Arquivo da Categoria: Fernando Venâncio

Os Dois Onésimos

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Na mais recente festa de formatura da Brown University, de Providence (costa leste dos Estados Unidos), coube a Onésimo Teotónio Almeida ser – nas suas venerandas palavras – «o portador oficial do símbolo do poder da universidade, à frente da reitora nas procissões». E recorda o seu estatuto de ex-seminarista (acontece aos melhores), suspirando: «Para o que havia de estar guardado quem há muito despiu a batina!»

Julga você que se trata do mesmo Onésimo Teotónio Almeida, autor das descontraídas crónicas de Que Nome É Esse, ó Nézimo, e Outros Advérbios de Dúvida, 1994, de Rio Atlântico, 1997, de Viagens na Minha Era, 2001, e de Livro-me do Desassossego, 2006?

Esfregue os olhos. Pode estar a sonhar.

Coisas de muito espantar – 2

PRAZERES RÁPIDOS

– Sabias que não precisas de ser gay para escrever uma bela história do género?
– Que género?
– Género gay. Arre, és lento de percepção.
– Tu é que complicas. Mas então estavas a dizer…?
– Que não é preciso seres…
– Yá. E é porreiro. Assim, ainda guardo as minhas chances.
– Exacto. Agora, já só te falta escreveres bem.
– Filho da…
– Mas há mais.
– Mais?
– É que, para escreveres uma linda história lésbica, também não precisas de ser mulher.
– Essa… essa é do catano. E como é que sabes?
– Li.
– E quem é que disse?
– Ninguém. Eu li. Li a história. Chama-se Sedução. É dum português.
– Título basto comercial.
– Tás a gozar. Mas hás-de ler. Já ouviste falar do José Marmelo e Silva?
– Marmelo… conheço.
– Esse ainda é um gajo novo. O Marmelo e Silva morreu há anos largos. E o livro, esse é
dos anos 30. Uma pequena pérola, vai por mim. Há edições recentes.
– Hei-de ler. E a outra coisa… Essa do straight. Também é português?
– Era. O Alexandre Pinheiro Torres. O nome diz-te alguma coisa?
– Vagamente.
– Não diz nada, portanto. E é um fabuloso romancista. É, não duvides.
– E escreveu um romance gay.
– Uma novela… O título, aviso-te, é foleiro à brava.Segura-te. Amor, Tudo Amor, Só Amor.
– Ui!
– E disse-me um gajo, amigo dele, que o convenceu a encurtar. Mas o que interessa: a história
é de partir o coco.
– Vou ler também.
– Lê. Mas devagarinho. São prazeres muito rápidos.
– … Espera. E… e malta gay com grandes livros straight?
– Essa é aos montes.

Saber antigo

A menina era gentil. E bonita, santo Deus! Da ementa que me trouxe constava xôpa grelhada.
Pareceu-me estranho. Pedi explicações.
– É um peixe do mar, sei lá!
Fiquei na mesma. E logo ela harmonizou. Abriu-me o menu da véspera, paspada no carvão.
– Come e cala-te! – disse eu, a rosnar com os meus botões.

