Arquivo da Categoria: Fernando Venâncio

Segredos públicos

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No debate surgido aqui sobre o galego e o português, interveio «Alexandre». Como a sua intervenção apareceu assinada num debate paralelo no Portal Galego da Língua, não nos parece indiscreto informar que se trata de Alexandre Banhos, conhecido sindicalista galego, destacado membro do Bloco Nacionalista Galego, hoje no poder em Compostela, e também Presidente da Associaçom Galega da Língua. Aqui segue uma reacção.

Caro Alexandre Banhos,

Escreve você que a nossa língua nasceu no eixo Compostela-Guimarães, e que por isso chamar «português» à actual língua dos galegos não é forçar grandemente as coisas.

Compreendo o seu ponto de vista. Ele exprime uma percepção das realidades em que ambos concordamos: a de que, qualquer nome que ele tenha, o seu idioma e o meu são, ainda hoje, o mesmo. A ortografia é divergente, bastantes formas são divergentes, mas as estruturas mantêm-se fundamentalmente as mesmas. Partilhamos uma morfologia, uma sintaxe e um léxico únicos na Latinidade. Por isso, e usando a nossa mais exacta expressão local, entendemo-nos sem grande dificuldade de Faro à Corunha, uma das maiores distâncias – se não a maior – de intercompreensão de toda a Europa Ocidental.

As particularidades exclusivas a galego e português são ainda hoje de tal ordem que só uma possibilidade resta: a de que, no momento em que começa a haver «Portugal», o idioma está em muito adiantada fase de desenvolvimento (não registada nos escassos documentos escritos que restam), e isso pressupõe largos séculos de evolução. Em todo esse processo, de «Portugal» nem sombra. Simplesmente, quando foi preciso dar nome à língua, os portugueses ignoravam quase tudo disto (até os principais documentos faltavam), e chamaram-lhe, nessas condições, o óbvio: «português». Mas os criadores desse portentoso idioma tinham sido o que havia: galegos.

Aqui está por que não adiro à sua proposta de se chamar «português» à língua da Galiza. E digo-lhe mais. Se a questão é um nome de internacional prestígio, que tenha em conta as actuais proporções de falantes, então só esta conclusão se impõe: que é uma incomensurável parvoíce não chamarmos, hoje já, à vossa e nossa língua, «brasileiro». Em matéria de população e de prestígio estamos falados.

Conheço as vossas vantagens de a língua da Galiza passar a usar um nome internacionalmente sonoro. Isso pode funcionar como valente açoite nas almas dos galegos que, em número crescente, e já alarmante, educam os filhos em castelhano. E é uma bofetada no rosto de Madrid, que há-de ter de reconhecer que uma das suas constitucionais «lenguas españolas» extravasa para o Atlântico e se espalha por continentes. O Estado Espanhol vai tremer nos seus alicerces, e você sabe que não estou a brincar.

Mas exactamente aqui está já um problema. A chance de o seu Estado aceitar uma balbúrdia interna, com a fragmentação territorial então mais visível do que nunca, e isso para dar à sua Comunidade Autónoma Galega o gosto de ter, para o idioma, um nome pomposo, essa chance é tão mínima, que das duas uma: ou esse seu sonho é lúdico, e vamos deixá-lo assim, ou ele é mesmo a sério, um real desafio a Madrid, e você pode ir pondo as barbas de molho.

Esse seu sonho malandro, esse saboroso desafio, que digo eu, essa directa provocação ao conjunto de Espanha, eles incluem a esperança de que Portugal – lisonjeado – diga logo: «Eh pá, porreiro, man, bué da fixe, vamos a isso, mèrmão».

