Todos os artigos de Isabel Moreira

Aborto: da mulher “reincidente”

Há quem tenha por inadmissível a não introdução de taxas moderadoras no caso de mulheres reincidentes numa IVG.
Ou seja, isto não é um debate sobre a possibilidade – que está na disposição do legislador, concorde-se ou não – acerca do fim da exclusão de taxas moderadoras num acto médico específico: a IVG.
Mais uma vez, diz-se, com superficialidade avassaladora, que tem de se fazer das taxas moderadoras um mecanismo punitivo das mulheres. Sim, porque há umas malucas, que engravidam sozinhas, uma e outra vez, nada querendo com métodos contracetivos, já que gostam, acham agradável, até às dez semanas, sujeitarem-se a um procedimento festivo.
Naturalmente, psicopatas haverá por todo o lado, mas isso não define o universo de destinatários de um procedimento legal.
Qualquer coisa não está a funcionar – dizem. Muitas coisas não estão a funcionar há muito tempo, antes da despenalização da IVG, mas felizmente acabou a perseguição penal como a conhecemos, e tantas complicações, por vezes mortais, decorrentes do aborto clandestino.
Há sempre alguém que continua a perseguir penalmente as mulheres. Não “querem” uma pena de prisão outra vez, mas querem que as taxas moderadoras sejam a nova moldura penal para a IVG. Assim mesmo, porque se aplicariam automaticamente às mulheres “reincidentes”, ou seja, às que “reincidem, que incorrem novamente na prática de um ato condenável”.
Seja lá por que for..matemática.

Um mau precedente para a democracia parlamentar

Hoje foi um dia triste para a democracia parlamentar. O PCP fez um requerimento potestativo – isto é, não pode ser negado pela maioria – para que o PM fosse ouvido na 1ª Comissão acerca dos factos vindos a público rodeando os serviços de informação.
Lendo o requerimento, estão em causa os casos recentes mais preocupantes que escuso de documentar.
Por quê o requerimento? Para humilhar o PM? Não. Porque é o único membro do Governo com a tutela dos serviços em causa, sem possibilidade de delegação.
Por outro lado, o melindre das perguntas, bem como das respostas, não se adequam ao uso do debate quinzenal “à porta aberta” ou a outro tipo de intervenção.
A norma que permite chamar membros do governo à Comissão diz isso mesmo: “membros do Governo”.
Sendo o PM um “membro do Governo”, a direita apressou-se a tentar explicar que o PM é “mais do que um membro do Governo”.
A questão subiu à mesa e a Presidente da AR encontrou preceitos no regimento que se referem especificamente ao PM ao contrário de outros que mencionam os tais dos “membros do Governo”. Deu razão à direita e o maior direito das minorias parlamentares foi para o lixo.
Esqueceu-se a PAR que também há muitos preceitos do regimento que se referem aos “membros do Governo” querendo incluir o PM: discussão do OE; moções de censura, etc.
O ponto e o precedente perigoso não é o PM livrar-se da 1ª Comissão. É antes no único caso em que o PM tem o exclusivo de uma tutela sem possibilidade de delegação a AR ficar diminuída nos seus poderes de fiscalização.
O inevitável CDS ainda argumentou com o facto de poderem haver factos do tempo de Sócrates. Lembrei pela segunda vez o princípio da continuidade da administração: responde quem está em funções, ou não teria Luís Amado ido à AR responder a todas as questões acerca os alegados voos da CIA, independentemente de um número muito grande de voos sob suspeita datar dos tempos do anterior Governo de direita.
Dia formal, dia fatal.

O nosso salário mínimo realmente nacional

Salário Mínimo Nacional
(atualizado em 1 de fevereiro 2012 pela base de dados do Eurostat)
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Em 2012, Portugal apresenta o 3º Salário Mínimo Nacional mais baixo da Zona Euro (Eslováquia e Estónia registam valores inferiores) e 10º de toda a União Europeia .

Comparando com os países que têm o SMN mais elevado, verifica-se que o SMN em Portugal é 73% menos que o do Luxemburgo, menos de metade que o da Irlanda, Holanda, Bélgica, França e Reino Unido; menos 36% que o da Eslovénia; menos 35% que o da Grécia; menos 29% que o de Malta e menos 24% que o de Espanha.

2012: SMN – Valores Comparáveis* 2012: SMN – Valores Mensais
ordem País €uros ordem País €uros
1 Luxemburgo 1.801,49 1 Luxemburgo 1.801,49
2 Irlanda 1.461,85 2 Irlanda 1.461,85
3 Holanda 1.446,60 3 Holanda 1.446,60
4 Bélgica 1.443,54 4 Bélgica 1.443,54
5 França 1.398,37 5 França 1.398,37
6 R.Unido 1.201,96 6 R. Unido 1.201,96
7 Grécia 876,62 7 Eslovénia 763,06
8 Eslovénia 763,06 8 Grécia 751,39
9 Espanha 748,30 9 Malta 679,87
10 Malta 679,87 10 Espanha 641,40
11 Portugal 565,83 11 Portugal 485,00
12 Polónia 336,47 12 Polónia 336,47
13 Eslováquia 327,00 13 Eslováquia 327,00
14 Rep. Checa 310,23 14 Rep. Checa 310,23
15 Hungria 295,63 15 Hungria 295,63
16 Estónia 290,00 16 Estónia 290,00
17 Letónia 285,92 17 Letónia 285,92
1 Lituânia 231,70 18 Lituânia 231,70
19 Roménia 161,91 19 Roménia 161,91
20 Bulgária 138,05 20 Bulgária 138,05

E.U.A 971,22 E.U.A 971,22
* Em Portugal, Espanha e Grécia o SMN é aplicado a 14 meses por ano. Estes dados são ajustados a este facto.
Comparando com 2011, O SMN de Portugal apresenta um crescimento nulo este ano (em termos nominais), bem como o da Irlanda, Espanha e Lituânia.

Em termos reais (contando com a inflação esperada para 2012), Portugal apresentará um decréscimo de 2,9% no SMN este ano, colocando-o no 3º decrécimo mais acentuado de toda a UE e 2º da zona Euro.

