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(O segundo a contar da direita, depois do Paulo Portas)

Sobre a secretária com décadas de cansaço, uma fila de pequenos frascos transparentes. Uns cheios de líquido sem cor, outros tingidos de um rosa débil e esgarçado. Os primeiros habitados por partículas a custo visíveis, farrapos brancos dissolvendo-se como migalhas inchadas na água. Nos frascos vermelhos vogam peixes adormecidos e pedaços de carne polpudos. Talvez ainda em crescimento desvairado. Coisas incapazes de aceitar a morte, prontas para acordar e contaminar o mundo.
Estão ali os despojos das pequenas cirurgias da manhã.
Aguardam pacientemente que os levem para análise. Mas só dentro de dias, só dentro de dias iremos saber o que está ao certo dentro do frasco com o nosso nome e número de utente: nevo melanocítico, carcinoma baso-celular, carcinoma espino-celular ou melanoma. Repito a ladainha, fórmula que ilumina os cantos mais escuros com o brilho da ciência. Nevo melanocítico, carcinoma baso-celular, carcinoma espino-celular, melanoma. Um-dó-li-tá.
A enfermeira recolhe a meio de um suspiro mais um frasco, decora-o com um autocolante escrevinhado e volta a concentrar-se nos seus assuntos. O velho que acaba de lhe entregar parte do seu corpo fica ali, imóvel, estúpido, besta antediluviana a aguardar que se confirmem os rumores da sua extinção. Agarra-se ao enorme penso que carrega na testa, aturdido pelo escoar da anestesia. Faz medo, de tão assustado e sem amparo.
É grande, o seu resto: quase um bicho, uma ostra com filamentos pendurados à laia de raízes de planta esfomeada. Nadando no seu oceano cada vez mais vermelho, mais opaco. Uma promessa de morte.
São agora dez os frascos. Em quantos lerão os técnicos sentenças fatais? Naquele com um seixo simétrico, quase bonito? Ou no meu, que procuro confundir com os outros? (Mas não consigo perder-lhe o rasto, fazer de conta que mão de artista da vermelhinha baralhou a fila de recipientes esterilizados enquanto me reconfortava na miséria do velho com o penso que não pára de inchar. Lá volta a cantilena: um-dó-li-tá-quem-está-livre-livre-está. Bom. Mais logo, voltarei a arriscar.)
Esperam por mim no corredor. Já podia ter ido embora. Mas ficarei até que alguém leve o meu frasco (ou até conseguir desligar os olhos da parada de anomalias acabadas de morrer). Imagino agora as maravilhas da anatomia patológica: o meu pedaço rebelde centrifugado, pasteurizado, esmiuçado por uma culinária invertida que tem como produto final um simples papel, a receita com a medida exacta de cada ingrediente.
O velho desiste de esperar por mais explicações e encaminha-se para a porta. Um estremecimento em que só eu reparo agita o frasco com a ostra encarniçada. Ela vira-se e encara o velho.
Juraria que ali vi ódio.

Parece que um bando de rapazes com défices capilares se andou a manifestar, em Lisboa, contra o assassinato de portugueses na África do Sul. Nada a opor. Até julgo que uma qualquer alma caridosa devia financiar-lhes o aluguer de um avião, para que pudessem desembarcar no Soweto e fazer a manif no sítio certo. Até iam poder explicar à malta local quem são, ao que vêm e que ideais os animam. Ia ser um sucesso.