Aqui, o seu sonho, que já era tramado, entra em pleno delírio. É que, assegure-se disso, nunca Lisboa – nem pelos, sem ironia, lindos olhos dos galegos – mexerá um dedo para colaborar naquilo que Madrid logo chamará o começo do estilhaçar do seu belo Estado. A sério: nem a Galiza, nem ninguém, ganhará com que Portugal se meta no atoleiro político que é Espanha. Se a Galiza for esperta, nunca aliciará Portugal para isso. Além do mais, exactamente por ser a língua a mesma, e portanto nossa também, não poderá admitir-se que ela sirva de instrumento político intra-espanhol.

Uma coisa parece, pois, clara: a tentativa de convencer Espanha e Portugal de que a língua dos galegos deve chamar-se «português» é dum êxito tão remoto, está tão fora de toda a triste realidade, que persistir nisso é um irresponsável gasto de energias, vossas e nossas. Que bem merecem um objectivo melhor.

E há, de facto, um objectivo óptimo, em que podemos começar a trabalhar amanhã de manhã: é o de aproximar estes dois magníficos povos que habitam o Ocidente Peninsular e tão lindamente se entendem. Sem agendas políticas secretas, sem golpes baixos. Só com esse, já ambicioso, programa de participar numa cidadania alargada.

E, quanto a picante, ele não faltará. Você saberá, e eu saberei que, em tudo isso, o seu e o meu idiomas são o mesmo. Alguns portugueses sabem-no, sabem-no alguns galegos (até dentro do establishment) e mesmo outros espanhóis. Deixamo-lo assim. É o nosso grande segredo. Tão grande que até em Madrid podem sabê-lo.

«O Galego, variante do Português»?

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Um despacho da Agência LUSA foi difundido por vários média portugueses no dia 7 passado. Era a propósito dum Congresso da Lusofonia, realizado em Bragança. Informava-se-nos de que «na sessão de encerramento o linguista Malaca Casteleiro (na foto) defendeu que “também o galego é uma variante do português e como tal deve se trazido para o espaço da lusofonia”».

Fiquei contente. E pasmei. Contente por ver o mais conhecido linguista português, Malaca Casteleiro, quebrar um tabu: aquele que manda silenciar as relações – íntimas, como se vê – entre português e galego. Mas pasmado pela forma em que o fez, subordinando o galego ao português.

Com efeito, afirmar que «o galego é uma variante do português» equivale a considerar o português a norma e o galego o desvio, a «variante». Com isso se avança, dá-se mesmo – em matéria de opinião portuguesa – um passo de gigante na percepção das realidades, mas esse passo dá-se para um lado deveras estranho. Ele necessitará de ser explicado, esclarecendo como é que a região de origem do nosso idioma acaba com a «variante» nos braços. É como se o Vinho Verde delimitado fosse «uma variante» do (aliás, excelente) do Bombarral. Não será por 200 milhões o consumirem que o vinho do Oeste se tornará mais ‘autêntico’.

Leiamo-lo assim: a opinião pública portuguesa não está preparada, de momento, para ouvir a verdade toda. Esta: que português e galego são variantes um do outro. Fica-se, agora, à espera da próxima façanha. E nem tão façanha como isso, pois o linguista Luís Lindley Cintra assim o concebia, e assim o escreveu, há cerca de vinte anos.

A meia verdade de Casteleiro é já muita verdade, é certo. Mas nós já somos crescidinhos. Vai custar a entrar, a verdade toda. Mas, depois, vamos ver logo o mundo com outros olhos. Este nosso mundo peninsular, por exemplo.

P.S. Talvez desnecessário

No debate ‘ibérico’, tomei sempre posição contra qualquer aproximação política entre os dois Estados da Península. A proximidade linguística entre Portugal e uma parte do Estado vizinho nada modifica nisso. Eu faria uma festa no dia em que a Galiza se tornasse independente. Seríamos talvez os maiores amigos do Mundo. Mas opor-me-ia, sempre, a qualquer união política dela com Portugal.

Reconheço que seja difícil explicar à nossa gente, medularmente nacionalista, como se podem conceber uma continuidade linguística e uma descontinuidade política. Mas não desisto de os meus compatriotas um dia o compreenderem.