Enriquecimento ilícito: um crime que é um crime

O deputado Filipe Neto Brandão afirmou hoje, e muito bem, em artigo publicado no Diário de Noticias, que o PSD e o CDS se preparam “para criminalizar agora a mera desconformidade do património possuído por cada cidadão com as suas declarações fiscais, mesmo que este jamais tenha exercido funções públicas”.
Aponta o facto de a pena de prisão prevista ser até aos três anos, igualando a pena prevista no código penal para um crime de ofensas corporais simples, e de se inserir este crime na categoria de “criminalidade altamente organizada”.
Assim, Filipe Neto Brandão explica que o legislador coloca ao dispor do Ministério Público “um arsenal de instrumentos insidiosos de investigação verdadeiramente desproporcionados à medida da pena, tais como escutas telefónicas, buscas domiciliárias noturnas, etc.”, e completou ao afirmar que “bastará um cidadão ser suspeito de ter um património superior em ‘cem salários mínimos’ (48 500) ao que as suas declarações fiscais avalizariam, para poder vir a ser objeto de uma investigação criminal”.
O projeto de lei explicita que competirá ao MP fazer a prova de todos os elementos do tipo deste crime, sendo esta precaução redundante, uma vez que é isso que cabe ao MP fazer em todos os crimes. “Porém, aqui, o crime de enriquecimento ilícito, nos casos em que o arguido se remeta ao silêncio, preencher-se-á com a mera posse de um património incompatível com as declarações fiscais. É que a lei fala em património ‘sem origem lícita determinada’”. Deste modo, se o MP alegar que “não logrou determinar a origem lícita do património do arguido ‘incompatível’ com o que este declarou ao fisco, o silêncio do arguido acarretará a sua condenação, pois a consequência será chegarmos ao fim do julgamento ‘sem origem lícita determinada’ do património”. Para que tal não aconteça, o arguido terá de prescindir do seu direito ao silêncio para provar a origem lícita do seu património.
Filipe Neto Brandão termina o seu artigo assim: “Esqueçam os pergaminhos liberais. São já os próprios alicerces do Estado de Direito democrático que, incautamente, PSD e CDS estão a demolir”.
Muito mais há para dizer e foi dito, hoje, durante horas na 1ª comissão. Perante as nossas perguntas conseguimos ver dois deputados do PSD com duas versões da sua própria proposta.
Espero, não posso esperar outra coisa, que a ofensa de princípios como o da igualdade, o da determinação dos elementos do tipo, o do princípio do ónus da prova, entre outros, a manter-se o projecto como está, que Cavaco Silva envie o decreto para o Tribunal Constitucional. Se uma das (tristes) variantes dessa decisão é a certeza da “vitória” do requerimento, pois aqui está um caso limpinho.

É hoje

Dia internacional da tolerância zero às mutilações genitais femininas

Vale a pena reter a reportagem de ontem no DN:
ENTREVISTA Célia Rosa
FOTOGRAFIA Diana Quintela/Global Imagens
Na véspera do Dia Internacional da Tolerância Zero às Mutilações Genitais Femininas, que se assinala amanhã, 6 de Fevereiro, o que é os portugueses precisam de saber?
Todos devem saber que no país existem mulheres de várias idades, incluindo crianças, que sofreram mutilação genital feminina (MGF) e que muitas delas têm nacionalidade portuguesa. Por esta razão é fundamental que os profissionais das áreas da saúde, educação e intervenção social tenham conhecimentos específicos sobre este tipo de crime (artigo 144 do Código Penal) e saibam o que fazer para prevenir, intervir e sinalizar. Não podemos continuar a ter médicos e enfermeiros que observam uma mulher com mutilação e pensam que ela tem uma malformação congénita ou que teve um parto mal feito.
Para que os leitores não tenham dúvidas, quando falamos em MGF estamos a dizer que há crianças, raparigas e mulheres a quem cortam o clítoris, os pequenos e os grandes lábios. Muitas também são sujeitas a um estreitamento da vagina e a outras práticas que alteram os seus genitais, todas dolorosas, traumatizantes, perigosas e atentatórias dos direitos humanos. É isto?
Sim, a OMS identifica quatro tipos de MGF que contemplam outras lesões, além dos cortes totais ou parciais do clítoris, pequenos lábios, grandes lábios e do estreitamento da vagina. Por exemplo, punções, perfurações e escarificações dos genitais e até o seu alongamento ou cosedura. Não precisa de haver corte. Qualquer intervenção feita nos genitais de uma menina ou de uma mulher por razões não médicas é uma mutilação. Está tudo descrito na Declaração Conjunta para a Eliminação da MGF, um documento que foi distribuído em Portugal aos políticos, profissionais de saúde e órgãos de comunicação social e que pode ser consultado na internet por qualquer pessoa. O alto-comissário para os refugiados, António Guterres, foi um dos subscritores. Também distribuímos, aqui e na Guiné-Bissau, em Moçambique e em Angola, o manual de formação para profissionais de saúde.
Que crenças sustentam a MGF?
Actualmente, a MGF já é entendida pela maioria das pessoas como uma prática violadora dos direitos das meninas e das mulheres. Mas quando é realizada nas comunidades de origem – países africanos, asiáticos e do médio oriente – serve para garantir a integração e o reconhecimento social das mulheres e o seu futuro: casar, ter filhos, cuidar e servir a família.
Nessas comunidades, as mulheres são excisadas para garantir que os seus genitais são bonitos (uma dimensão estética); que o clítoris ou os grandes lábios não tocam na cabeça do bebé no momento do nascimento (acredita-se que provoca doenças); que são intocáveis até ao casamento (crê-se que preserva a virgindade e depois a fidelidade); para aumentar o prazer sexual do marido (mais uma crença), etc. Nalguns países a única razão é discriminação de género.
É mais uma forma de controlo social das mulheres?
Sim. Há práticas tradicionais nefastas que só persistem porque são realizadas sobre mulheres. A MGF é uma delas, os casamentos forçados, a troca e venda de noivas são outras. E o que é mais chocante é saber que alguns países onde estas coisas acontecem recebem apoios importantes da comunidade internacional para a saúde e educação mas os líderes dos estados doadores não têm tido a capacidade de trazer estes temas para a agenda política, o que é fundamental.
Em que idade é que as meninas mutiladas?
Depende, o mais comum é entre os dez e os 14 anos. Nalguns casos, faz-se logo à nascença. Sobretudo nos países onde já existe uma lei que proíbe a MGF. Assim, o crime é mais facilmente encoberto e quanto mais pequena for a criança menos força tem e menos resiste.
As mulheres que se lembram da sua mutilação genital contam que sofreram horrores. Nós não conseguimos imaginar, pois não?
Claro que não. Nunca me esquecerei do relato de uma mulher que vive nos arredores de Lisboa e que me contou como foi a sua mutilação. Primeiro, passou vários dias amarrada e ajoelhada para aprender a obedecer; depois foi obrigada a comer deitada, sem olhar nos olhos das pessoas mais velhas, para aprender a respeitar. Finalmente, um dia, foi agarrada e imobilizada por várias mulheres que lhe prenderam os pés, as mãos e o tronco e foi cortada com uma faca (podia ter sido outro objecto cortante, um vidro ou uma lata). A história desta mulher é uma história de violação dos direitos mais básicos e ela sabe isso. Ainda assim, por causa dos factores associados à sua cultura e religião, cada vez que fala do assunto ela sente que está a atentar contra a suas raízes, contra as tradições do seu povo.
Como se estivesse a negar a sua identidade?
Exacto, e essa é uma das razões porque temos dificuldade em encontrar mulheres que falem sobre o tema. O medo das represálias é outra. Em Portugal, algumas mulheres que falaram publicamente da MGF sofreram retaliações da sua própria comunidade. E não será por acaso que não há nenhuma associação de mulheres originárias de países onde existe MGF cujo trabalho central seja as práticas tradicionais nefastas. A APF tenta trabalhar com as mulheres para que elas possam assumir um papel de destaque nas associações mas é muito difícil.
No mundo, estima-se que existam entre cem e 140 milhões de raparigas e mulheres com MGF. Um número alarmante?
Assustador. Quantos Costa Concórdia precisam de afundar para termos a dimensão da tragédia da MGF? E alguém conhece algum líder tradicional, primeiro-ministro ou presidente da república que tenha sido julgado porque no seu país 50 por cento das mulheres são mutiladas? É certo que muitos países aprovaram legislação proibitiva e desenvolvem trabalho directo nas comunidades – é o caso da Guiné-Bissau – mas ainda há um mundo de coisas para fazer até acabarmos com esta prática. E têm de ser as próprias comunidades a dizer não.
Na Europa estima-se que 500 mil mulheres tenham sido mutiladas e que 180 mil raparigas estejam em risco. Portugal também é um país de risco?
Portugal recebe migrantes de países onde a MGF existe e muitas meninas, incluindo algumas nascidas no país, estão em risco. Pensa-se que a maioria será sujeita à intervenção nos países de origem – antes de virem para Portugal ou durante uma deslocação nas férias, por exemplo à Guiné-Bissau. Cá, também haverá locais onde se pode fazer.
A MGF envolve grandes riscos para a saúde e pode levar as raparigas e as mulheres aos hospitais.
Pode provocar a morte. Mas cá, quando há infecções, hemorragias, dores e outros problemas, parece que as pessoas contornam o sistema. Ouvi um responsável da embaixada da Guiné-Bissau dizer num programa da RTP – África que quando a mutilação é feita no país de origem e as complicações se manifestam no regresso a Portugal, o que a comunidade fará é recorrer aos profissionais de saúde guineenses que exercem cá.
Os médicos nunca devem realizar actos de MGF mas há quem defenda que se o fizerem, em boas condições de higiene, as meninas e as mulheres correm menos riscos. O que acha disto?
Não podem, todos os organismos e associações médicas internacionais o proíbem. Mas nalguns países, no Egipto por exemplo, muitas mulheres são sujeitas a mutilação praticada por médicos.
Uma coisa é ler ou falar sobre MGF outra é conhecer essa realidade. O que é que já viu e o que sentiu?
Na Guiné-Bissau, da primeira vez, vi morrer uma menina de 17 anos, e os seus bebés, devido a um trabalho de parto que se complicou por causa da mutilação genital. Mais tarde, conheci uma rapariga de 18 anos que tinha sido banida da família porque tinha uma fístula obstétrica, com odor. Uma consequência do que lhe tinham feito e não havia meios para a tratar nem dinheiro para a enviar para o Senegal. Também morreu e deixou um recém-nascido órfão, de que ninguém quis cuidar. Aquelas duas mulheres sofreram horrores e nunca se queixaram. As que são mutiladas e não morrem também não se queixam. É destas sobreviventes que depende a vida da família e da comunidade – são elas que cultivam, vão buscar água e lenha, cozinham e lavam, cuidam dos maridos e dos filhos. Perante mulheres desta grandeza, não faz sentido falar das minhas lágrimas contidas.
Alice Frade é antropóloga e já trabalhou com mulheres forçadas à mutilação genital feminina. É responsável do Departamento de Advocay e Cooperação para o Desenvolvimento da Associação para o Planeamento da Família.