O segredo de uma boa sesta, contava o avô octogenário, é a sua duração: tem de ser suficientemente longa para ser reparadora e suficientemente breve para impedir a indisposição. Por isso, lembrou-se um dia de tentar adormecer com uma pedra na mão e deixar-se acordar quando a mesma caísse ao chão. O que ele não sabia, nem poderia saber, é que demoraria dois anos a encontrar a pedra ideal. Inicialmente, acreditou que o peso da pedra era a única variável relevante: quanto mais pesada ela fosse, menor seria a duração da sesta; quanto mais leve, maior. Comprou então uma balança de pratos e um caderno quadriculado onde ia apontando os pesos das pedras que ia testando. Todos os dias, depois do almoço, sentava-se no cadeirão com a pedra na mão e fechava os olhos. Quando, alguns minutos depois, acordava com o ruído da pedra a bater no soalho, voltava a fechar os olhos e tentava decifrar no paladar da saliva os sinais do corpo: fadiga ou indisposição? Ao fim de alguns meses, e apesar de alguns inevitáveis erros, ele foi conseguindo estreitar cada vez mais os intervalos de peso da pedra desejada e chegou mesmo a conhecer uma ou outra vez o frenesim inconfundível da aproximação. Contudo, ao olhar para as tabelas e gráficos do seu caderno, era por de mais evidente que havia um factor desconhecido que interferia com o rigor dos cálculos e das medições. Chegou a pensar que tal se deveria a variações do seu próprio peso e procurou introduzir uma certa regularidade no horário e na quantidade de comida que ingeria nas refeições. Acrescentou então uma terceira coluna na tabela, ao lado da do peso das pedras e das respectivas considerações, com o peso do seu próprio corpo. No entanto, mesmo após ter conseguido estabilizar esse segundo factor, os cada vez mais reduzidos intervalos que ia definindo revelavam-se instáveis e, mais grave ainda, incongruentes. Num primeiro momento, chegou a especular sobre a questão da forma, mas rapidamente afastou essa hipótese pelo facto de o leque das probabilidades ser praticamente infinito e, por isso mesmo, inalcançável. Lembrou-se finalmente da mão. Todos os testes e cálculos que tinha efectuado tinham sido feitos com a pedra agarrada na mão direita e essa não tinha sido uma decisão pensada, mas apenas um fruto do acaso ou, quando muito, a tendência natural de um dextro. Quase febril com essa descoberta, desenhou um risco horizontal na folha do caderno e agradeceu aos deuses o facto de ter conservado e catalogado todas as pedras que tinha testado: 439. Seu propósito era inequívoco: refazer, com mão esquerda, pedra a pedra, sesta a sesta, todo o percurso da sua busca e comparar os resultados. Ao fim de algumas semanas, a disparidade era evidente. Os intervalos, outrora hesitantes e pouco precisos, possuíam agora um rigor belo e matemático. Numa tarde, chegou mesmo a determinar com exactidão, através de simples cálculos de proporcionalidade, a pedra que lhe proporcionaria finalmente o repouso imaculado. Contudo, resolveu não saltar etapas, talvez por superstição ou pelo facto de sentir um certo e inconfessável prazer em prolongar a espera. Quando finalmente chegou o dia em que ele iria testar a pedra que sabia ser a que procurava há quase dois anos, não deixou de sentir uma irreprimível tristeza. Agarrou na pedra e olhou longamente para ela. Era uma pedra absolutamente banal, feita do que lhe parecia ser granito, sem forma precisa e de cor irregular. Percebeu que o facto de saber o exacto peso da pedra ou mesmo o de um hipotético geólogo lhe determinar a sua complexa constituição não dissolveriam em nada o seu mistério. Antes de adormecer, calculou no caderno a razão exacta entre o seu peso e o da pedra, não por lhe interessar o resultado, mas apenas para se distrair do medo inexplicável que sentira de repente. Pousou o caderno, respirou fundo e agarrou a pedra com a mão esquerda. Fechou os olhos e, para sua grande surpresa, não lhe custou nada adormecer.
Concentrado que estava nos delírios do JPH que me envolviam, nem sequer reparei numa cuspidela em forma de texto que por ali já andava. Depois de aventar que os povos podem ter características que os distinguem, ele saiu-se com isto: “no contexto desta interessante discussão antropológica, pergunto-me: poderão os palestinianos ser um pouco estúpidos?”
Trata-se de um daqueles insultos que retratam melhor o seu autor do que os supostos alvos. Vomitar impropérios sobre gente que se comporta de forma que não entendemos só pode mesmo ser a marca de alguém muito pouco estúpido. Desafiou-me o JPH há umas horas: “tente raciocinar comigo, se conseguir”. Confesso: não consigo.
Mas façamos de conta que os palestinianos elegeram mesmo monstros sanguinários que só pensam em explodir autocarros. Os alemães também votaram em Hitler: serão “estúpidos” por isso? O simplismo e os preconceitos levam-nos a sítios bem feios.

Está a chegar o primeiro festival de Cinema digital da Europa: o Lisbon Village Festival. Saquem das maquinetas, preparem os gadgets, afinem os enquadramentos: as inscrições já abriram!