Jackpot

Chegou-se ao balcão da tabacaria, onde sempre comprava os lotos, e disse:
– Como é que se faz quando se ganha um prémio grande?
O instinto dizia-lhe que não era o sr. Pires quem lhe entregaria o balúrdio. Meteria banco, contas, transacções.
– Ai ganhou muito, ontem?
O sr. Pires a radiar. Não tardava, e a televisão viria falar-lhe.
– Bastante.
E, cuidadoso, insinuou que lhe saíra o jackpot.
Já não chegou vivo ao terceiro andar.
O sr. Pires achara que, entre o rosto na televisão e um fim de vida nas Seycheles, a hesitação
era demasiado parva.

Declaração de Admiração

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O escritor Almeida Faria assinalou, com o texto abaixo, os noventa anos do professor e investigador ÓSCAR LOPES (na foto), no passado 2 de Outubro. Agradeço ao autor a oferta e disponibilização do texto.

De entre os contemporâneos de Óscar Lopes, poucos serão os escritores em Portugal que não lhe devam algo. E também alguns brasileiros – João Cabral de Melo Neto ou João Guimarães Rosa – lhe ficaram devendo atentas e lúcidas análises.No que me diz respeito, devo-lhe argutas leituras de romances meus e, pelo contexto em que isso se passou, a sua recensão a Rumor Branco. Este livro fora atacado por Pinheiro Torres que depois se disse pressionado nesse sentido por gente que com ele partilhava um fanatismo supostamente progressista. Óscar Lopes, com maior cultura e abertura, procurou pelo contrário naquele romance o que ele teria de mais autêntico.

Mas não é só da sua crítica que me declaro admirador. Aprendi com a idade a dar à lucidez o mesmo valor que dou à generosidade, e várias vezes confirmei a generosidade deste grande leitor cujos noventa anos hoje festejamos. A seguir à publicação de A Paixão, participei com Óscar Lopes em sessões públicas que sempre saltavam da literatura para a política – sendo esse justamente o seu objectivo implícito. Foram memoráveis as sessões na Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto e na Cooperativa Piedense, esta por iniciativa de Cid Simões e ambas sob mais que provável vigilância policial. Nem por isso o debate foi menos corajoso e acalorado. Da sessão na Cova da Piedade há documentos fotográficos. Da sessão portuense haverá pelo menos o testemunho de quem lá esteve.

ALMEIDA FARIA

Trabalhos de Sísifo

Isto de manter um blogue, mesmo um serenamente colectivo, como este, é uma trabalheira. Um caso recentíssimo, de ontem à noite. Um leitor dá com um texto meu de 31 de Janeiro de 2006 e faz um comentário catita.

Iniciava-se o meu «post» pelas palavras «Nunca tinha visto falar José Pacheco Pereira». O comentador – que assina Cid León – entende que mereço umas «reguadas» pelo meu «pretogunhez». Com efeito, eu deveria, entende ele, ter escrito «Nunca tinha ouvido falar JPP». As reguadas destinam-se – conclusão minha – a eu aprender que o particípio passado de «ouvir» não é… «visto».

Ora, ouvido JPP, eu tinha-o muito. Mas nunca visto falar – fora do pequeno ecrã, façam-me o favor de entender. Tive, pois, de corrigir mestre Cid León.

Tive? Eu entendi que sim. E fui lá deixar-lhe a resposta. Dei-me esse trabalho.

Mas, se calhar, sou simplesmente parvo. E ele passou por ali, e nunca mais volta.

Há uma saída para este Portugal?

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Não posso (no sentido de «não consigo tecnicamente») transpor para aqui a crónica de VASCO PULIDO VALENTE , «A corrupção do Estado», hoje no «Público». Mas aconselho vivamente a que se a leia.