As pessoas que dão números – uma crise invisível

Por onde começar? O desemprego. Lê-se que o número, o tal do número, que varia consoante a instituição analista, pode vir a chegar a um milhão. Dir-se-ia um milhão de vidas, mas o abandono não é só o do carimbado “desempregado”, é o dos seus filhos, é o dos seus pais a cuja casa se regressa, é o de irmãos, quando os há, que dividem o que podem, é o dos amigos, é o de todos estes cometas, também eles tão díspares, entre pensões de miséria ou por sorte bem na vida ou cometas tantos, também eles a um passo do carimbo.
Este não pode ser o retrato economicamente provisório de um país, verdadeiramente desejado por quem ainda hoje, investido na pele de primeiro-ministro, disse que o que soluciona “as coisas” é a iniciativa privada. Eis um homem esperançoso no crescimento porque sim, mesmo que cada passo que um homem tente dar pela mais minúscula empresa esteja condenado à morte pela austeridade – como dizer? – mais do que proporcional e com uma única amiga: a emigração.
Vamos em 800 mil vidas destruídas pelo carimbo e clama-se pela iniciativa privada.
Mas qual? Uma pessoa olha para o país num retrato global e dá razão ao primeiro-ministro.
Na verdade, temos é de compreender quem são os portugueses dele e qual a iniciativa privada que lhe rasga o sorriso.
Por acaso, como bem notava hoje um colega meu, foi a iniciativa privada que construiu monopólios estratégicos do Estado? Quem fez a EDP ou a REN ou as Águas de Portugal? A iniciativa privada ou o contribuinte? O contribuinte, pois; nós, todos nós, todos mesmo, os carimbados também.
Quem, apesar da crise, está bem na vida, na sua “iniciativa privada”? A malta instalada no que um dia foi obra nossa e que agora gere umas coisas privadas, mas com uma pequena nota: tudo em regime de monopólio. Deve ser duríssimo.
Este é o país da direita.