Jorge Carvalheira

De Cardoso Pires a Fernando Mendes – Um Peso certo, uma palavra errada

Para quem possa parecer insólita esta associação entre o escritor José Cardoso Pires e o actor Fernando Mendes esclareço já que se trata de ligação legítima. O autor de Balada da Praia dos Cães nasceu no Peso (Vila de Rei) e o apresentador do «Preço certo» esteve no Peso (Santa Catarina) numa festa com a finalidade de angariar fundos para o piso sintético do campo de futebol local. Tenho aqui o livro A república dos corvos de José Cardoso Pires com uma dedicatória amável datada de Maio de 1991 que conclui deste modo: «José do Carmo Francisco oxalá encontre o mesmo prazer que eu encontrei nos seus Jogos Olímpicos. Um abraço de parabéns José Cardoso Pires». Na contracapa lá está o erro crasso: «José Cardoso Pires nasceu no Peso, Covilhã, a 2 de Outubro de 1925.» Na página 5535 da Nova Enciclopédia Larousse vem de novo o mesmo erro: «Pires (José Cardoso) escritor português (n. Peso, Covilhã, 1925)» Nós sabemos que Vila de Rei é cá para baixo e Covilhã é lá para cima. O Fernando Mendes aparece no Diário de Notícias de 3-6-2007 a dar um pontapé de saída para um jogo no Peso (Santa Catarina), mas a notícia assinada por João Fonseca de Coimbra refere outra coisa: «As centenas de pessoas que assistiram ao jogo, ontem à tarde no Peso, Caldas da Rainha, não tiram os olhos do pelado mas no final não se entendem quanto ao resultado.» O Peso onde Fernando Mendes esteve fica na freguesia de Santa Catarina e não na freguesia de Caldas da Rainha. Isso era se o Peso ficasse no Avenal ou na Lagoa Parceira. Mas não. Fica em Santa Catarina, a mais de 18 quilómetros das Caldas. O Peso do Cardoso Pires é ainda mais longe: de Vila de Rei à Covilhã é um esticão. Mas ambos estão errados.

José do Carmo Francisco

É pa rir?

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Uma sessão de autógrafos de ANTÓNIO MANUEL VENDA , na Feira do Livro de Lisboa, foi cena de perturbação. Mais publicidade para O Que Entra Nos Livros? Por aí, não haverá queixa. Mas a ordem pública parece, com isto, desafiada.

Está tudo contado no blogue do autor.

O contador está maluco

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Acontece. Aos melhores, claro. Confia-se na técnica, e ela emperra. Não que seja decisivo. Com dez leitores por dia, o Aspirina esmerar-se-ia na mesma. Mas acontece que recebemos bem 1000 visitantes por dia (e mais 1000 caem aqui trazidos pelo vento). Isto em média.

Até há poucos dias. Porque o contador entrou em crise. Emocional, suponhamos. E hoje, está vendo, ainda ninguém nos veio ver. Não, querida leitora, querido leitor. Você… não conta.

Para o contador. Connosco é outra história.

Bem-vindos, pois. Entrem e sentem-se.

Iniciação

Os pais deixaram Gonçalo à porta de Gina, a caminho do aeroporto, para umas férias de sendeirismo nos Cárpatos.

Gina acolheu encantada o seu ‘menino’, agora de dezasseis anos. Tinha sido ama do pai
e só saíra para casar. O casamento durara um fósforo, mas agora via-se com casa.
Quartos de criada nunca mais.

Os oito dias das férias paternas, passou-os Gonçalo na cama com Gina. Aquilo havia sido fulminante, diria o moço com mais preparação. A novidade, as estatísticas hormonais e um começo de viciação, também ela de foro científico, facilitaram o débito.

Quando os pais vieram buscá-lo, Gina não pôde conter-se: ‘Está um homenzinho’.

A mãe, no lugar do passageiro, sorriu. O pai, ao volante, compreendeu, e sorriu também.

A Gina continuava impecável.

fv
Amsterdão, 3.6.2007

Coisas de muito espantar – 1

FORTE DOS TEIXOS

– Sabes o que têm Évora e York em comum?
– Não. Uma universidade?
– Também. Mas mais importante.
– Eh pá, não sei. Serem cidades bonitas?
– Outra coisa. Bom, dou-te uma ajuda. O nome.
– O nome?
– O nome.
– Agora está a querer gozar.
– Pode-te parecer, mas é como eu digo. York e Évora têm o mesmo nome. Bom, tiveram.
– E qual? Pode saber-se?
Eboracum. Tinham uma fortaleza.
– Ah!
– E havia por lá uma data de teixos.
– Teixos?
– É um tipo de árvores. Coníferas, nunca ouvistes falar? Têm frutos em forma de cone.
Como o pinheiro. É também uma conífera.
– O que tu sabes! E então…
– Então, os celtas, porque foram eles, chamaram eboracum, a essa fortificação que ficava
ao pé dos teixos.
– E isso foi em Évora?
– Exacto.
– E em York?
– Nem mais.
– Mas então…?
– Então, de eboracum formou-se «York», como se formou «Évora». As leis da derivação não
são universais.
– Eu fico espantado.
– Não fiques. Daqui a dias, conto-te outra.