Caro Henrique Raposo,
A sua resposta esmagou-me, não que você tivesse argumentado, mas como me atulhou de citações, ainda hoje estou a sacudir frases de cima. Por gosto e para que “afine a pontaria”, como com tanta graça escreve, vou-lhe responder:
– Homem, pode estar de arma na mão, mas está virado ao contrário!
De qualquer forma não dei o tempo por mal empregue, ao reler os dois artigos que Slavoj Zizek escreve sobre Negri , que você cita mal (já lá vamos), deparei com uma passagem que lhe endereço; Thomas De Quincey no seu “Assassínio considerado como uma das belas artes”, dá o seguinte conselho: quantas pessoas começaram por uma simples morte, que no momento, pareceu-lhes não ter nada de repreensível, e acabaram por se comportar mal à mesa!
Meu caro Henrique Raposo, o problema é esse mesmo, você começa por escrever sobre autores que não estudou e vai acabar por trocar os talheres na refeição. E é sobretudo isso que, no seu caso, eu quero evitar.
Você cita Zizek, pretendendo demonstrar que o pensador esloveno considera que Negri não vai beber a Marx. Se tivesse tido a atenção de ler na integra os dois artigos, em vez de andar à procura de frases espúrias, teria descoberto que Zizek afirma que “voilà, exactement, ce que Michael Hardt et António Negri essaient de faire dans Empire, un essai qui touche à son but dans sa tentative d’ecrire le Manifeste communiste du vingt-et-unième siècle” (Zizek, Slavoj: “Hardt et Negri ont-ils Réécrit le Manifeste Communiste ? », em Que Veut L’Europe ?,Climats, Paris, 2005, pag 91), apesar do elogio, Zizek mais à frente vai criticar Negri e Hardt não por não terem sido fiéis a Marx, mas por não terem ido buscar Lenine. Para ele, Negri falhou depois de ter analisado o processo sócio-económico global não foi capaz de apontar as medidas radicais necessárias e que a esse respeito, “L’Empire reste un ouvrage prémarxiste.<Quoi qu’il en soit, peut-être la solution reside-t-elle dans la prise de conscience du fait qu’il n’est pás suffisant de revenir vers Marx, de renouveler l’analyse de Marx, mais qu’il est nécessaire de se tourner vers Lénine.» (Ob. Cit. Pag 94), o sublinhado é meu.
Deineka
Caro Henrique Raposo,
Como apenas leu em diagonal o que escrevi, vou-lhe relembrar as três correcções que fiz ao seu artigo na revista do “Diário de Notícias”, que eram para ser de começo de conversa, mas vão mesmo para o fim dela, para não torturar incautos leitores. Não vou perder muito tempo com a sua modesta afirmação de que o marxismo morreu. A afirmação coexiste desde do tempo de Marx e se ainda hoje há quem a discuta é porque estamos perante um moribundo muito saudável. Mas vamos por partes:
1. Não há entre os marxistas uma chancela oficial de quem é ou não é marxista. Ao contrário do que você está convencido, existem muitas correntes no marxismo e até existem várias leituras de Marx. Melhor dizendo, Marx escreveu coisas diferentes e às vezes contraditórias durante a sua vida. Para agudizar esta questão, dá-se até o caso de que as obras de Marx foram sendo conhecidas durante um intervalo de tempo muito grande. Parafraseando Gramsci, que você conhece da autobiografia da Filomena Mónica, cada geração teve de descobrir o seu próprio Marx. Veja bem, se os livros II e III do Capital só ficaram disponíveis no fim do século XIX, já os Manuscritos económico-filosóficos só viram a luz do dia no final dos anos 30 do século XX e os importantes textos que Marx escreveu entre os anos 1858-1863, incluindo o Grundrisse – sobre o qual Negri vai escrever um dos seus livros mais importantes: “Marx oltre Marx” – só são conhecidos depois de 1945!
Você cita as críticas, a Negri, de Samir Amin e de Imannuel Wallerstein, ambos de uma corrente do marxismo que investiga o “sistema mundial capitalista”, mas tem que ter em conta que ao contrário da Santa Madre Igreja, não há um Papa que possa excomungar os crentes. O próprio Wallerstein está ciente da multiplicidade das leituras marxistas quando afirma que “mais do que o fim do marxismo, assistimos ao florescimento disperso e impotente de mil marxismos” (Bidet, Jaques; Eustache, Kovélakis: Dictionnaire Marx Contemporain , PUF, Paris, 2001, pag 59).