Mais uma vez a linguagem branca: “reavaliar aspectos da lei do aborto”

Podia ler-se esta notícia e optar-se por não lhe dar valor algum.
Acontece que estamos perante uma direita em concreto, esta, a direita que invoca metas do memorando de entendimento para calar tudo e todos quanto aos meios que escolhe, que são seus, com alternativa possível, para os alcançar.
Estamos perante essa direita batoteira, mentirosa, mesmo, de tal forma que dobra a linguagem para esconder a realidade que está a construir, destruindo uma outra, cheia de gente entre a vida e a morte de tão asfixiada pelos tais dos meios.
Quem assim procede só pode estar carregado de um sentimento de moralidade deísta, é uma direita que vê os caixotes nas farmácias cheios de receitas de quem comprou fiado e estende a mão, num elogio do sacrifício, garantido que haverá redenção.
É isto: esta direita é celestial e nada lhe escapa. Animada pelo exemplo espanhol que, desde os anos 80 permite a IVG numa interpretação lata, recentemente actualizada, e que agora se vê perante a ameaça de retroceder juridica e culturalmente quase 30 anos e perseguir penalmente milhares e milhares de mulheres, olhou, viu que era bom e aplicou a ideia.
A direita Calcutá começa por dizer aos moribundos que está a reavaliar a hipótese, para depois dizer umas coisas mais concretas.
Estes fascistas descobriram isto: apesar do peso político de um resultado referendário expressivo; apesar de viverem num país que consagra constitucionalmente o princípio da segurança jurídica e da tutela das expectativas; apesar desta lógica de não retrocesso, apoiada nestes princípios não existentes nos EUA – donde vermos por lá coisas estranhas à nossa cultura -; eis que a vizinha Espanha dá uma mãozinha ao calvário.
É inaceitável, e mais ideias destes deuses, afinal não derrubados em Abril, virão.
Atrevam-se.
A política, a decência e o direito estão do nosso lado.

Só a direita, ajudando o Governo, finge não estar a negligenciar doentes

“A Polineuropatia Amiloidótica Familiar (PAF) ou paramiloidose é uma doença congénita, com prevalência especialmente significativa no nosso país onde, aliás, foi pela primeira vez identificada, graças ao génio clínico e científico do médico Corino de Andrade. Popularmente continua a ser designada por “doença dos pezinhos”.

A paramiloidose, sendo uma doença hereditária, atinge cerca de metade dos descendentes das famílias afectadas. Manifesta-se, habitualmente, na terceira década de vida e causa um enorme sofrimento aos que dela padecem e às suas famílias. Os doentes, apesar de muito jovens, ficam gravemente diminuídos na sua capacidade de trabalho e na sua autonomia.

Apesar da enorme evolução científica e tecnológica da medicina nas últimas décadas, a paramiloidose não teve, até agora, tratamento eficaz. A única opção terapêutica é a transplantação do fígado. Mas mesmo essa opção tem limitações significativas. Em primeiro lugar a transplantação depende da disponibilidade de órgãos, sempre contingente. Depois, embora tenham ocorrido importantes avanços nos últimos anos, com um notável contributo do Serviço Nacional de Saúde, que colocou Portugal na liderança mundial neste domínio, a transplantação do fígado tem associada uma mortalidade muito elevada. Essa circunstância é particularmente dramática quando
esse acto médico é realizado em pessoas jovens, que estão relativamente bem na fase inicial da doença. Finalmente, a transplantação é uma intervenção cirúrgica muito complexa, com elevada despesa para o Estado, e que exige intenso acompanhamento especializado do doente durante o resto da sua vida.

Face a esta realidade percebe-se bem a expectativa gerada junto dos doentes, das suas famílias e dos profissionais de saúde que com eles lidam, pela descoberta de um promissor tratamento com um novo fármaco, o tafamidis. Os resultados dos ensaios clínicos, em que participaram também centros portugueses, confirmaram o efeito positivo deste fármaco e conduziram à sua aprovação pela agência de regulação europeia (EMA / European Medicines Agency).

Esta agência, em Julho de 2011, emitiu uma recomendação no sentido de que fosse aprovada a autorização de introdução no mercado para o tafamidis. Essa recomendação viria a ser adoptada pela Comissão Europeia, em Novembro de 2011.

Em Portugal, o Infarmed autorizou já a administração do fármaco a dois doentes, no âmbito do procedimento de Autorização de Utilização Especial (AUE).

Neste contexto e atentos os efeitos terapêuticos associados ao novo fármaco, é absolutamente imperioso que o tafamidis seja rapidamente disponibilizado aos portugueses que sofrem de paramiloidose. É uma opção humanitária que não pode ser adiada nem comprometida por constrangimentos de natureza burocrática ou financeira. Mesmo numa conjuntura de restrições económicas e financeiras e de consolidação orçamental, é uma decisão que se impõe numa sociedade que se pretende moderna, justa e solidária.

Para que o fármaco possa ser administrado aos doentes portugueses, alguns dos quais necessitam dele de forma dramática e urgente, é necessário concretizar o seu registo junto da entidade reguladora nacional, Infarmed, obtendo a necessária autorização de introdução no mercado. Ao mesmo tempo, é indispensável a decisão política do Governo, no sentido de financiar a sua disponibilização aos doentes.

Trata-se de um medicamento caro. Mas é o único tratamento disponível para uma doença com repercussão catastrófica na vida dos atingidos. A sua não adopção custa sofrimento, vidas humanas, perda de capacidade de trabalho e gasto público em transplantação.

A administração do tafamidis deve ser regulada de modo rigoroso, garantindo que ele é administrado em condições adequadas do ponto de vista da indicação terapêutica e da monitorização dos seus efeitos. Mas a adopção destes procedimentos, que aliás existem já em relação a outros tratamentos dispendiosos de doenças raras, não pode atrasar a utilização do novo medicamento.

A cada dia que passa, alguns doentes são obrigados a optar pela transplantação hepática, com risco de vida. Por isso, o Partido Socialista entende que a decisão não pode mais ser adiada.

Assim, ao abrigo das disposições constitucionais e regimentais aplicáveis, os Deputados do Grupo Parlamentar do Partido Socialista apresentam o seguinte Projecto de Resolução:

A Assembleia da República resolve, nos termos do n.º 5 do artigo 166.º da Constituição da República Portuguesa, recomendar ao Governo que, com carácter de urgência, disponibilize o medicamento tafamidis, sem custos, a todos os doentes que sofrem de paramiloidose e que dele necessitam”.

Todos os Partidos à esquerda apresentaram Resoluções no mesmo sentido.

A Direita mente, confunde procedimentos e usa da retórica infundada para dar a mão ao Governo em vez de pensar na vida das pessoas. É mesmo a vida das pessoas que está em causa. Não assumir isso é crime.