A CAMA GRANDE

À memória, escusado lembrar, de Mestre Leiria

Martim amava Sílvia. Amava-a muito. Por assim dizer, todas as noites. Para o irmão Paulo, na cama ao lado, era um tormento que ninguém merecia.

Chegou a Martim o primeiro ataque cardíaco. Iria ser também o último. Numa tarde, saíra Sílvia a fazer compras, disse ele a Paulo:

– Chavalo, eu sei como vai ser, quando eu lerpar.

Paulo fez-se desentendido, e até podia está-lo. Martim, mano como poucos, explanou.

– Quando eu for desta, tu hás-de, malandro… Se até se lê nos olhos!

Paulo, olhando agora o chão, rendia-se. Martim prosseguiu:

– E já que é isso, mais vale ires aprendendo. Eu nunca a tratei mal.

A partir dessa noite, dormiram todos três na cama grande. Anos, anos largos.

Morreram sem dar por isso, uma noite de Inverno em que o calorífero lhes queimou o ar.

fv
Amsterdão, 27-V-2007

«Lugares Comuns»

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Conhecia eu, de JOÃO LUÍS BARRETO GUIMARÃES, os malandros sonetos de Este Lado Para Cima, de 1994, mais as esplêndidas crónicas que, no ano seguinte, escreveu no JL. Depois perdi-o de vista. Ou outros, alguns bem menos interessantes do que ele, ma toldaram.

Só recentemente soube que, nesses dois exactos anos, estava ele trabalhando numa série de curtos textos, que em 2000 (ed. de Mariposa Azual, Lisboa) apareceram, e a que chamou Lugares Comuns. Todos concebidos e redigidos num café do Porto. Como esta minúscula obra-prima:

26 DE SETEMBRO

Há muito tempo não me calha um café pela chávena esquinada. Por ela me apercebi que o ciclo de rotação das chávenas pelos clientes é, em média, de uma vez por mês.
Setembro inteiro passou sem que me tivesse calhado uma curta vez que fosse, a familiar chávena esquinada. Dia após dia rodei a pequena asa branca, na pressa de conhecer no perímetro da cerâmica, aquela ferida antiga. Na última vez que a usara, uns lábios tinham-na beijado com tanto afago pela manhã que pelo final do dia trazia ainda, indeléveis, as marcas daquele afecto. Não é fácil lavar um beijo.
De quando em vez o acaso rasga o espaço do Café, e chega-nos desde o balcão a inconfundível voz de cacos espalhando-se em descuido contra o mosaico do chão.
Desconfio seriamente que a chávena tenha morrido.

Há mais aqui. João Luís Barreto Guimarães (1967, na vida diária médico-cirurgião) tem ainda, junto com Jorge Sousa Braga, um blogue sobre poesia.

«Enfim, só!»

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Os largos ombros do Público que me desculpem, mas este texto, de António Barreto, é histórico. Um dia será ‘nosso’. Seja nosso já hoje.

ENFIM, SÓ!

Público, 27.05.2007
António Barreto
Retrato da Semana

A saída de António Costa para a Câmara de Lisboa pode ser interpretada de muitas maneiras. Mas, se as intenções podem ser interessantes, os resultados é que contam. Entre estes, está o facto de o candidato à autarquia se ter afastado do governo e do partido, o que deixa Sócrates praticamente sozinho à frente de um e de outro. Único senhor a bordo tem um mestre e uma inspiração. Com Guterres, o primeiro-ministro aprendeu a ambição pessoal, mas, contra ele, percebeu que a indecisão pode ser fatal. A ponto de, com zelo, se exceder: prefere decidir mal, mas rapidamente, do que adiar para estudar. Em Cavaco, colheu o desdém pelo seu partido. Com os dois e com a sua própria intuição autoritária, compreendeu que se pode governar sem políticos.

