mas também aberta à História: «Nem se fala sequer de um drama esquecido – pústula de que nos envergonhamos – os que morreram / e chegavam dentro de um caixão / nem mereceram o nome a letra de ouro / no átrio do município ou a negro / na mais sombria parede da igreja paroquial». A taberna, por exemplo, pode ser a doce memória da infância («D. Beatriz tirava de dentro de um balde mergulhado no poço / a laranjada que eu bebia em dia de muito verão») mas também o fascismo (a taberna na política): «As tascas vendiam o negro vinho ofereciam a quem passava o cheiro húmido moldado em serradura. / Tinham um ar soturno esses senhores, sei hoje homens do regime». A memória viaja entre a paisagem («O meu pai levou-me à lagoa de Óbidos e tentou mesmo as salinas de Rio Maior») e o povoamento sentimental da paisagem em «E eu ia com meu pai»: «ensinou-me o bem e o mal, a recordação e o esquecimento». O único poema fora desta geografia, memória do Liceu Passos Manuel (Lisboa), é chave do livro: «o passado tem feridas que nunca vão sarar e se as recordo, estou a esfregá-las com sal.»

(Editora: Relógio d´ Água, Capa: sobre desenho de João Cruz Rosa)

Um livro por semana 30

«Antecedentes criminais» de Amadeu Baptista

Autor que se estreou em 1982 (com «As passagens secretas») Amadeu Baptista celebra em 2007 25 anos de vida literária com esta antologia pessoal. Não é fácil noticiar 263 páginas de um livro com um quarto de século de trabalho literário. Vejamos dois dos aspectos. O poeta regista o seu mundo pessoal no poema da página 10:

«Até que um dia, já adolescente / Descobri o poder da poesia que, a par com o mar / aprendi a fitar com imprudência por serem / revoltosas essas águas em que o dia / e a noite se confundem. Era essa imprudência / o desassombro de ouvir o longínquo e o genesíaco / com homens e mulheres a recortarem-se / da imensidão dos tempos, a cantar a dolência / e o sublime, a invectivar o mistério e a ampliar / o enigma que há entre os enigmas ou o surto / de sentidos que, num sopro, agrega ao infinito / o infinito, para que haja mais infinito no sentido.»

Mas regista também o Mundo e a História como em «Kefiah»:

«Sobrevivemos acossados, o mar como única fronteira, deserto / e reminiscência do labor da alegria, soldados entrincheirados / esperando a bandeira neutral da morte, o retorno às origens / o sal do sangue, as costas voltadas para a fosforescência da pureza / uma tristeza de matizes carregados pelo vínculo de uma cumplicidade / espoliada e incorrespondida. / Sobrevivemos na rebelião transfigurada, adubo e excremento dos que / sangram, energia debilitada esperando que alguém chegue, partilhe / do nosso pão, durma na nossa cama / e dê um passo em frente, em direcção à nossa sede apaziguada e pelo vinagre / a ferida aberta de onde jorra sangue e água purificadora, a coroa / de espinhos perfurando-nos as têmporas, o chicote / queimando-nos o dorso arquejante»

(Editora: Edições Quasi, Apoio: Câmara Municipal de Almada)

Vinte Linhas 310

A maior crise talvez seja a das consciências (penso eu…)

Ainda não tomei o peso daquilo a que chamam «crise». Empregado bancário entre 1966 e 1996, tornei-me jornalista com carteira profissional em 1997 e fui despedido em Novembro de 2006 do único jornal cuja redacção integrava. Tenho a casa paga e o carro também. Como fui delegado sindical desde 1972, tenho uma reforma muito pequenina mas vou-me aguentando. Quando era criança e os circuitos comerciais do mundo estavam ainda estoirados pela guerra de 39-45, lembro-me bem de esperar que a galinha pusesse mais um ovo para fazer uma dúzia que se trocava na mercearia do senhor Ernesto por meio quilo de arroz, de açúcar, de massa, de sabão ou por «duzentas» de café. Isso sim eram tempos difíceis quando as mulheres faziam milagres para inventar todos os dias uma ementa com aquilo que a terra dava. Outro dia fui com a minha filha mais velha tirar umas fotografias para o bilhete de identidade do meu neto. Entrámos numa loja de fotografias e dissemos ao que íamos. Impassível, como se nada fosse com ele, o homenzinho do balcão não nos disse que agora as fotografias para o bilhete de identidade (tal como as do passaporte) são tiradas numa máquina electrónica que existe nos serviços. Qual quê! Isso dava muito trabalho. Lá pagámos oito euros e tirámos as fotografias que não servem para nada. Em vez de ser honesto e de dizer a verdade preferiu fingir a aceitar a nossa inocência. Preferiu confundir a esclarecer. Para mim isto é mesmo uma crise mas uma crise de consciências – neste caso de falta dela. Ganhou oito euros e perdeu o quê? Pelo menos perdeu um cliente. Não me sinto com vontade de lá voltar. Posso estar errado na minha conclusão mas parece-me que a maior crise é essa, a da consciência.