Vamos lá descascar Cavaco

Foi um deslize, alguém disse. Acontece a qualquer um, ouvi. Nada disso. Quem se queixou da sua magra reforma da CGA, dizendo não saber ao certo quanto receberia pelos aninhos descontados no Banco de Portugal, foi o Presidente da República, o único Órgão unipessoal eleito por sufrágio universal direto.
Foi o titular desse Órgão, Cavaco, que inclinou a cabeça quando afirmou que não pode receber o vencimento da Presidência, embora não fizesse muita questão nisso, porque o empático Cavaco sabe que tantos, mas tantos portugueses na mesma situação.
O homem que nunca enganou muita gente mostrou-se. Não foi um deslize, não foi um episódio, foi Cavaco: um homem pouco sério, dissimulado, mentiroso, sem pingo de humanidade ou empatia.
Ele sabe, quando fala, que não se trata de não poder receber o vencimento da presidência, mas de a lei dar-lhe uma opção que não, ninguém tem, em tempos de dificuldade, de escolher entre esse vencimento, que ronda os 6523 Euros e as suas miseráveis pensões que andam entre os oito e os 10 mil euros mensais.
Na verdade, para estadista, ficava-lhe bem ter optado pelo vencimento de Presidente, mas não vamos pedir tanto ao homem sério.
O comunicado posterior agrava o dito, aquelas palavras agravam a revelação do que temos em Belém. É o comunicado do homem do estatuto dos açores ou do homem das escutas de Belém. É sempre Cavaco, o pior político do Regime.
Descascando melhor o homem através deste filme de terror, a sua mentira adensa-se, quando há um silêncio sepulcral sobre o ódio que o sorvedor de Euros teve, também por isto, ao anterior Governo.
Se em 2005 a lei permitiu optar entre vencimento e pensões, mas só com 1/3 de uma das opções, excecionando do seu regime o PR, em 2011 – recordam-se? –, passou a ser ilegal acumular vencimentos e pensões. Aqui Cavaco, que gostava mais do outro regime – ai, pois, – escolheu a reforma do banco de Portugal e a da CGA. Ou seja, optou pelas suas pensões e evitou o corte de 10% no seu salário como Presidente, depois do monstruoso corte de 5% no ano anterior.
Fez bem, se pensarmos nos seus gastos pessoais. É que as reformas, apesar de congeladas, não eram objeto de qualquer redução salarial. Era escolher entre 6523 Euros e 10 mil Euros.
Sendo a perspetiva de Cavaco uma – números -, e tendo a lei do seu lado, tratou da sua vida, com ódio, ódio profundo ao Governo que perseguiu.
Isto tem pernas, e agora que continua com muito dinheiro, mas que perde subsídios na CGA, por causa dos mil e tal euros e ganha ali, chegou o momento de Cavaco dizer basta. E disse. Disse com um ar tentativamente humano e mentiroso. Ele acha que o povo é estúpido.
Porque pensa que nos vê refletido no espelho.

A campanha enviesada contra a fiscalização de dois preceitos do OE

Já estava à espera. Cumpre-se a Constituição (CRP) com normalidade e, de imediato, quando os juízes do TC estão, ou deveriam estar, postos em sossego a decidir sobre um pedido de fiscalização da constitucionalidade – essa coisa que foi inscrita na CRP em 1982 e que já resultou em vários Acórdãos – saltam para o terreno os comentadores enviesados.
O grau de loucura – de estratégia? – que tenho visto animar colunistas e comentadores é tal que tenta pôr em causa a percepção do cidadão comum acerca de um dos órgãos e mecanismos ao mesmo associados para a defesa da CRP.
Lemos os jornais e ouvimos os comentadores e é impossível não dar cabo de três equívocos propositadamente criados para fins políticos e para uma infantil e terrorista tentativa de influenciar os juízes do TC:
1) Em primeiro lugar, diz-se que o pedido de fiscalização foi asneira porque estamos perante uma questão política. Esta patética afirmação esquece que todas, mas todas as normas, comportam um elemento político. Isto é, qualquer lei é uma decisão política. É esta dupla dimensão do acto normativo que explica, em parte, a composição do TC. Levando o argumento a sério, nenhum pedido de fiscalização faria sentido.
2) Em segundo lugar, afirma-se que o pedido fragiliza o PS e, pior ainda, por 17 Deputados do PS terem ficado “colados” ao BE. Seria bom reler a CRP e verificar que é intenção da mesma que o pedido seja prerrogativa dos Deputados – ao contrário de outros poderes que são dos grupos parlamentares. É o Deputado que decide, em consciência, se, para além do combate político a uma norma, se impõe uma consulta sucessiva ao TC. Havendo pelo menos 23 Deputados com essa convicção, diria que devem exercer, mais do que um poder, um dever, porque a CRP confiou-lhes esse impulso. O figurino de 23 Deputados está precisamente pensado para que o pedido não seja necessariamente partidário. Se, neste caso, os Deputados do BE concordaram com a arguição de inconstitucionalidade de duas normas melhor. Significa que o sentimento de infracção da lei fundamental foi transversal a Deputados de dois partidos, que discordam em tantas coisas, mas que tiveram este caso por evidente.
3) Em terceiro lugar, ouve-se o argumento terrorista, mesmo da voz de Marcelo Rebelo de Sousa (que diz ter lido o artigo de Fernanda Câncio, que elogia, mas que não o convenceu – aquele hino de sensatez, digo eu): – “passa pela cabeça de alguém que o TC declare a inconstitucionalidade do OE??? E como fica o PS que assinou a TROIKA? Seria o caos. Temos de interpretar a CRP de acordo com as circunstâncias do momento e não podemos ser fixistas”. Esta moda de enviesamento da realidade está a pegar. Tudo isto é, pura e simplesmente, mentira. Ninguém requereu a declaração de inconstitucionalidade do OE. O pedido refere-se a duas normas, as que no nosso entender, nem em tempos de crise resistem ao teste da constitucionalidade. De resto, os dois preceitos em questão – cortes de subsídios a funcionários públicos e pensionistas, para simplificar – não são imposição de qualquer acordo internacional, são invenções de um governo de direita socialmente selvagem. Ninguém – dos três que redigimos o requerimento – tem uma interpretação datada da CRP. Sabemos o que foi escrito no Acórdão de 2011 e por maioria de razão ainda nos sentimos com mais razão. Mas note-se que o argumento isolado das “circunstâncias” a justificarem o que em tese seria inconstitucional, no limite leva à suspensão da CRP: bastam as “circunstâncias”. Ora, é precisamente em circunstâncias como as presentes que os nossos olhos devem estar mais abertos do que nunca contra o arbítrio. Estas duas normas, mesmo com as “circunstâncias”, são nulas. E alguém pensa que os juízes vão fazer isto ou aquilo? Eu penso. Acredito numa declaração de inconstitucionalidade. Acredito que pode revestir um alcance máximo. E se assim for? Ouvi mal ou a preocupação é o jogo político subsequente? A Troika? E mesmo que fossem normas do memorando? Se forem declaradas inconstitucionais, afinal de conta, quem foram os infractores? Desde quando é que passou a ser coisa má repor a legalidade? E desde quando é que nestas discussões os truques argumentativos passaram à frente das vidas concretas (gorduras do Estado?) que estão a ser decididas neste momento no TC? E se o TC não nos der razão? Vivemos numa sociedade aberta de intérpretes, continuarei convicta da inconstitucionalidade daquelas normas, por violação do p. da igualdade, do p. da proporcionalidade, do direito fundamental à retribuição, do p. da segurança jurídica e do direito à segurança social. Continuarei convicta de que cumpri o meu dever, sem jogos políticos, apenas por dever. O dever é mais alegre pela confiança numa decisão positiva e de resto gostaria de perguntar a muita gente esta coisa simples: se Cavaco após formular um claro juízo de inconstitucionalidade sobre estas matérias não fez nada como é seu uso, como poderiam os Deputados convictos da necessidade de uma decisão do TC nada fazer e voltar a levantar a cabeça?