Onde estão os políticos socialistas? Aqueles que conhecemos, cujas ideias pesaram alguma coisa e que são responsáveis pelo seu passado? Uns saneados, outros afastados. Uns reformaram-se da política, outros foram encostados. Uns foram promovidos ao céu, outros mudaram de profissão. Uns foram viajar, outros ganhar dinheiro. Uns desapareceram sem deixar vestígios, outros estão empregados nas empresas que dependem do Governo. Manuel Alegre resiste, mas já não conta. Medeiros Ferreira ensina e escreve. Jaime Gama preside sem poderes. João Cravinho emigrou. Jorge Coelho está a milhas de distância e vai dizendo, sem convicção, que o socialismo ainda existe. António Vitorino, eterno desejado, exerce a sua profissão. Almeida Santos justifica tudo. Freitas do Amaral reformou-se. Alberto Martins apagou-se. Mário Soares ocupa-se da globalização. Carlos César limitou-se definitivamente aos Açores. João Soares espera. Helena Roseta foi à sua vida independente. Os grandes autarcas do partido estão reduzidos à insignificância. O Grupo Parlamentar parece um jardim-escola sedado. Os sindicalistas quase não existem. O actual pensamento dos socialistas resume-se a uma lengalenga pragmática, justificativa e repetitiva sobre a inevitabilidade do governo e da luta contra o défice. O ideário contemporâneo dos socialistas portugueses é mais silencioso do que a meditação budista. Ainda por cima, Sócrates percebeu depressa que nunca o sentimento público esteve, como hoje, tão adverso e tão farto da política e dos políticos. Sem hesitar, apanhou a onda.

Desengane-se quem pensa que as gafes dos ministros incomodam Sócrates. Não mais do que picadas de mosquito. As gafes entretêm a opinião, mobilizam a imprensa, distraem a oposição e ocupam o Parlamento. Mas nada de essencial está em causa. Os disparates de Manuel Pinho fazem rir toda a gente. As tontarias e a prestidigitação estatística de Mário Lino são pura diversão. E não se pense que a irrelevância da maior parte dos ministros, que nada têm a dizer para além dos seus assuntos técnicos, perturba o primeiro-ministro. É assim que ele os quer, como se fossem directores-gerais. Só o problema da Universidade Independente e dos seus diplomas o incomodou realmente. Mas tratava-se, politicamente, de questão menor. Percebeu que as suas fragilidades podiam ser expostas e que nem tudo estava sob controlo. Mas nada de semelhante se repetirá.

Oestilo de Sócrates consolida-se. Autoritário. Crispado. Despótico. Irritado. Enervado. Detesta ser contrariado. Não admite perguntas que não estavam previstas. Pretende saber, sobre as pessoas, o que há para saber. Deseja ter tudo quanto vive sob controlo. Tem os seus sermões preparados todos os dias. Só ele faz política, ajudado por uma máquina poderosa de recolha de informações, de manipulação da imprensa, de propaganda e de encenação. O verdadeiro Sócrates está presente nos novos bilhetes de identidade, nas tentativas de Augusto Santos Silva de tutelar a imprensa livre, na teimosia descabelada de Mário Lino, na concentração das polícias sob seu mando e no processo que o Ministério da Educação abriu contra um funcionário que se exprimiu em privado. O estilo de Sócrates está vivo, por inteiro, no ambiente que se vive, feito já de medo e apreensão. A austeridade administrativa e orçamental ameaça a tranquilidade de cidadãos que sentem que a sua liberdade de expressão pode ser onerosa. A imprensa sabe o que tem de pagar para aceder à informação. As empresas conhecem as iras do Governo e fazem as contas ao que têm de fazer para ter acesso aos fundos e às autorizações.