Já o que disse Cravinho teria servido para assustar-nos, como Valupi aqui sublinhou. Mas Vasco faz de Cravinho – que admira – um ameno menino de coro.

Se for verdade o que ele afirma (e não vejo muito por onde iludir-nos), que fazer com este país?

A crónica vai transcrita aqui abaixo. Com um obrigado à Zazie.

Génio, Loucura ou Marketing

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Ignoro se outros têm medos recorrentes. E ignoro-o porque a malta é basto discreta em matéria de humanidade. Mas eu, eu tenho um medo recorrente. E é este: chega meados de Outono, o Nobel da literatura calha a António Lobo Antunes e eu sou chamado à televisão holandesa para um entretém a propósito.

Nada impensável. Aconteceu-me em 98, com Saramago. Nessa altura, ainda El Ibérico não tinha escrito os seus piores romances, e eu podia expor algum entuisasmo. Mas o Antunes… chegarão os seus dois únicos bons livros, Explicação dos Pássaros e O Manual dos Inquisidores, chegarão eles para atear uma minúscula chama telegénica? Talvez. Mas as reservas hão-de assomar demasiado ao ecrã para a coisa me sair festiva.

Será então agora? As estatísticas não jogam, para meu sossego, a favor do Antunes. E, pessoalmente, preferiria, de longe, um prémio para a literatura brasileira (para Rubem Fonseca, de quem acaba de sair, de novo, em Portugal A Grande Arte, na Campo das Letras) ou para a flamenga (para Hugo Claus, autor do magistral O Desgosto da Bélgica, na Asa) ou para a moçambicana (para Mia Couto, que escreveu um portentoso O Último Voo do Flamingo, na Caminho).

Como se não bastasse, as coisas estragaram-se mais nos últimos dias, desde que Lobo Antunes declarou à Visão esta modéstia: «Não tenho a menor dúvida de que não há, na língua portuguesa, quem me chegue aos calcanhares. E nada disto tem a ver com vaidade porque, como sabe, sou modesto e humilde».

Há anos, um dos romances do Antunes saiu com uma cinta em que a Dom Quixote o proclamava «um génio». Um génio não é, sobre isso podemos tranquilizar-nos. Será então um louco? Talvez. Mas até nisso não é peculiar, pois tem muitos, e bons, colegas.

Fiquemos pelo marketing. Falta agora o senhor arranjar, nisso, melhor conselheiro.

Fique, também, o desejo de que viva muitos e muitos anos. Não que a literatura ganhe grandemente com isso. Mas sempre lhe dará tempo para ir lendo romances alheios. Por exemplo, em língua portuguesa.

Actualização

Li as primeiras páginas de O Meu Nome é Legião, o romance de Lobo Antunes que acaba de sair. Sei, por críticas em jornais, como vai desenvolver-se. Por uma coisa e por outra, tenho a impressão de que é absolutamente espectacular. Lembra muito – o que só é uma recomendação – a Balada da Praia dos Cães, de Cardoso Pires, seu amigo e mestre. Não no brilho da linguagem, mas na esperteza dela.

Se o Nobel vier, estarei menos desabrigado. Mesmo não indo à televisão, claro.

Nascidos em caixas

Nenhuma norma ou lei – da Internet, do café ou da Galáxia – pode justificar o enxovalho público a que, há dias, foi submetido aqui o Daniel de Sá. A libérrima política do Aspirina em matéria de comentários permitiu que indivíduos exercessem a ofensa (não a crítica, a ofensa) sistemática.

Paralelamente a isso, construiu-se (se não nas intenções, decerto nos efeitos) um microclima em que a insinuação delirante ganhou rédea solta. Assim, alguns comentadores declararam-se «certos» de que o Daniel de Sá fora induzido à colaboração no Aspirina para ser publicamente massacrado. Uma variante virulenta desse delírio anunciou ao Mundo que esse é um procedimento habitual neste blogue.