Um livro por semana 98

«Tarde Azul» – Poemas de Amor de Saúl Dias e Desenhos de Julio

Júlio Maria dos Reis Pereira (1902-1983) está presente nesta antologia numa dupla inscrição: o poeta Saúl Dias e o pintor Julio. Poeta do Amor e do Encontro, os seus poemas são um ponto alto no lirismo português: «Só porque me sorriste / nessa tarde / o sol inundou a cidade. / E no meio do asfalto / entre o rumor dos táxis / surgiram de repente / árvores agrestes cheias de flores e pássaros. / E eu senti-me como se ouvisse / tangido lá da infância / um roque de novena / ou percorresse, alheado e sozinho / num dia de Verão entre zumbir de insectos/ um caminho de aldeia».

Mas também Poeta da consciência da sua própria escrita, como poeta moderno que é: «Versos / escrevem-se / depois de ter sofrido. / O coração / dita-os apressadamente. / E a mão tremente / quer fixar no papel os sons dispersos…/ É só com sangue que se escrevem versos.» Dessa relação entre poema e poeta, entre canção e reflexão, nasce uma ideia para todo o sempre: «O Poeta morre / mas não cessa de escrever. / Enquanto escreve / vive / ressuscitando fugidias horas / mudadas em auroras… / Uma pequenina flor / pisada por quem passa / é agora / um milagre de cor / uma negaça / de mil desejos… / E os beijos / que nunca foram dados / tornados tão reais…»

(Editora: Bonecos Rebeldes, Organização: Maria João Fernandes e Gonçalo Salvado, Capa: Fernando Martins, Apoio: Círculo Católico de Operários e Câmara Municipal de Vila do Conde)

Palestina

Não são donos sequer da sombra

Que no chão projectam ao passar.

Tudo ou quase tudo lhes foi tirado

A terra, os ribeiros, as ovelhas dispersas pela terra

Os títulos de posse das pequenas quintas.

Tudo ou quase tudo

Menos o futuro amarrotado num bolso

Menos a esperança, menos o olhar.

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(in «Leme de Luz» Edição Sol XXX Poesia 1993)

Um livro por semana 32

«Cartas de Marear» de Mário Machado Fraião

Este livro de crónicas trata de uma viagem no tempo português dos anos 50 e 60 em duas cidades: Horta e Lisboa. Na Horta os filmes vistos no Salão do Sporting Clube da Horta vinham revelar um mundo «vasto e variado onde havia muito mais na vida que frequentar as aulas, regressar a casa no cortejo dos alunos do Liceu, vestir o fato aos domingos, pentear o cabelo, escovar os sapatos, espera as meninas depois da missa.» Já em Lisboa o autor vem encontrar cafés não iguais ao Internacional ou ao Volga mas onde era ainda possível «trocar ideias, impressões, experiências, contar anedotas, comentar estreias, novas publicações, jornais, discutir, conspirar, escrever poemas e manifestos». Mas escrever sobre a «maior cidade pequena do Mundo» como lhe chamou Pedro da Silveira, é também lembrar os mestres e maquinistas dos barcos do Canal que arriscaram as suas vidas para salvar outras vidas, doentes em perigo, mulheres em trabalho de parto: Mestre Guilherme, mestre Alfredo Saca, mestre Augusto Pau de Lérias, mestre Simão. Há aqui memórias de livros e autores, etapas de uma outra viagem de Mário Fraião: Jorge de Sena, Fernando Arrabal, Gonzalo Torrente Ballester, Teixeira de Sousa, Francisco Coloane, Vitorino Nemésio, Raul Brandão, Carlos Faria, José Martins Garcia, Rui Duarte Rodrigues, Almeida Garrett, Pedro da Silveira. Mas sempre, acima de tudo e para além de tudo, o fascínio das viagens: «Pedaços de nós mesmos que sugerem o dia de São Vapor nas ilhas pequenas, as partidas na doca da Horta, as despedidas, mulheres a chorar, um caixeiro viajante a contar anedotas, os bagageiros transportando as malas e os sacos de viagem pelas escadas íngremes e muito estreitas, os diversos sinais de aviso aos passageiros, a espumas das hélices. O apito final. Largaram-se os cabos, «adeus, adeus», soltam-se os lenços, chapéus e cachecóis. Alguns vão a Lisboa tratar de assuntos particulares. Outros, talvez, não voltam nunca mais.» Um livro para ler e devorar, tal a paixão quer percorre as suas páginas.