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Estimado Henrique Raposo,
Acho-lhe imensa graça quando garante peremptório que aqueles que, como Negri, incorporam contribuições de Deleuze ou de Foucault não são marxistas!
Meu caro Raposo, enquanto as suas contribuições para o “Acidental” não são cristalizadas, como diamantes, no corpo teórico dos estudos sobre o marxismo, existem algumas obras de referência para os investigadores. Há entre milhares de obras de estudiosos do marxismo, quatro livrinhos fundamentais: Dictionary of Marxist Thought de Tom Bottomore, Dictionnaire critique du marxism de G. Labica e G. Bensussan, Historisch-Kritisches Worterbuch des Marxismus,dirigido por W. F Haug e sobre desenvolvimentos mais recentes temos alguns livros, entre os quais, Dictionnaire Marx Contemporain, dirigidos por Jacques Bidet e Eustache Kouvélakis. Estranhamente, talvez porque ainda não souberam do seu veto, grande parte destas obras abordam como corrente do marxismo o “operarismo” italiano (o tal do Negri), e, vergonha das vergonhas, o último dicionário dedica um capítulo a Deleuze e outro a Foucault. Vão ter que enviar, como nos tempos da saudosa enciclopédia Soviética, uma lamina para os leitores arrancarem as páginas, para a obra ficar de acordo com o “cânone Raposo”.
Mas vamos a matéria de facto, esta diversidade e mudança deve-se entre muitas causas, a uma pequena que você vai reconhecer na frase de Sorel: “é preciso ter em conta, para apreciar correctamente a mudança acontecida nas ideias, a mudança que o capitalismo teve ele mesmo.”(Sorel, Georges: La décomposition du marxisme, PUF, Paris, 1982, pag 237).
Esta constatação das mudanças no capitalismo tardio e das novas formas como o actua e da especificidade do problema do poder, encaixa na segunda correcção que eu fiz ao seu texto no “Diário de Notícias”, como se recorda eu afirmei-lhe que a sua ideia que “Negri reduz o mundo a duas estruturas anónimas. Não existem homens ou ideias”, era incorrecta. Porque Negri e o “operarismo” italiano vão contestar as correntes marxistas mais sujeitas ao determinismo económico, apoiando-se numa longa tradição marxista italiana, começada em Gramsci, afirmando um certo primado da política e das questões do poder e garantindo que mesmo os desenvolvimentos tecnológicos eram frutos dos homens e dos seus conflitos. Em Negri, o poder constituinte da multidão está em potência, é uma possibilidade, mas não uma fatalidade. Ele vai buscar a Deleuze e a Guattari a sua reinterpretação do materialismo histórico e a Foucault a análise das formas do poder, nomeadamente, a transição de uma sociedade da disciplina (Escola, Fábrica, Exército e Prisão), para uma sociedade do controlo, onde as formas do poder se tornam biopoder e são incorporadas pelos próprios controlados. E em passada rápida chegamos à quarta crítica que eu lhe fiz, entre muitas que lhe podia ter feito, a ideia de que um homem não “alienado” não é originária de Marcuse, como você escreveu, no seu texto, mas encontra-se em páginas do próprio Marx. Mas isso fica para o meu último post sobre os seus talheres.
Inês Pedrosa tratou de agradecer ao seu candidato, de forma emocionada e grandiloquente, “por ter, em menos de três meses, despertado um milhão, cento e vinte e quatro mil e seiscentos e sessenta e dois portugueses para a nobreza da política e a força da cidadania.” Numa versão alternativa, também poderia agradecer ao poeta por ter, ao fim de onze mil, cento e noventa e sete dias, ter despertado da sua funda modorra de deputado que nunca se distinguiu por ideias, propostas ou acções. Como um Rip van Winkle dos tempos modernos, ele acordou num mundo que não entendia. Mas acabou tudo em bem; agora, pode voltar para a sua AR, escolher uma boa cadeira e voltar a dormir.