Nada me obriga a dar acolhida a quem usa as caixas de comentários para a terapia de frustrações e paranóias. Anuncio que, nos «posts» que eu assine, valerá alguma – mínima, mas decidida – restrição. As caixas de comentários têm criado espaços onde frequentemente apetece estar. Deles, quanto de mim dependa, banirei a violência.

Nunca esquecerei que eu – e o Valupi, e o José do Carmo, e o Jorge – todos «nascemos», para o Aspirina, nas caixas de comentários (o João Pedro e a Susana já eram bloguistas – e o Zé Mário, bloguista pioneiríssimo, soube ser para alguns de nós um querido parteiro). O Daniel foi, apenas, o último a revelar-se… blogogénico.

«Ex-libris»

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Há vinte boas razões para ler-se o conto «Ex-libris», de VASCO GRAÇA MOURA, no «Actual» do último EXPRESSO, que começa assim:

O meu nome é João de Melo Saraiva e nasci em 1950. Sou engenheiro informático. Além disso, colaboro com várias leiloeiras na elaboração de catálogos de livros antigos. Esse é o meu hobby e também me rende algum dinheiro. A minha mulher pôs-se a andar, vai para 20 anos, assim, sem mais nem menos, por lhe ter dado a súbita guinada de ir viver para Jerez de la Frontera com um espanhol que ela conhecera numa caçada à raposa em que tínhamos participado. Só a Helena é que montava a cavalo e eu preferi passar a manhã a espiolhar a biblioteca do monte alentejano dos nossos anfitriões. Tudo começou aí. Ela deixou-se fascinar pelo bigodinho rente, pela melena de cigano, pela casaca vermelha muito assertoada e pelas botas de montar do sujeito, enquanto eu me enfronhava em velhos cartapácios e ia tirando uns apontamentos sobre a edição de Os Lusíadas de 1613 e a biografia do épico, sob o título de «Ao estudioso da lição poetica», assinada por Pedro de Mariz.

Mas cedo o protagonista entrará em pormenores que – não fosse a minha sólida modéstia – me estragariam para a vida. Veja-se isto:

Nunca tive grande paciência para o Castilho, salvo a propósito das análises sobre «estilo e preconceito» de Fernando Venâncio, um professor que vive na Holanda. Nunca encontrei (nem procurei) a página em que ele diz isso e que, se estou bem lembrado, começava enfaticamente: «A leitura, meus amigos, sabeis vós bem o que é a leitura?…»

Pronto. Leiam o resto.

VERTIGEM

FRANCISCO GUEDES, tradutor, e exímio organizador dos encontros Literatura em Viagem, em Matosinhos (e co-organizador das Correntes d´Escrita, da Póvoa de Varzim), ofereceu ao Aspirina um dos seus contos. Aqui vai, com um muito obrigado.

