FRANCISCO GUEDES, tradutor, e exímio organizador dos encontros Literatura em Viagem, em Matosinhos (e co-organizador das Correntes d´Escrita, da Póvoa de Varzim), ofereceu ao Aspirina um dos seus contos. Aqui vai, com um muito obrigado.
Era domingo. O verão entrava lento pela janela entreaberta afagando o corpo nu e magro de Silvino estirado em cima dos lençóis. Desenrodilhou-se. Esticou as pernas, espreguiçou-se, bocejou, sentou-se na cama e pôs os pés no chão. Alisou o cabelo com as duas mãos, espreguiçou-se uma vez mais, pensou na liberdade conquistada desde ontem (Sim, decidira não mais escutar a voz sebosa de Rodrigues, seu patrão, nem os risinhos amarelos de Gertrudes, telefonista emaranhada nos seus braços e apetites); e foi com um sorriso a aflorar os lábios finos que se dirigiu para a casa de banho. Mirou-se no espelho antes da primeira urina. As olheiras faziam prova da noite dormida em tracejado. Noite de insónia entrecortada pela excitação e pela ansiedade. Aliás, desde que lera o anúncio, o cérebro não mais parara: iria daqui para acolá, sempre a viajar, mostrando a sua arte. O mundo abriria os braços, aplaudiria em pé, faria manifestações e reconheceria com espanto o seu maravilhoso trabalho, sonhou. Sob a água tépida ensaboou-se e duchou-se longamente. Depois escanhoou-se, massajou a cara com after-shave. Demorou tempo a vestir-se, mas quando se olhou pela última vez ao espelho — o outro eu, dizia, há mais de duas décadas —, Silvino viu-se reflectido como sempre imaginara: de fato escuro, sem uma dobra fora do sítio, a quilha era o nó da gravata azul-meia-noite, de malha de seda, a meio, exactamente a meio, do corpo, dava-lhe um ar distinto. Faltavam os óculos, de aros de tartaruga. Colocou-os e, pela última vez, olhou-se na superfície fria do espelho. Gostou do que viu, pegou na pasta, que sempre o acompanhava, e saiu da Residencial, sua casa desde que aos vinte anos viera para a cidade trabalhar como contabilista. Sentiu a brisa ainda fresca das primeiras horas da manhã, eram nove e trinta. Os pés arrastaram-no para o Café ao fundo rua. Pediu um cimbalino em chávena quente, como gostava, e uma torrada de pão bijou com muita manteiga. Um gole de café uma pequena trinca na torrada sucessivamente, até acabar de ler o jornal. Pagou ao balcão. Em passos tranquilos voltou ao seu trajecto e ao amor eterno de Maria, lacrimejado e jurado naquela última tarde calorenta de Dezembro. Reencontrou-a dez anos mais tarde, no cemitério da terra, quando Silvino pai foi a enterrar. Uma ninhada de filhos a rodearem-lhe os olhos, já sem laivos de esperança nem de futuro. Continuou a descer a rua em direcção ao local. De quando em vez avistava-se por entre o granito do casario a luz doirada do rio. Só no verão, e a esta hora, o rio tinha esta cor, pensou.
FRANCISCO GUEDES
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Ao meio-dia em ponto entrou no tasco. Sentou-se por baixo da parreira. Uma magnífica vista sobre o rio, hoje pachorrento, de águas lisas. Pediu cabrito assado e um jarro de palhete de Sabrosa. Antes, uma canja com todos os matadores, sr. António. Refeiçou tranquilamente, saboreando, deliciando-se com as batatinhas assadas, com os grelos, com o cabrito de pele estaladiça, com o palhete. Para terminar um café com cheirinho.
Estava satisfeito, um pouco ansioso talvez, agora que se aproximava o momento, esse momento que tantas e tantas vezes desejara. Há anos que se preparava. Sabia tudo sobre circos. Tinha-os visto todos os que passaram pela cidade. Lera tudo o que havia. Por isso se preparara para esta ocasião, durante horas, dias, anos. O emprego seria seu, sentia-o.