(Fotos: Júlio Vitorino da Silveira, Edição: Albagrafe Lda., Foto do autor: Renato Monteiro)

Vinte Linhas 309

Não há nada melhor do que ver o nosso trabalho a ser menosprezado, ignorado e apagado

Esta primeira crónica de 2009 é, sem sombra de dúvida, uma peça diferente. Ano novo, vida nova. Em vez do pessimismo, o optimismo; em vez da tristeza, a alegria; em vez da morte, a vida. Não há nada melhor do que ver o nosso trabalho a ser menosprezado, ignorado e apagado. É uma sensação de felicidade, quase de júbilo. Ofereceram-me o livro «Sonata para 5 violinos» de Afonso de Melo, editado pela Prime Books. Na bibliografia, como não podia deixar de ser, lá aparece o livro «Glória e vida de três gigantes» mas como «Glória e vida de três grandes» e os autores em vez de três (António Simões, Homero Serpa e José do Carmo Francisco) aparecem apenas dois – António Simões e Homero Serpa. Corria o ano de 1994 quando, convidado por Vítor Serpa e António Simões, me lancei ao trabalho. Com o apoio de Ilídio Dinis (vice-presidente do SCP) e do coronel Cunha Bispo (director das instalações desportivas) entrei nas catacumbas do Estádio José Alvalade à procura de elementos para a história do Sporting Clube de Portugal. De lá saí com relatórios, contas, papéis diversos, memórias justificativas, documentos dos seccionistas. Coisas curiosas como por exemplo os ordenados dos jogadores de futebol nos tempos do amadorismo, o abaixo-assinado dos futebolistas leoninos a pedirem para o senhor Jean Luciano não ser despedido ou o castigo de alguns deles por falta de empenho num jogo de reservas contra o Alhandra num sábado à tarde. Na ficha técnica do livro editado por «A Bola» lá está o meu nome mas na bibliografia deste «Sonata para 5 violinos» o meu nome (e o meu trabalho) está rasurado. É uma sensação de alegria, quase de júbilo. Não há nada melhor.

Um livro por semana 33

«Pequenos elogios» de Joaquim António Emídio

Trata-se do 11º título deste autor (Chamusca, 1955) que se estreou em 1983 com «Os dias sonâmbulos». O ponto de partida do livro é a paisagem povoada da memória do amor:

«gosto do café sem açúcar mas peço-te / por favor um pouco da tua saliva / na minha chávena para aprender / a gostar do café muito doce.» O poeta viaja a partir do seu bilhete de identidade: «Sou um homem do campo / tenho as mãos grandes / e os dedos grossos / de amassar o pão para comer». O lugar da viagem pode ser Roma («depois de subir / uma das sete colinas de Roma / entrei numa igreja / e cheirei as flores de um casamento») ou pode ser a Chamusca: «Os rouxinóis já não cantam / nos salgueiros da maracha / venho de lá agora / pelo caminho das searas / onde o rio é mais livre / sem a lembrança das margens». Não é inocente a referência ao espaço entre terra e água como ponto de encontro para o amor: «vem comigo apanhar sol na cabeça / e ouvir os pássaros da vindimas / que trazem no bico as novidades da vila / e nas asas o cheiro a mosto das adegas». O amor não é uma abstracção e só existe quando os amantes estão perto da Terra: «Amo o teu rosto de lua azul / sonho com a tua saliva doce / de tantos beijos adiados / sou o confidente das ervas / que crescem à tua porta / o sol que entrou pela tua janela / sou eu a correr para ti de braços abertos / um dia vou amanhecer nos teus olhos / e florir nas tuas mãos». A escrita é uma viagem que tem referências: «quem me dera ter nascido / com o coração do Ruy Belo / e o sangue impróprio / do Jorge de Sena». Para o poeta «Os livros são crianças / a morrer de sono / comendo das nossas mãos / o pão e o sonho». Num terreno armadilhado pelo lugar-comum, eis um livro onde a voz própria do poeta se ergue, se articula e se projecta na memória do amor.