Sem partido que o incomode, sem ministros politicamente competentes e sem oposição à altura, Sócrates trata de si. Rodeado de adjuntos dispostos a tudo e com a benevolência de alguns interesses económicos, Sócrates governa. Com uma maioria dócil, uma oposição desorientada e um rol de secretários de Estado zelosos, ocupa eficientemente, como nunca nas últimas décadas, a Administração Pública e os cargos dirigentes do Estado. Nomeia e saneia a bel-prazer. Há quem diga que o vamos ter durante mais uns anos. É possível. Mas não é boa notícia. É sinal da impotência da oposição. De incompetência da sociedade. De fraqueza das organizações. E da falta de carinho dos portugueses pela liberdade.

Duas lágrimas e uma chaga

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Ninguém me consola de ver o Esplanar parado. Supõe-se (bom, suponho) que tanto Carlos Leone como João Pedro George andam em parte incerta.

Aliás (uma confissãozinha, num blogue anti-confessional, como é este), se eu alguma vez – quod Deus avertat – começasse um blogue sozinho, haveria de chamar-lhe assim: Em Parte Incerta. Não tenho planos. Estou muito bem aqui. Mas, pelo sim pelo não, ponho o pezinho em cima do lindo nome. Até porque há quem tenha um blogue pessoal e um Aspirina… Mas não falem disto ao Zé Mário.

Ninguém me consola, também, de dar com o Não li nem quero ler de rodas no lamaçal. Ele que era tão parvo, tão divertido e, aqui e ali, tão indispensável.

Mas nem tudo são desconsolos. As Ligações perigosas – essas, de cabo a rabo indispensáveis – continuam ligadas ao mundo.

Actualização

Uma busca sobre Casais Monteiro leva-me ao blogue A Vez do Peão b. Carlos Leone mora aqui.

«Os Dias na Noite»

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Pedro Chagas Freitas

Tive o prazer de apresentar, na Fnac do Chiado, o novo romance de Pedro Chagas Freitas. Como escreveu este vosso servidor no prefácio à obra, Os Dias na Noite é um livro «duro», «mais um», do jovem jornalista de Guimarães. «Para ler com algum contrapeso de esperança no mundo.»

E mais escreveu o prefaciador: «Pedro Chagas Freitas é um modelo de crueldade literária. Não há miséria humana que o comova, e que por isso se adoce a nossos olhos. Não existem suficientemente boas disposições no bicho humano que o convidem ao lirismo. O sangue corre, as almas dilaceram-se. Cedendo a alguma pirosice, diríamos que a bolinha vermelha é, no que ele escreve, constante».

Sr. Ministro, leia aqui no Aspirina

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O ministro, a Ota ou como o autismo só pode criar suspeições

Público, 25.05.2007
José Manuel Fernandes

O ministro das Obras Públicas passou da teimosia ao autismo e deste a uma tão desastrada cegueira que, com toda a frontalidade, é preciso perguntar: a quem interessa este ministro? A quem interessa mesmo que o aeroporto se construa na Ota? Por que motivos a insensatez de tal opção não é explicada numa altura em que já se percebeu que os motivos que levaram a escolher a Ota já não são válidos? É que se não há um argumento racional a favor da Ota, só outras fidelidades, ou interesses desconhecidos, podem explicar uma tal teimosia. Por isso, ou o ministro e o Governo explicam a bondade da Ota, ou a dúvida instalar-se-á na opinião pública. É que se Mário Lino estivesse limitado à capacidade de raciocínio de quem tem um único neurónio, algo que por certo não sucede num engenheiro “a sério” que até está inscrito na Ordem, o que disse seria desculpável. Tendo mais neurónios, por que fez do discurso uma sucessão de atoardas, inverdades, mistificações e disparates?
Como é que um ministro diz que a Margem Sul do Tejo é um “deserto para onde seria necessário deslocar milhões de pessoas”? E como foi possível tentar corrigir agravando o disparate, dizendo que não se referia à Margem Sul, apenas às localizações alternativas propostas para o novo aeroporto?