Chegou ao local ainda cedo, faltava hora e meia para a entrevista. Andou por ali à volta da tenda ainda vazia de público. Viu as jaulas dos leões, as dos tigres, os palhaços de olhar triste apesar das pinturas alegres dos rostos; os trapezistas, o mágico na sua capa preta. Viu tudo e uma alegria repentina invadiu-o. Amanhã, por esta hora, do outro lado da cidade, no escritório, o Rodrigues, seu ex-patrão, andaria de um lado para o outro, furioso, cigarro atrás de impropério na boca. “Onde raio se terá metido o cabrão do Silvino? Gertrudes, ligue outra vez para a Residencial, talvez esse filho de uma dúzia de quinze putas tenha voltado…”, e ele ralado. Pouco lhe interessava o que podia pensar o Rodrigues. Faltavam dez minutos e a excitação nocturna voltava a assaltá-lo. Suores frios, a boca seca, uma imensa necessidade de andar sem rumo, de calcorrear caminhos desconhecidos manteve-o, mudo e quedo, frente à porta do escritório. O rufar dos tambores fez-se ouvir, chegou o momento, disse para si, a voz metálica anunciou: “Senhoras e senhores, meninas e meninos, o Grande Circo Internacional…”, já não ouviu o resto; abotoou o casaco, com o indicador ajustou os óculos (estava a um passo da liberdade com que sempre sonhara) e entrou. “Bom dia”, disse para uma secretária coalhada de dossiês, para dois telefones pousados nos respectivos descansos. Do outro lado só uma cadeira vazia. Ninguém. Ter-se-ia enganado no dia, no local. Pânico. Um autoclismo fez-se ouvir. A porta, em que não reparara abriu-se e um homem enorme, em mangas de camisa, encarou-o, abotoando a braguilha. “Que sabe fazer?”, inquiriu-o, sem sequer lhe retribuir o bom dia, mirando-o de alto a baixo, desdenhosamente. “Imito pássaros”, respondeu Silvino. Uma ruidosa e desagradável gargalhada encheu a pequena sala. Os braços, num gesto largo, abriram-se, abarcando o mundo. “Ó homem, nós temos domadores, acrobatas palhaços ricos e pobres, elefantes, leões, cães amestrados, tudo o que há de melhor no mundo do espectáculo, e você diz-me que imita pássaros! Esta é uma grande empresa, não é uma coisinha de amigos de café. Temos um nome. Somos reconhecidos em Portugal e, mesmo, em Espanha. Porra! Pássaros? Piu-piu práqui, piu-piu pracolá, porra! Não me lixe, tenho mais que fazer. Vá procurar um aviário. Porra! Três vezes porra! Pássaros? Era o que faltava.”
Silvino levantou-se vagaroso da cadeira, olhou as manchas de suor que inundavam as axilas do gerente, reparou nos seus dedos oleosos e grossos prenhes de anéis dourados, na volta também dourada de encontro ao peito, aproximou-se da janela aberta, olhou pela última vez a montanha de banhas que, na sua frente, ainda casquinava, emitiu delicadamente um Bom-dia semelhante ao piupiar de uma águia, virou-se, abanou as asas e saiu voando em direcção ao azul do céu.
FRANCISCO GUEDES
um muito obrigada ao francisco guedes.
que sorte tenho de apanhar boa literatura nos blogs
te agradeço
Belíssima história. Não gostei tanto do estilo.
O estilo? Isso existe?
Excelente pergunta, Cláudia. Até eu ler «Fiction et Diction» e «L’Oeuvre de l’Art» do Genette, também pensava como tu – o «estilo» é um palavrão que serve para designar aquilo que o sujeito enunciador não consegue identificar. E mais não digo: vai ler os livros.
Gostei, como exercício. Tem umas falhas displicentes. Venham mais.