(Editora: Terra Branca, Impressão: Europress Lda.)

Um livro por semana 34

«O pastor das casas mortas» de Daniel de Sá

As aldeias também adoecem como as pessoas. Em politiquês corrente diz-se «desertificação» mas na verdade (e em português de lei) esta doença chama-se abandono. A Aldeia Nova da Serra tem 58 habitantes pelo censo de 1960 e Manuel Cordovão é o guardador das suas casas envelhecidas e das paixões que ficaram por viver. Sobre Graça Manuel escreve na sua agenda: «Agora pronto, acabou-se tudo, ela vai ser uma infeliz e eu também. Estranha forma a minha de felicidade! Sou feliz só por pensar que podia ter sido feliz.» Mais à frente é Olívia que afirma a Manuel: «Eu nunca vou gostar de ninguém como gosto de ti mesmo que eu saiba que tu nunca gostaste de mim como gostas da Graça.» Mas não é apenas das paixões da alma que esta novela trata; existem as paixões políticas como quando a luz eléctrica foi inaugurada na aldeia: «Se vossas excelências esperassem uns anitos nem precisavam de se incomodar com a gente, porque a gente já não estava lá.» Porque é grande o fosso entre a gente da Cidade e a gente da Serra: «Aqui na serra, aos dez ou doze anos, já sabemos tudo o que precisamos de saber. As raparigas sabem fazer queijo, os rapazes sabem guardar as ovelhas. Só isso.»

O protagonista acaba por casar com Teresa que tem um cancro e quer vir morrer à serra: Graça (que foi o primeiro amor) e o marido são as testemunhas na cerimónia da ermida. Nesta partida de sueca, metáfora do jogo da vida, entre as cartas do amor e da morte, as vazas duram mais tempo porque há um parceiro na América e a resposta demora duas semanas. E a moral da história surge límpida e incisiva na última página desta novela: «Mas a aldeia continuaria morta. Porque uma aldeia não são só as casas mas sobretudo as pessoas. E essas não queriam, ou não podiam voltar.»

(Editora: Ver Açor Lda., Grafismo: Hélder Segadães)

Um livro por semana 35

«A árvore seca» de Alexei Bueno

Alexei Bueno (Rio de Janeiro, 1963) publica regularmente poesia desde 1984 além de ter editado diversas obras completas (poetas brasileiros e portugueses) e de ser um excelente tradutor de poesia – Poe, Longfellow, Mallarmé, Tasso e Leopardi, entre outros.

Par dar aos nossos leitores uma ideia da poesia deste autor vejamos este espantoso retrato do Brasil no poema «Speculum Patriae»:

Um povo feio, essencialmente feio, / Fora os meio imigrantes. Cada dia / Uma outra humilhação que se anuncia, / Um saque, um roubo, sem controle ou freio. / Uma horda de imbecis, de olho no alheio, / Cuja rapina é a única mestria / Pretensamente os donos da alegria / Da esperteza, da graça e Deus no meio. / Um pátio dos milagres dos devotos / De tudo, irracionais, analfabetos / A orar, a praguejar, a cumprir votos, / À espera do que os salve, em meio a insectos, / A matar-se, a banhar-se nos esgotos / Das praias sem iguais, entre os dejectos.

Trata-se de uma poesia que não teme chamar as coisas pelos seus nomes embora também não deixe de reflectir sobre a poesia (ela mesma) e os poetas. Como em «Fernando Pessoa»:

Venceste. O reino é teu. Torceste a sina. / Compraste a vida invicta com a outra vida. / sem ter sido, ela é a nossa. A sombra puída / Do teu corpo nos guia em cada esquina.