Agora, JPH embarcou numa longa viagem de circum-navegação em redor daquilo que primeiro teve a dizer sobre o meu post. Já não me acusa de ver no Hamas uma IPPS. Agora, prefere passear por outras paragens, afirmando que a componente social do Hamas é desprezível por incluir apoio às famílias dos bombistas suicidas; que Israel se está nas tintas para essa acção social; que a facção bélica do Hamas é sinistra e que foi esta que venceu as eleições. (Até a foto que escolhi para ilustrar o post, que me parecia explicitar o carácter ameaçador do Hamas, depois de sujeita a um pouco de psicanálise caseira, é “reveladora sobre quem a escolheu” e “chic”.)
Nada disto me preocupa, conclui ele num fabuloso exercício mediúnico. Apesar de eu não ter escamoteado o lado negro do movimento nem o facto de este não reconhecer o direito à existência de Israel. Apesar de eu me ter limitado a reafirmar a complexidade de um fenómeno como o Hamas: não disse que a sua política social era boa ou má, não profetizei uma reacção definitiva de Israel a esta vitória.
Mas tudo bem. Se JPH prefere responder a afirmações que eu não fiz, estará no seu direito.

Há algumas coisas a que não consigo resistir, embora por vezes até tente. Pequenos consumos que me deixam a remoer uma culpa vaga e irritante. Depois de matutar um pouco no assunto, escolhi a meia dúzia mais revelante e mais frequente:
Licor de amêndoa amarga
Má-língua
Episódios antigos do “Star Trek”
Historietas do Tio Patinhas
A “Bancada Central” da TSF
Bolachas Oreo
E vocês? O que fazem às escondidas, mesmo sabendo que milhões de outras pessoas o fazem também? Das vossas rotinas diárias, o que é que vos causa uma vergonha injustificada mas persistente?

Há um fenómeno que me intriga na internet e nos blogues: as transformações psicológicas que os seus autores sofrem. Lendo amigos e desconhecidos, verifiquei que se dá uma transformação similar aos condutores de carro quando protegidos pela quentinha armadura do carro ganham palavrão fácil. Tenho estimáveis amigos que rompem o casulo habitual das pacíficas criaturas e aparecem com ademanes de Rambo. Ligados à rede, não há violência verbal ou possível violência física que não sejam capazes.
Quando leio, nos blogues, textos que prometem tabefes e bengaladas penso sempre num velho professor de Judo que tive, o mestre Vasco. Certo dia, estávamos à espera dele, já tinham passado 20 minutos da hora do início do treino. O mestre chegou afogueado e bastante alterado como se tivesse corrido a maratona. Perguntamos preocupados: mestre o que sucedeu! Contou-nos que tinha discutido com um homem numa paragem de autocarro, palavra puxa palavra e o sujeito tentou-lhe dar um murro. E nós ainda mais preocupados: mestre o que é que fez? Projectei-o sobre o ombro e atirei-o ao chão, disse o experimentado judoca. E nós todos em coro: e a seguir? A seguir, respondeu o mestre serenamente, dei-lhe um pontapé e fugi não fosse o gajo levantar-se.

Não adianta mesmo tentar dizer a algumas almas que realidades situadas a milhares de quilómetros, factos que envolvem décadas de história e milhares de pessoas talvez não sejam fáceis de descrever com meia dúzia de palavras organizadas em slogans de efeito garantido e utilidade duvidosa.
Aparecerá sempre alguém de dedo acusador em riste reclamando o rápido retorno à segurança dos lugares-comuns, por norma com um reportório de graçolas à laia de acompanhamento. Desta vez, dizem-me que eu pareço acreditar que o Hamas é “uma IPSS no poder”, um bando de “filantropos”, portanto. Outra variante, menos chocarreira, postula que eu tratei de “perdoar”, através do “tom”, “uma organização terrorista por além de pôr bombas e matar muitas pessoas também ter creches e hospitais”. Ora esta intensão apenas vive em entrelinhas imaginárias: nunca me caberia “perdoar” coisa alguma. Tal como não me passaria pela cabeça culpar todo o Israel pelas mortes de civis que tem causado, em números desproporcionados, nos últimos anos.
Pois é. Não adiantou, como já se adivinhava, escrever que o Hamas “continua a manter uma ala de activos terroristas”; nem tentar explicar que não estamos em presença de uma estrutura monolítica mas sim de uma organização que por vezes hesita “entre dois pólos: a brutalidade pura e dura e a procura de soluções negociadas”.