Para assim falar, ou Mário Lino nunca olhou para um mapa de Portugal, ou vive em Marte. Qualquer das alternativas fica mais perto de Lisboa do que a Ota; qualquer delas é hoje servida por duas ou três auto-estradas já construídas. Há uma linha férrea que passa por lá. Um hospital central mais perto do que haveria na Ota. Indústria por todo o lado. Há portos perto, enquanto para a Ota só se poderia contar com o “famoso” porto de águas profundas de Peniche, hipótese que alguns lunáticos já colocaram. Em suma: qualquer das novas localizações está mais próxima dos milhões de pessoas que deveria servir do que a Ota. Mesmo para quem mora em concelhos a norte do Tejo como Cascais, Sintra ou Oeiras. De resto, se para ter um aeroporto fosse necessário deslocar para as suas proximidades “milhões de pessoas”, então o melhor é deixá-lo onde está, no centro de Lisboa. Mário Lino falou também de um deserto e de sítios “sem gente, sem turismo, sem comércio” quando lhe bastaria, de novo, olhar para o mapa ou abrir o Google Earth para perceber que estava a dizer um disparate. Ou não existissem estudos a defender que, excluindo o impacto ambiental, Rio Frio seria melhor do que a Ota, estudos que estão na Internet mas que Lino disse não existirem…

Não contente, interrogou-se sobre se a engenharia portuguesa teria alguma dificuldade em resolver o problema de “um aterrozinho num mundo onde se constroem aeroportos no mar”. Sucede que o tal aterrozito implicará a movimentação do equivalente a uma coluna de terra com as dimensões de um campo de futebol e 10 quilómetros de altura. Faz-se, mas só com muito dinheiro. Ou, por outras palavras, dando muito dinheiro a ganhar a muita gente. Em Portugal sabe-se o que isto costuma significar.

Mário Lino quer ainda construir uma nova central ferroviária em Chelas. Caríssima, como está bem de ver. E quer levar o TGV por viadutos e túneis até à Ota, outra obra faraónica e propícia a megaconcursos e monumentais derrapagens financeiras.

A pérola final foi considerar que escolher aquelas localizações seria como construir “uma Brasília no Norte do Alentejo”. Norte do Alentejo? O nosso engenheiro “a sério” já esqueceu a instrução primária, pois lá terá aprendido que os lugares em discussão ainda ficam na Estremadura, e nunca deve ter olhado para os mapas das regiões-plano, pois situam-se na que é conhecida por “Lisboa e Vale do Tejo”.

É caso para perguntar se o ministro sequer leu os dossiers…

José Manuel Fernandes

Primeiros amores

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O primeiro grande romance gay da nossa literatura, acabou por escrevê-lo Eduardo Pitta.

Poderíamos tê-lo desejado de Guilherme de Melo, autor de Ainda havia sol (1984) e O que houver de morrer (1989). Ou esperado de João Aguiar, que com Navegador solitário (1996) pareceu aproximar-se da proeza. Ou aguardado de Frederico Lourenço, cuja trilogia iniciada com Pode um desejo imenso (2002) veio pôr a razoável nível a fasquia.

Poderiam tê-lo ousado grandes contistas como Mário Cláudio, que escreveu «Il Signore Inglese», em Itinerários (1993). Ou José Lourido, autor do fabuloso e desconhecido «A absurda eficácia da matemática», em O príncipe que se transformou em sapo (1993). Ou Possidónio Cachapa, autor do não menos fabuloso e felizmente algo mais conhecido O nylon da minha aldeia (1997). Ou Miguel Vale de Almeida, com as excelentes narrativas de Quebrar em caso de emergência (2001).