No posfácio Gil de Carvalho chama a atenção para o facto de Bueno ser «um poeta de várias culturas». O mesmo é dizer um poeta a descobrir pelos leitores portugueses. Com toda a urgência e para seu proveito intelectual. Porque nem só de pão vive o homem.

(Editora: Bonecos Rebeldes, Capa: José António Coelho, Posfácio: Gil de Carvalho)

Um livro por semana 96

«Chama de água» de Fernando Botto Semedo

A partir de uma citação de João Rui de Sousa («Azul é quando um homem se ultrapassa») e de uma dedicatória («para o avô Diogo»), organiza-se este volume de poemas.

O ponto de partida é a infância: «Na minha infância já escrevia poemas sem o saber: / era a minha surpresa perante tudo novo / a cada dia era o meu sonho, a minha dor / o meu afastamento da realidade como hoje».

O ponto de passagem é a alma: «A minha alma é um sol de lágrimas puras / bailando pelos campos de uma Primavera eterna / onde todos os seres mortos ressurgem, límpidos / aos olhos das papoilas brancas que existem / quebradas de dor em nuvens / de uma música simples e irreal / onde coloquei o meu primeiro poema, rasgado (…)»

O ponto de chegada é o amor: «Doem-me estes poemas tão pobres, tão humildes / eles são a minha mais pura alegria na casa / da dor e do absurdo e trazem sempre consigo / todas as namoradas que perdi quando caí / por todos os abismos pelos quais tento transpor-me»

Só assim poderá concluir: «Planto aqui um poema humílimo. / Sou o poeta feliz que desde sempre criança foi / em chama de água, em coração de vigília».

Depois de «Poemas simples» e «Poemas de um livro rasgado» de 2007, este «Chama de água» confirma a coerência dum trajecto poético iniciado em 1982 com «Ágoas Livres»

(Capa: Fernando Botto Semedo, Execução Gráfica: Gráfica 2000)

Um livro por semana 97



«Noites de Insónia – volume 1» de Camilo Castelo Branco

Trata-se de uma miscelânea literária («vou ao jazigo das minhas ilusões») dispersa numa série de livros entretanto reunidos em volume. A crítica («Morte de D. João»), a polémica (Teófilo Braga), a incursão na História (Egas Moniz), a novela («Aquela casa triste»), a opinião sobre os jornais: «A imprensa diária tem olheiros que superintendem em estupros, facadas, roubos e incestos mas a alçada destes espias não chega até ao esquife do defunto sem testamento». Mesmo nos lapsos, Camilo consegue fazer humor: «já escrevi a necrologia de um que, por sinal, estava vivo e nem sequer me agradeceu com um bilhete-de-visita, ser eu a única pessoa de Portugal que lhe ajuntou ao nome esquecido quatro palavras de saudade e dó». Sobre a situação política de 1874 vejamos esta nota: «A abstenção política é mais do que a morte: é a indiferença pelos males sociais, é a história deste torpe individualismo que nos corrompe, é a gangrena moral desta sociedade em dissolução, é a anasarca sintomática da lesão orgânica que despedaça a nossa existência, é o maior de todos os crimes porque é uma tranquilidade fictícia, comprada à custa dos legados que nós íamos entesourando para as gerações futuras. A democracia agoniza no século dezanove quando desabrochava e se abria em flor na árvore que nós todos plantámos, regada com o sangue precioso de tantos mártires, em nome dos quais deviam colher e adorar no futuro o fruto dos nossos trabalhos.» Mesmo na simples miscelânea, Camilo está presente com a sua força de grande escritor.