PMA – um passo que o futuro não poderá ignorar

Hoje foram votados os prjectos de lei do BE e o que resulltou da feliz fusão entre o projecto da JS e um projecto da minha autoria. A intervenção do Pedro Delgado Alves, inspiradora a todos os níveis, disse tudo o que deveria ser o eco de um grito unânime de liberdade, de justiça e de igualdade na casa que tem o poder de concretizar esses princípios.

O projecto, apresentado numa bancada que tinha outro alternativo, é simples e resolve questões como as que tive a oportunidade de colocar à Deputada do PSD que defendeu o respectivo projecto: a) alguém tem a patente do que seja o modelo de família “aceitável”? b) quem, na AR, tem autoridade moral para negar a solteiras o direito à prociação? c) a razão de ser da exclusão de solteiras do acesso à PMA baseia-se ou não (sobretudo) no medo das lésbicas? d) O regime actual, e ainda mais explicitado pelo PSD, é ou não conivente com o sexismo e a homofobia, cujo historial escuso de documentar? e) sabendo que não estamos a inventar a roda, que a diversidade familiar já existe, não estender a parentalidade do filho da mulher que recorreu à PMA à sua companheira de facto ou à mulher com quem seja casada é defender a “família”? E se a mãe biológica morre? Deve o parlamento ignorar a inexistência de um vínculo jurídico análogo ao dos filhos de casais de sexo diferente?

E tantas mais perguntas devem ser feitas. Porque ouve-se o eco da justiça, da liberdade e da igualdade naquelas paredes, mas há ouvidos tapados ou crises agudas de falta empatia. Ainda assim, hoje, dia 20 de Janeiro de 2012, deu-se um passo: o projecto, que não era o projecto oficial do PS, teve ao seu lado a maioria do grupo parlamentar.

É verdade que ganhou a discriminação, tão bem retratada pelo comunicado da ILGA, mas, como diria o outro, nestas coisas deve, um dia, poder dizer-se de nós que se morreu tentando. Pelo meio, conseguindo. É o caso.

Esta votação não poderá ser ignorada.

Já está

Foi entregue às 15h o requerimento de fiscalização dos preceitos do OE relativos a cortes de subsídios de funcionários públicos e de pensionistas, já atingidos por cortes de salários (já agora).
Normas, política, isto e aquilo.
Nada disso. Milhares de pessoas atingidas por uma selvajaria social que nem em momentos de crise económica a nossa Constituição permite.
Milhares de pessoas.
Grata a quem assinou o requerimento, respeitando em absoluto a liberdade de quem o não fez.

Procriação Medicamente Assistida Resistente

No próximo dia 19 serão discutidos vários projetos de lei que alteram, pela segunda vez, a lei nº 32/2006, de 26 de Junho. A história de cada projeto, de cada filosofia por trás de cada projeto, é longa ou, talvez, muito curta, porque sempre a mesma.

No PS, inicialmente, havia um conjunto de três projetos: o do PS; o da JS; e o meu. Foi possível, pela proximidade de pontos de vista e pela possibilidade de cedência mútua, trabalhando com seriedade e sob a capa de princípios comuns, a fusão dos dois últimos projetos. Temos assim, agora, um do PS e outro elaborado pelo Pedro Delgado Alves e por mim, com mais alguns signatários (desapareceu assim um projeto designado “JS”). Durante o processo de elaboração deste projeto de lei foi impossível não viver cada preceito sem a intensidade emocional de quem, como muitos, pura e simplesmente intui que certas questões não deviam gerar discussão.

Se a Lei n.º 32/2006, de 26 de Junho, aprovada na sequência de uma iniciativa legislativa promovida pelo Partido Socialista, representou um passo em frente determinante no domínio da procriação medicamente assistida em Portugal, custa entender que, cinco anos volvidos, num momento de revisitação da mesma, não salte aos olhos do comum dos mortais que falta cumprir a igualdade, a não discriminação, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, o direito a constituir família, o direito já de quarta geração à procriação e, enfim, um elementar princípio de justiça. Como é possível que quem não insista numa patente privativa de família “pai-mãe-filho”, se atreva a excluir da PMA as mulheres solteiras – “sós”, nos termos da lei”? Como é possível que quem reconheça que o arquétipo de família “pai-mãe-filho” não corresponde ao universo diversificado de realidades familiares já existentes na sociedade exclua a extensão da parentalidade à mulher que viva em união de facto ou esteja casada com a mulher que tem uma criança? E se um dia a mãe biológica morre? Como é que se atrevem a negar um vínculo jurídico à mãe sobrevivente?

Atrevem-se a isto tudo, em 2011, atrevem-se a olhar, a constatar e a assinar por baixo um sistema jurídico bipolar que dá, e bem, autonomia à mulher para decidir uma IVG até às dez semanas, mas que a obriga a “pertencer” a um homem” para procriar. Aqui, neste aspeto, está a insanidade: palmas a uma lei sexista e homofóbica. Não há extensão de beneficiários porque as mulheres têm de ser propriedade de um homem e porque se entende que as lésbicas, “por natureza” não procriam. Falam em egoísmo e em “natureza”. Ter um filho é “egoísmo”. Eles lá sabem. Eu, falo por mim, não pedi para nascer. Quem recorre à PMA tem um legítimo projeto de felicidade para si e para a criança que vier a nascer. Quanto a obedecer a uma “natureza” que não acolhe lésbicas e solteiras hétero, é melhor revogar a PMA para casais de sexo diferente que sejam inférteis. E de caminho convém revogar a adoção singular. É o argumento mais conhecido dos piores ditadores da história.

Estou cansada de ver cerimónias que aqui e ali evocam filosofias que mataram milhões de pessoas. Convém lembrar que é o caso do sexismo e da homofobia: mataram, matam e continuam a infligir sofrimentos indizíveis. Como é possível demorar mais do que 5 minutos a espatifar qualquer preceito legal que exprima qualquer tipo de conivência com uma história passada e presente de horror?