Era domingo. O verão entrava lento pela janela entreaberta afagando o corpo nu e magro de Silvino estirado em cima dos lençóis. Desenrodilhou-se. Esticou as pernas, espreguiçou-se, bocejou, sentou-se na cama e pôs os pés no chão. Alisou o cabelo com as duas mãos, espreguiçou-se uma vez mais, pensou na liberdade conquistada desde ontem (Sim, decidira não mais escutar a voz sebosa de Rodrigues, seu patrão, nem os risinhos amarelos de Gertrudes, telefonista emaranhada nos seus braços e apetites); e foi com um sorriso a aflorar os lábios finos que se dirigiu para a casa de banho. Mirou-se no espelho antes da primeira urina. As olheiras faziam prova da noite dormida em tracejado. Noite de insónia entrecortada pela excitação e pela ansiedade. Aliás, desde que lera o anúncio, o cérebro não mais parara: iria daqui para acolá, sempre a viajar, mostrando a sua arte. O mundo abriria os braços, aplaudiria em pé, faria manifestações e reconheceria com espanto o seu maravilhoso trabalho, sonhou. Sob a água tépida ensaboou-se e duchou-se longamente. Depois escanhoou-se, massajou a cara com after-shave. Demorou tempo a vestir-se, mas quando se olhou pela última vez ao espelho — o outro eu, dizia, há mais de duas décadas —, Silvino viu-se reflectido como sempre imaginara: de fato escuro, sem uma dobra fora do sítio, a quilha era o nó da gravata azul-meia-noite, de malha de seda, a meio, exactamente a meio, do corpo, dava-lhe um ar distinto. Faltavam os óculos, de aros de tartaruga. Colocou-os e, pela última vez, olhou-se na superfície fria do espelho. Gostou do que viu, pegou na pasta, que sempre o acompanhava, e saiu da Residencial, sua casa desde que aos vinte anos viera para a cidade trabalhar como contabilista. Sentiu a brisa ainda fresca das primeiras horas da manhã, eram nove e trinta. Os pés arrastaram-no para o Café ao fundo rua. Pediu um cimbalino em chávena quente, como gostava, e uma torrada de pão bijou com muita manteiga. Um gole de café uma pequena trinca na torrada sucessivamente, até acabar de ler o jornal. Pagou ao balcão. Em passos tranquilos voltou ao seu trajecto e ao amor eterno de Maria, lacrimejado e jurado naquela última tarde calorenta de Dezembro. Reencontrou-a dez anos mais tarde, no cemitério da terra, quando Silvino pai foi a enterrar. Uma ninhada de filhos a rodearem-lhe os olhos, já sem laivos de esperança nem de futuro. Continuou a descer a rua em direcção ao local. De quando em vez avistava-se por entre o granito do casario a luz doirada do rio. Só no verão, e a esta hora, o rio tinha esta cor, pensou.

FRANCISCO GUEDES
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Intervalo poético

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A poesia não nasceu para os «intervalos» da vida. Mas, se não criarmos intervalos para ela – como para o café, ou para uma volta ao quarteirão – quando chegaremos, muitos de nós, a ela? Pois então.

Seja, hoje, IVO MACHADO (Açores, 1958) e a sua última colectânea, Poemas Fora de Casa, de 2006 (edição da Exodus). Tem organização e ilustrações de Álamo Oliveira. Daí tiramos esta preciosidade.

TELEGRAMA

Filha: queres água ou nuvem?
Não penses, responde

– Água!

Eu sabia

Dentro de ti
o lago imenso da semente inicial.

Mais sobre o autor aqui.

À minha medida

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Sempre gostei do princípio antrópico. Ele diz: o Universo é como é porque nós existimos. É a versão eufórica desse princípio, e também a mais fascinante. Bem mais fascinante do que a versão fatalista: o Universo é como é para que nós existamos.

Simplesmente, existe hoje uma formulação mas refinada. Diz assim: este Universo é o único em que nós somos possíveis. A coisa é mais picante do que parece, e até bem mais do que a leitura criacionista da formulação. Com efeito, afirma-se aí que o Universo está feito à nossa medida, sim, mas também que ele não é o único pensável, e provavelmente nem o único existente. Explico-me.

Este nosso Universo está construído segundo as exactas – e estreitíssimas – constantes em que a vida, a vida como a conhecemos, foi possível. Uma pequena variação inicial, e estávamos fritos. Um acaso absurdamente feliz, portanto? Talvez, mas é pouco provável. A verdadeira explicação é duma simplicidade alucinante. Este é um dos infinitamente numerosos Universos existentes. E um deles tinha, por força, que ter estas medidas. As nossas medidas. As exactas, mas infinitamente casuais medidas que nos fazem.

Desencanta-me esta simplória matemática? Sinto-me defraudado? Qual! Todos os dias dou graças.