(Editora: Bonecos Rebeldes, Capa: Fernando Martins, Revisão: António Bárcia)

Um livro por semana 43

«Morreste-me» de José Luís Peixoto

Depois de ter sido editado no «D.N. Jovem» em 1996 e na Colectânea Jovens Criadores em 1998, este texto tem tido sucessivas edições em livro desde a primeira em 2000. A partir de uma vivência em ambiente de hospital («As mulheres falavam, os homens fumavam cigarros») surge a memória do filho a recordar o pai: «Dizia nunca esquecerei e hoje lembro-me». O texto oscila entre o diálogo com o pai («Se pudesse tinha-te protegido.») e a memória do filho: «Eu andava no primeiro ano da telescola e não pensava nas notas.» Na paisagem povoada pelo luto, a memória do afecto é uma agressão: «Pai. Tudo o que te sobreviveu me agride. Pai, nunca esquecerei.» O texto é uma viagem («Vou. Avanço. Avanço e regresso. E cada quilómetro um mês e cada metro um dia. Avanço para o que fomos.») e a conclusão é uma visão inversa dos papéis – o pai é no texto o pequenino; o filho fala como se fosse o pai: «Pai. Dorme, pequenino, que foste tanto. E espeta-se-me no peito nunca mais te poder ouvir ver tocar. Pai, onde estiveres dorme agora. Menino. Eras um pouco muito de mim. Descansa, pai. Ficou o teu sorriso que não esqueço, ficaste todo em mim. Pai. Nunca esquecerei.» Este livro (comovente testemunho numa escrita prosopoética de rara beleza artesanal) é dedicado è memória do pai do escritor José Luís Peixoto – José João Serrano Peixoto.

(Editora: Temas e Debates, Capa: José Afonso Furtado)

Um livro por semana 95

«Fidel» por José Fernandes Fafe

José Fernandes Fafe (Porto, 1927) tem o perfil indicado para escrever um livro sobre Fidel. Foi embaixador de Portugal em Cuba de 1975 a 1977. Antes já tinha estado em Havana em 1963, 1969 e 1974. Voltará em 1996. Mas, antes de dissertar sobre Fidel, o autor recapitula a guerra da independência de Cuba (1868), um governo provisório em 1909 chefiado por um americano William Taft e o estranho aluguer de Guantánamo que só pode caducar quando os americanos quiserem.
Sobre Fidel são 200 páginas de texto entre o testemunho (muitas horas de convívio) e a investigação (muitas horas de livros lidos). Apenas umas linhas: «Um dia destes Fidel Castro morre. E, se pensarmos na vida que teve, bem o merece. Em criança andava sempre à pancada. Adolescente, aprendeu a disciplina dos Jesuítas. Na universidade foi um praxista de tiroteio entre bandos civis. Da atracção da aventura nunca se libertou. Compreende-se, é um afrodisíaco. O assalto ao quartel Moncada, a prisão, o exílio, o naufrágio do desembarque do Granma. Dois anos de guerra de guerrilhas. Depois, a revolução e, como dizia Heine, «uma revolução traz sempre violência, sangue, lama». O circo dos julgamentos de 1959 (de que sente remorsos? sentirá alguns?) A vitória de Girón. Ainda não haviam passado dois anos tangenciou a guerra nuclear… A implosão da URSS. Reconstruir tudo, outra vez. Mas este homem é um sísifo! Com a vida que teve bem merece um descanso. E, proporcional aos trabalhos e aos dias que levou, só a morte.»

(Editora: Círculo de Leitores – Temas e Debates, Capa: Rochinha Diogo)

Vinte Linhas 308

«O Século» de Lopes de Mendonça (O primeiro jornal socialista)

Lopes de Mendonça (1826-1865) figura no nosso século XIX ao lado de Garrett, Castilho e Herculano: historiador, poeta, jornalista, folhetinista, doutrinador, crítico e ensaísta. Mas também fundador e redactor anónimo de «O Século», um jornal de 11 números com 16 páginas cada, que se publicou entre 10 de Abril e 25 de Junho de 1848. Ernesto Rodrigues recupera-o para os leitores de hoje em 165 páginas de texto anotado.

Vejamos como Lopes de Mendonça escreve sobre a República em 1848: «A república não tem classes, não tem distinções, não tem interesses rivais: as lutas são as das ideias e a sua expressão é, tem de ser manifestada pela imprensa. Ás revoluções armadas hão-de suceder as reformas pacíficas; às paixões, os sentimentos; aos certames de partido, os combates de princípios. Alcançar-se-há esse ideal que debalde têm querido realizar as monarquias representativas? O sistema republicano acolherá no seu seio o princípio da perfectibilidade humana sem que ele ressurja de espaço a espaço tinto de sangue?»