Mas não. Haveria de ser Eduardo Pitta, com esta Cidade proibida, acabada de sair na Quid Novi. Do contista de Persona (2000, agora reeditado na mesma casa) poderia já esperar-se a façanha. Mas as grandes obras são sempre uma surpresa.

O livro é um must. E não só pela temática (sempre curiosa, mas nunca garantia de qualidade), como sobretudo pela valente respiração de que o relato se toma. Os lugares, as épocas, os ambientes, tudo rodopia com nitidez, com embalo, com vertigem (só aqui e ali excessiva para a concentração comum, como a deste leitor), criando sabiamente expectativas, conferindo colorido a personagens e brilho a episódios.

Assinale-se a crua limpidez do vocabulário erótico. Assinale-se, também, a abrupta e bem gerida inclusão, em existências queque, do elemento bas fonds.

Lamente-se, sim, a frívola atracção das etiquetas, a obsessiva pose dos livros, da música, dos vinhos, das iguarias, da hotelaria, dos diplomas, que roça a obscenidade na descrição dum jantar volante, quase a meio do livro. O leitor verá. E tentará perceber porque é que – banal exemplo – haverão uns sneakers de ser tão fatalmente Louis Vuitton.

Ninguém morre. Ninguém fica com ninguém. E os primeiros amores, mesmo se proletários, revelam-se, embora definitivamente perdidos, os verdadeiros.

Definitivamente perdidos? A estas alturas do campeonato (perdoe-se o registo), a malta cheira as sequelas. De momento, basta esta Cidade proibida para encher as medidas.

Bazar

O livro está ali no escaparate, “traduzido para mais de dez línguas”. Serão doze, uma vintena? As mais são apenas dialectos?
Conheço bem o romance, li-o mais do que uma vez. É um edifício robusto, construído à moda antiga. Andam-lhe águas no telhado, e tem algumas rachas nas paredes. Mas não se gasta nos umbiguismos correntes, nem nos enfada a cabeça. Um leitor sem exigências de ouvido toma-o por sinfonia e dedica-lhe o serão. Não admira a trigésima edição.
Já “traduzido para mais de dez línguas”, que parte da humanidade andará privada dele?

Jorge Carvalheira

Ambiguidades

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No portal do Público, está a versão integral, e muito ilustrada, da entrevista que Luís Miguel Queirós fez a Eduardo Lourenço, e saiu na última «Pública».

Destaco esta passagem, que já vinha em papel e que merece reflexão.

Veja o Aquilino, que os mais militantes da minha geração inscreveram quase à força nas suas hostes. Depois de 1945, ele chegou realmente a ter obras apreendidas. Mas sempre trouxe nas badanas dos seus livros uma frase de Salazar, a gabar-lhe o estilo. Eram da mesma geração, tinham passado ambos pelo seminário, não eram homens com a mesma mentalidade, mas eram homens do mesmo mundo.

Lembro-me de o Torga me ter contado uma história que se passou com um ministro de Salazar, o Leite Pinto, que ia ao Brasil. O Torga tinha estado lá e era muito conhecido no Brasil, de modo que podia servir como uma espécie de cartão-de-visita, mesmo sendo hostilizado cá dentro. Ora, esse Leite Pinto, antes de partir, foi-se despedir de Salazar e, nessa visita, começou a recitar um poema do Torga. O mais interessante é que Salazar continuou o poema, e acabou de o dizer. O Torga contou-me isto com lágrimas nos olhos. A vida é muito complicada.

Pastelaria Suíça

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O senhor que me serve o café já reparou em mim. Nada de particular. É um bom empregado. No seu registo profissional, eu sou aquele fulano que aparece por ali quando lhe dá na telha, isto é, servindo um perfeito caos estatístico.

O que ele não sabe é que, todos os dias que Lisboa tem de aguentar-me no lombo, a minha chávena de café é feita ali. Não porque a qualidade do produto seja grande. Mas sou eu que, numa vida certinha, acabo dando chances ao irracional.