Quando Ferreira Fernandes mordeu a própria língua

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As coisas fazem desvios imprevistos, e são por vezes os melhores. Percebi, por um grupo de discussão galego, que Ferreira Fernandes, cronista do DN, falara da língua da Galiza. Fui ver e era verdade. Foi, repito, um desvio imprevisto, já que tenho o costume de ler o cronista.

Pois bem, Senhor Ferreira Fernandes, segure-se porque talvez vá ser preciso. Essa língua que você crê andar vítima de «modernices» e em mãos «reaccionárias» é a mesma que você aprendeu na sua nativa Angola, a mesma que eu escrevo aqui, a mesma de que você se tem servido para mostrar-se um jornalista com mérito e currículo.

Essa língua que, nos jardins-escolas galegos, se vai falar às criancinhas é a sua – delas, minha, sua – língua materna. Lá chama-se galego, aqui passou a chamar-se português. Isto, quando foi preciso darmos nome à língua, aí pelo século XVI, e já se tinha esquecido quem no-la tinha feito. Como bons nacionalistas, e bons já então desconhecedores do galego, nem nos passou pela cabeça chamá-la senão assim.

Em Portugal, filólogos competentes, como Manuel Rodrigues Lapa, linguistas argutos, como Luís Lindley Cintra, exprimiram-se claramente sobre a unidade do idioma em toda a faixa ocidental peninsular. Mas, afora eles, nunca foi bom-tom desafiar tanto o nosso senso comum, nacionalista até ao tutano. Os actuais linguistas portugueses são, a este respeito, tremendamente discretos. Elas queimam. E ninguém quer caídos o Carmo e a Trindade.

É um facto: o idioma lá em cima soa diferentemente, escreve-se diferentemente. Mas é linguisticamente o mesmo que aí em Lisboa. Na realidade, trata-se de duas normas – diferentes, marcadíssimas – da mesma língua.

O idioma que as criancinhas galegas vão poder falar também nas escolas é, sabe-o você agora, uma língua da Primeiríssima Divisão, a sétima do Mundo.

Não era razão para nos congratularmos um pouco, em vez de fazermos esse humor deprimente?

Actualização

A crónica de FF já tinha sido comentada aqui, aqui e aqui.

Prémios para EPC – 1

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Eu sabia, sabia que o tinha feito. Eu lera Tudo o que não escrevi, de Eduardo Prado Coelho, como ele diz que poucos críticos em Portugal fazem, «de lápis na mão». Não o li como crítico. Apenas como curioso. Muito curioso, aliás.

Reabro hoje (já o fizera mais vezes) esses dois volumes. E vejo que o meu lápis foi, ao longo deles, desenhando um retrato de EPC. O meu retrato de EPC. Cada linha dele, desse retrato, pode levar hoje um prémio. Prémios meus, ça va sans dire.

Prémio E Diz Você Isso Nessa Linguagem Luminosa

«O que os simplificadores não entendem é afinal algo que se pode dizer numa frase muito sim- ples: que vale sempre mais correr o risco da obscuridade e da ilegibilidade do que ficar no conforto da acessibilidade. Feitas as contas, foi sempre a obscuridade que venceu» (vol. I, pág. 27).

Prémio Mas Ele Até Tem Invejosos Baris

«Somos todos vítimas do poder pessoano, mas vítimas recompensadas e felizes. Pessoa não esconde, nem faz sombra, ao contrário do que pensam os invejosos apressados» (vol. I, pág. 79).

Prémio E Se Fosse Só O Canal Da Mancha?

«Ainda hei-de um dia tentar compreender melhor que imagem do quotidiano me separa tão visceralmente de tudo o que é Laura Ashley» (vol. I, pág. 106).

Prémio Nem Imaginou Você Como Vem A Propósito

«O gosto da citação tem a ver com um amor intenso das palavras. […] Retirar as palavras de um contexto (a citação faz um desvio) é criar em torno delas um halo de silêncio» (vol. I, pág. 113).

Edições Asa, primeiro volume, 1992, segundo volume, 1994