Incansável jornalista e homem de ideias, Lopes de Mendonça responde à pergunta «O que quer o socialismo?» deste modo: «A fraternidade substituída ao individualismo: isto é, o indivíduo ligado pelos sentimentos e pelas instituições à sociedade: a associação em vez da concorrência, isto é um regime industrial que iguale as condições dos três agentes da produção, o capital, o talento e o trabalho».

A capa deste livro que vem revelar um novo aspecto na história das ideias do século XIX em Portugal reproduz um quadro do pintor Gaspar David Friedrich (Nuvens passageiras).

Um livro por semana 94

«Recuperar a claridade» de Joaquim Carvalho

O registo destes poemas oscila sempre entre a Natureza e a Arte. A Natureza está na página 102: «Oiço / o gaio / cantar nos pinheiros. / Num agitar de asas / a caruma cai / doura o chão / e acrescenta odor de resina / que / misturado no ar quente / me incita a mergulhar…» A Arte está na página 105: «Pintar-te é dar cor ao último pensamento / Desenhar-te é ser contorno da tua pele / Esculpir-te é encontrar teu espaço dentro de mim / Amar-te é darmos sentido ao último encontro.»

«Recuperar a claridade» é o título do poema da página 125: «O que outrora / era claro e transparente / adquiriu num ápice / a turbidez de um rio de lama. / Agora as nuvens escondem no avesso / o que resta da luz dos dias que já teve. / Por fora / a penumbra anuncia a tristeza que o espera / se não for capaz de impedir que a escuridão / se instale. / Há que ceifar rente a morte / e, com alegria, / recuperar a claridade / que as nuvens escondem.» E só existe uma maneira de cumprir esse programa, de recuperar a claridade. É pelo amor porque só o amor pode ser uma resposta para a morte. Como na página 184: «Sem vislumbre / sem procura / sem razão / sem tempo / Puro encontro… / leve… / sublime… / translúcida… / transparente… / Inevitável viagem / Inês é vela / Pedro é timoneiro / Lá dentro vamos todos nós / Vai Portugal inteiro!»

Um poema não é um amontoado de palavras, é um lugar mágico para estarmos todos juntos. No fim desta viagem de 191 páginas fica uma certeza: Só o amor responde à morte e só há uma medida para o amor – é amar sem medida.

(Pangeia Editores, Apresentação: Urbano Tavares Rodrigues, Nota: Rodrigues Vaz)

Vinte Linhas 307

Para eles Portugal acaba nas portagens de Sacavém

Acabo de ler o «Diário de Notícias» de hoje 28-12-2008 e na sua página 12, quarta coluna lá está «A autorização do Tribunal de Torres Vedras foi dada na sexta-feira…» Parece um caso isolado mas não é; ontem, dia 27-12-2008, na página 18 o ante título já anunciava: «O Tribunal de Torres Vedras adiou uma semana…»

Temos aqui um grande jornal a cometer dois erros grosseiros dois dias seguidos trocando Torres Novas por Torres Vedras como se tudo fosse a mesma coisa.

Entre 1997 e 2001 trabalhei na redacção do jornal semanário «O Mirante» (hoje o maior jornal regional português) e, sempre que surgia um caso parecido, ouvia a advertência: «Para eles Portugal acaba nas portagens de Sacavém». A frase era um lamento dirigido a mim (que não nasci em Lisboa) embora o destino final da chamada de atenção fosse alguém incógnito numa redacção de Lisboa. Nesse tempo ainda havia portagens em Sacavém coisa que hoje não acontece – passaram para Alverca. Mas o resto fica como estava – para muita gente Portugal é Lisboa e o resto é paisagem. E o «seu» país, o seu pequeno país acaba mesmo nas portagens de Alverca.

Torres Vedras será o mesmo que Torres Novas mas não para quem lá vive, quem lá nasceu e lá estuda ou trabalha. Todos temos direito ao nosso nome e as cidades são como as pessoas – também se sentem feridas quando o seu nome aparece trocado. Depois de ter acabado de beber o meu café no Chiado (centro do centro) pensei logo no que poderia ter ouvido se tivesse continuado na redacção de «O Mirante». Apenas com uma diferença – já não existem portagens em Sacavém. Agora são em Alverca.