Iatrofobia (2)

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Sobre a secretária com décadas de cansaço, uma fila de pequenos frascos transparentes. Uns cheios de líquido sem cor, outros tingidos de um rosa débil e esgarçado. Os primeiros habitados por partículas a custo visíveis, farrapos brancos dissolvendo-se como migalhas inchadas na água. Nos frascos vermelhos vogam peixes adormecidos e pedaços de carne polpudos. Talvez ainda em crescimento desvairado. Coisas incapazes de aceitar a morte, prontas para acordar e contaminar o mundo.
Estão ali os despojos das pequenas cirurgias da manhã.
Aguardam pacientemente que os levem para análise. Mas só dentro de dias, só dentro de dias iremos saber o que está ao certo dentro do frasco com o nosso nome e número de utente: nevo melanocítico, carcinoma baso-celular, carcinoma espino-celular ou melanoma. Repito a ladainha, fórmula que ilumina os cantos mais escuros com o brilho da ciência. Nevo melanocítico, carcinoma baso-celular, carcinoma espino-celular, melanoma. Um-dó-li-tá.
A enfermeira recolhe a meio de um suspiro mais um frasco, decora-o com um autocolante escrevinhado e volta a concentrar-se nos seus assuntos. O velho que acaba de lhe entregar parte do seu corpo fica ali, imóvel, estúpido, besta antediluviana a aguardar que se confirmem os rumores da sua extinção. Agarra-se ao enorme penso que carrega na testa, aturdido pelo escoar da anestesia. Faz medo, de tão assustado e sem amparo.
É grande, o seu resto: quase um bicho, uma ostra com filamentos pendurados à laia de raízes de planta esfomeada. Nadando no seu oceano cada vez mais vermelho, mais opaco. Uma promessa de morte.
São agora dez os frascos. Em quantos lerão os técnicos sentenças fatais? Naquele com um seixo simétrico, quase bonito? Ou no meu, que procuro confundir com os outros? (Mas não consigo perder-lhe o rasto, fazer de conta que mão de artista da vermelhinha baralhou a fila de recipientes esterilizados enquanto me reconfortava na miséria do velho com o penso que não pára de inchar. Lá volta a cantilena: um-dó-li-tá-quem-está-livre-livre-está. Bom. Mais logo, voltarei a arriscar.)
Esperam por mim no corredor. Já podia ter ido embora. Mas ficarei até que alguém leve o meu frasco (ou até conseguir desligar os olhos da parada de anomalias acabadas de morrer). Imagino agora as maravilhas da anatomia patológica: o meu pedaço rebelde centrifugado, pasteurizado, esmiuçado por uma culinária invertida que tem como produto final um simples papel, a receita com a medida exacta de cada ingrediente.
O velho desiste de esperar por mais explicações e encaminha-se para a porta. Um estremecimento em que só eu reparo agita o frasco com a ostra encarniçada. Ela vira-se e encara o velho.
Juraria que ali vi ódio.

10 thoughts on “Iatrofobia (2)”

  1. belo texto. espero que seja parcialmente ficcionado, ou que o teu frasco seja apenas o que está ali em cima, uma partida apanhada na praia.

  2. Luís,
    Posso fazer um pedido? (Já agora extensível ao Daniel Oliveira)
    Um post sobre a encíclica “Deus é Amor” do Bento XVI.
    Óbrigado

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