“Ignorar que o Hamas é muito mais do que um grupo terrorista é simplesmente fechar os olhos à complexidade dos factos”, disse eu. Verdade, confirma quem prefere mesmo os chavões, as simplificações acéfalas. É que ler livros dá muito trabalho. E até assimilar umas parcas linhas de informação sobre a génese do Hamas, partindo do movimento de apoio aos refugiados Da’wah, é esforço excessivo para tão simples meninges. E, no entanto, bem explicadinha, a coisa até parece fácil de entender: o Hamas é um grupo terrorista. E é muito mais do que isso. Como iremos confirmar muito em breve.
Segundo o que o “Público” escreve e a TSF confirma, o deputado Duarte Lima encarregou-se ontem de proferir um animado discurso em que clamava pela restrição das escutas telefónicas a “crimes de terrorismo organizado, de tráfico de droga e crimes de sangue”. Não pensem que a descontextualização altera a intenção do impoluto político: ele confirmou depois que quer ver as escutas “exclusivamente” limitadas a estes três tipos de crime. De fora ficariam, tão somente, os crimes de corrupção, de peculato, de abuso de poder… precisamente as malfeitorias de que “políticos” como Fátima Felgueiras ou Isaltino têm sido acusados. Até aqui, nada de anormal. O homem tem contas a ajustar, relativas a outros tempos, ainda na memória de muitos.
Incrível mesmo é que os bonecos de votar do PS, do PSD, do CDS e do BE se tenham erguido em unânime aplauso a tal ideia. Uma das criaturas do PS chegou a gabar a “sapiência” e a “coragem” de Duarte Lima! Fernando Rosas manifestou o seu deslumbre com o tradicional “muito bem!” Até Ana Drago tratou de parabenizar o autor de tão descarada sugestão. Este, aproveitando a embalagem, teve ainda tempo para alvitrar que as magistraturas devem vir a ser colocadas em boas, desinteressadas e capazes mãos: as dos políticos, claro está.
No mesmo “Público”, pode ler-se um relato sobre o estado actual do famoso concurso dos helicópteros para o SNBPC: o Estado arrisca-se a ter de pagar o serviço ao vencedor do concurso e também a uma empresa que dele foi excluída em circunstâncias perfeitamente incríveis. E, para deixar este ramalhete de histórias deploráveis por aqui, soubémos ontem que a comissão de inquérito sobre o caso Eurominas foi fechada à pressa e à má fila pelo PS.
Estamos bem entregues, sim senhora.
São narrativas curtas, argutas, maliciosas, estas Histórias e Morais, de JOSÉ ANTÓNIO FRANCO (Pé de Página Editores). Metem bichos mais ou menos domésticos, animais da selva, mouras encantadas, assassinos e ladrões. Acontece as personagens recusarem-se a entrar em cena, ou saírem dela deixando em grande atrapalhação o contador.
Um muito sumário aparelho gráfico dá, logo de entrada, um recado de descontracção e de jogo. E de vulnerabilidade. Veja-se esta versão muito apócrifa do «Capuchinho Vermelho».
o bosque e o jornalista
uma rapariga de saia castanha curta ia um dia num passeio pela floresta quando de repente um lobo alto e espadaúdo lhe saltou ao caminho uivando que nem um louco esfaimado assustada a rapariga escondeu-se atrás de uma árvore mas o lobo saltou para junto dela e perguntou-lhe quantos anos tens dezoito onde vais ao centro comercial comprar uma saia quem te deu o dinheiro ninguém é meu tu trabalhas não então onde o arranjaste foi a tia isaura que mo deu pelo natal então alguém to tinha dado para que queres tu a saia se já tens uma tão linda esta está muito velha e não tens mais nenhuma tenho muitas mais mas também estão muito usadas
estiveram assim a conversar durante algum tempo e acabaram por seguir cada um o seu caminho depois de uma cordial despedida
entretanto um homem que fazia reportagens e que andava por ali perto quando viu de longe os dois a conversar telefonou imediatamente para a equipa de segurança da floresta que apareceu momentos depois num veloz jerico treinado para perseguições
no dia seguinte a notícia no jornal era assim adolescente de saia castanha impedida de visitar a avó por lobo esfaimado e de ombros largos mais à frente dizia ainda não fosse a pronta intervenção acidental de um repórter do nosso jornal e a imediata reacção das forças de segurança e o caso poderia ter tido um desfecho bem trágico
moral no bosque ande sempre com a avó