O sempre admirável PCP – desta feita pela voz de Bernardino Soares

Já recuperei o ritmo respiratório normal após ouvir no habitual debate no Telejornal de Mário Crespo o Deputado Bernardino Soares mentir e, com isso, caluniar.
Já sabemos que temos uma extrema-esquerda que ataca preferencialmente o PS e subsidiariamente o PSD/CDS, coligação governativa que, de resto, deve àquela estar no poder a arruinar o país. Mas adiante.
Desde que se leu a primeira versão do OE houve gente que, sem esforço, viu nalgumas normas inconstitucionalidades flagrantes. Nesses tempos, como se diz na bíblia, tive pessoalmente a oportunidade de ser entrevistada por Mário Crespo, num dia que parece secular, em que fundamentei a inconstitucionalidade de normas, como as respeitantes ao corte de subsídios dos servidores públicos e das pensões. Mais acrescentei que a gravidade era tal que se justificava uma palavra por parte do Tribunal Constitucional (TC).
Ali, como noutros “lugares”, defendi sempre que Cavaco deveria suscitar a fiscalização sucessiva, após ter denunciado uma violação do princípio da equidade fiscal.
Expliquei também a evidência de ser mais favorável uma fiscalização preventiva do que uma sucessiva, já que na primeira o TC não está sujeito à pressão do anúncio nacional e internacional da entrada em vigor do OE. Não obstante, sempre defendi que os deveres morais não dependem de estatisticas de vitória, pelo que desde a primeira hora afirmei que estaria disponível para tentar reunir as assinaturas necessárias para uma fiscalização sucessiva, caso, repito, se verificasse a esperada inconsequência de Cavaco.
Tudo isto, portanto, tem barbas. E não é uma graçola. Estamos a falar de direitos fundamentais, da vida concreta das pessoas.
Naturalmente, esperei institucionalmente que passasse o prazo constitucional previsto para Cavaco tomar a opção de envio do OE para o TC.
O prazo passou e tratei, tal como outros, de fazer o que prometera há séculos.
É fácil? Não. Dá trabalho, o TC pode sentir-se pressionado pelas circunstâncias e forçar uma fundamentação desviada, mas é um poder dos Deputados individualmente considerados. Isto é, a Constituição prevê poderes dos grupos parlamentares, em certas matérias, e noutras, como nesta, deixa à consciência dos Deputados, os quais, chegando a 23, podem enviar o OE para o TC. Este poder está pensado para não ser de grupo, de clube, antes para permitir que se juntem, se for o caso, Deputados de Partidos diferentes que convergem no juizo de inconstitucionalidade que fazem sobre certas normas. É tão banal quanto isto: se um Deputado está profundamente convencido de que uma norma que atinge cidadãos viola a lei fundamental fica quieto? Não. Verifica se mais alguém pensa como ele. É um poder/dever.
Isto em nada prejudica a fiscalização política, diária, da execução do OE.
O que faz o PCP? Lava as mãos. Primeiro diz que não quer o TC a fiscalizar as normas que tem por inconstitucionais, depois, com azedume, diz – eles falam a uma só voz, como se sabe – que vão ver o requerimento do PS – os Deputados do PS que trabalhem e eles depois dão uma vista de olhos – e logo decidem, finalmente temos Bernardino Soares no Mário Cresco em tom ameno a matar moralmente quem, ao contrário dele, foi sempre coerente: o ideólogo comunista alinhou na tese do seu interlocutor do PSD segundo a qual quem quer que o TC intervenha está apenas a fazer política contra a direcção do PS e mais acrescenta que a nossa incoerência é tanta que não pedimos a fiscalização preventiva do OE, coisa possível, afirma: bastariam 46 Deputados do odioso PS.
Quando não se domina uma matéria, cala-se a boca. Quando se abre a boca em tom acusatório sabe-se que se está a mentir e a caluniar. Só o PR pode pedir a fiscalização preventiva do OE. Vou repetir: só o PR pode requerer a fiscalização preventiva do OE. O único caso em que 1/5 dos Deputados pode pedir tal fiscalização refere-se às chamadas leis orgânicas.
O OE, como o ilustre Bernardino Soares sabe, não é uma lei orgânica.
Ele que vá ler os artigos 166º, 168º e 278º da Constituição, antes de tentar, do alto da sua inércia perante inconstitucionalidades que dão cabo da vidas pessoas, encontrar incoerências em quem, ao contrário dele e dos seus camaradas, tem a mesma posição e a mesma promessa desde o dia em que o projecto de OE nos chegou às mãos.
Tiques de pequeno líder.

Fiscalização preventiva do Orçamento de Estado: claro que não, o Presidente ainda se chama Cavaco

A previsibilidade de Cavaco no que toca à forma como exerce – ou não exerce – os seus poderes é caso para estudo.
Temos um PR que, tendo à sua disposição o veto político de diplomas e o seu envio, em fiscalização preventiva, para o TC, actua com espectacular consistência em desvio de poder.
O veto político tem um significado, tal como o pedido de fiscalização tem o seu.
Cavaco não quer saber da lógica do sistema, nunca quis, toda a gente se lembra desse uso qual arma de guerra que o senhor faz de cada faculdade que a CRP lhe confere.
Seria normal que Cavaco suscitasse a fiscalização preventiva do Orçamento de Estado (OE) depois de se ter pronunciado publicamente sobre a sua inconstitucionalidade, por exemplo afirmando que as medidas previstas para os funcionários públicos e para os pensionistas “violam claramente o princípio da equidade fiscal”?
Não, não seria normal, seria um dever, um poder/dever.
Saberá também Cavaco, pelas vozes que o aconselham, que há outras normas a merecerem um juízo antecipado, como as que violam os princípios constitucionais das autonomias regional, autárquica e universitária.
Saberá também Cavaco que o TC está muito menos condicionado para se pronunciar sobre a inconstitucionalidade de normas orçamentais que ainda não estão em vigor, ainda não foram objecto do fatídico anúncio nacional e internacional da respectiva entrada em vigor, com a consequente animação dos “mercados” e com as expectativas da TROIKA consolidadas.
Saberá por isso Cavaco que passou a bola para os Deputados, que só podem requerer a fiscalização sucessiva, de um OE já em execução, com muito menos hipóteses de um juízo totalmente descomprometido por parte do TC.
Alguém esperava outra coisa? Eu não. O Presidente-Rei Cavaco Silva usou mensagens políticas de ataque ao Governo anterior abaixo do ridículo em vez de dar voz ao TC; o Presidente-Rei Cavaco Silva em vez de vetar politicamente certos diplomas promulgou-os, mas com menagens apoplécticas às 20h explicando o seu espanto por o diploma y não ter sido aprovado por unanimidade – essa coisa estranha da democracia; o Presidente-Rei Cavaco Silva antes de receber diplomas, para tomar uma decisão, estando os mesmos em plena discussão na AR, escolheu esse momento para receber associações representativas de interesses em causa nos ditos diplomas.
Cavaco conhece os seus poderes?
Conhece, pois. Por isso mesmo os distorce, por isso mesmo, nesta nova fase de governo de direita sem o líder que ele escolheria, dá recados à porta de qualquer evento, diz mesmo que o OE é inconstitucional, mas encontra o equilíbrio na sua inconsequência, garantido que na Rua do Século juiz algum ratificará, ou não, preventivamente, os recados de inquilino de Belém.
Perde o país, coisa que (não) lhe ocorre.

RSI – da demagogia grosseira ou no CDS nada de novo

Já chega. Já chega de linguagem branca. Já chega de demagogia. Já chega de ofensas à nossa inteligência. Já chega, sobretudo, do sucessivo aproveitamento da crise para ofender os mais desprotegidos da sociedade, agendando agendas antigas, apelando, para isso, a “quem trabalha”, qual canal de vendas da manhã em busca de audiências.
Ontem a Deputada Teresa Caeiro – o CDS/PP vai variando de mensageiro – explicou ao povo estúpido que o “rendimento mínimo” – que odeia tanto que não sabe que se chama RSI – vai ser sujeito a regras duras de fiscalização, porque é uma prestação que “deve ser temporária” e não um “modo de vida”. Mais acrescentou, na sua imensa sabedoria moralizadora e passando a mensagem de que não conhece o regime jurídico do RSI, que não faz sentido “pessoas receberem o RSI sem mostrarem vontade de trabalhar”, devem ser inscritos em centros de emprego e aceitar o emprego que apareça a não ser por razões ponderosas.
Com estas mudanças fabulosas que o Governo, por iniciativa do CDS, vai levar a cabo, Teresa Caeiro, antes de implementar o sistema, já sabe quem são os aldrabões e já sabe que as reformas mais baixas vão aumentar até 3%, se ouvi bem.
Uma pessoa ouve isto e lembra-se que a “política da verdade” foi um grito demagógico da direita que, de mãos dadas com quem apresenta votos de pesar ao povo da Coreia do Norte, derrubou no Parlamento o último Governo.
Vamos então à verdade amada por esta gente: o CDS tem há anos o projecto de acabar com o RSI; o CDS acredita em dar a cana e não o peixe, imaginando por bom que enquanto não haja pesca se morra de fome; o CDS tentou o que achou possível, quando esteve no poder a última vez, essa enormidade de não permitir o acesso ao RSI aos que tivessem entre 18 e 25 anos; com essa medida, o CDS entrou para a história da democracia, pois foi a única, repito, única política pública inconstitucionalizada pelo TC desde o 25 de Abril, não com base em princípios “socialistas”, mas com base no princípio da dignidade da pessoa humana; tudo o que Teresa Caeiro anunciou em relação ao para ela odioso RSI já consta da lei; claro que houve abusos e certamente ainda haverá, como em tudo, mas o último Governo introduziu mecanismos de fiscalização do RSI eficazes que permitiram a recuperação de montantes importantes.
O CDS odeia o RSI, não conhece pessoas que graças ao RSI sobrevivem até que chegue um dia melhor, o CDS nunca recuperou do murro nas trombas que levou do TC, murro esse que foi tão simples e que pode ser traduzido nisto: – tenham juízo.

O Governo e o respeito pelo serviço nacional de saúde tendencialmente gratuito. Sem mais palavras: as taxas desmoralizadoras

Em matéria de taxas moderadoras, temos mais um sinal de ideologia anti-Estado deste Governo. Nada mais fácil do que ir aos números, aos números que estarão em vigor a partir de Janeiro de 2012, num país que tem inscrito na sua Constituição o outrora consensual serviço nacional de saúde tendencialmente gratuito.
Vejamos por serviços, apresentando os valores sempre em euros:
1. urgência polivalente: passa de 9, 60 Euros para 20;
2. Urgência básica: passa de 8, 60 para 15;
3 urgência médico-cirurgica: passa de 8, 60 para 17, 50;
4. Urgência nos SPA: passa de 3,80 para 10,00;
5. Consulta de especialidade em centros de saúde ou hospitais: 4,60/2,10/2,25 passa para 7,50 (até aqui o preço variava consoante se tratasse de serviços prestados em hospitais distritais ou centros de saúde);
5. Consultas em Centros de saúde: passa de 2,25 para 5,00;
6. Consulta de enfermagem ou de outros profissionais de saúde nos centros de saúde: passa de 0 para 4,00;
7. Consulta de enfermagem ou de outros profissionais de saúde nos hospitais: passa de 0 para 5,00 ;
8. Consulta no domicílio: passa de 4,80 para 10,00.
Não é vinho, não é golf, é acesso ao serviço nacional de saúde.

Da introdução de um limite ao défice na Constituição – ou antes e para além disso

No último Conselho Europeu 26 Estados-Membros decidiram várias coisas. Uma delas é tão absurda que dificulta a sua análise sistemática.
Trata-se de os Estados-Membros adoptarem uma regra de equilíbrio orçamental a nível constitucional (“ou equivalente”). A primeira nota que deve ser sublinhada desta decisão é a da sua inclusão num processo de centralismo, fenómeno bem diferente do federalismo. Temos um órgão político, europeu, não eleito, a decidir o que deve ou não deve ser incluindo nas Constituições dos Estados, decisão que ignora sem pudor que tal inclusão está sujeita a procedimentos democráticos internos.
Custa acreditar no anúncio de uma decisão tecnocrática que, para ser eficaz, carece, por exemplo no caso português, de uma revisão constitucional aprovada por maioria de 2/3 dos Deputados, esse maçador entrave democrático que tem lugar num Parlamento plural e eleito.
Em segundo lugar, esta ideia tão defendida por uma Alemanha cuja própria história a explica, contraria a natureza da Constituição. Esta, sendo o texto jurídico que nos reflecte enquanto povo, enquanto tal é duradora.
Ora, inscrever no domínio do mais elevado padrão jurídico um limite ao défice é não só invadir a lei fundamental com um factor que faz parte da vida económica e da sua gestão governamental, como também semantizar a Constituição. Se não, vejamos: imagine-se o poder executivo confrontado com a necessidade de nacionalizar um banco por causa de um dado perigo sistémico. Naturalmente, terá de prosseguir o que for a melhor decisão, mas, neste caso, será forçado a pedir aos Deputados para reverem a Constituição, afinal norma pouco séria.
Pode, claro, introduzir-se um limite ao défice numa lei ordinária, por acaso até de valor reforçado, a lei de enquadramento orçamental. Mas talvez fosse tempo de pensar para além das medidas anunciadas, isto é, no espírito que as anima, o mesmo que tem por bem punir automaticamente défices excessivos – lembra-me a punição sem culpa formada -, o mesmo que tem por bem submetermos as bases dos nossos orçamentos soberanos a órgãos europeus não eleitos que tendem para a tecnocracia.
Isto é um quadro, não é uma mancha.

Publicado no “Público” de Domingo, dia 18 de Dezembro de 2011