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Gente fina é outra coisa

Nunca foram mulatos ou pretos quando os cabeças-rapadas andaram à solta e mataram no Bairro Alto. Nunca foram imigrantes turcos quando residências foram incendiadas na Alemanha. Nunca foram iraquianos inocentes atingidos por fogo colateral. Nunca foram subsarianos mortos numa jangada no mediterrâneo.

E certamente nunca foram um judeu alemão quando esta frase foi cunhada em apoio de Daniel Cohn-Bendit, em 1968.

Apenas agora os ideólogos d’O Independente querem ser dinamarqueses.

Como os compreendo. Ser dinamarquês dá uma certa classe. Pessoalmente, invejo-lhes os subsídios de desemprego, a assistência médica, a segurança social e, se bem me lembro, as universidades de graça ou quase. Também não me importava de ser dinamarquês.

O azar é que os correligionários locais d’O Independente estão pouquíssimo interessados em naturalizar estrangeiros.

[Rui Tavares, publicado também em Caravaggio Montecarlo]

Venha a próxima

Nos blogues o verbo é fácil: a malta quer escrever e ser lido, ser criticado e contra-atacar o tempo todo. Parece que há tempo a mais, ou trabalho a menos, e a malta não se cansa. O pior que pode haver nisto são consensos, reais ou aparentes: a malta tem de ser do contra, os blogues incarnam a natureza adversarial do combate político, são uma espécie de RGA’s por outros meios. Com alguma distância, quem tiver o verbo mais lento (é o meu caso, não por nenhum tipo de sagesse, mas simplesmente porque escrevo devagar, já a professora da escola primária dizia) vai reparando que, de forma discreta porém segura, as posições vão evoluindo, e sempre num sentido só: o do conflito, que às tantas parece que se justifica por si próprio. Tome-se o caso dos cartoons do Maomé: quem a priori se imaginaria ateu e sem pachorra para susceptibilidades, muçulmanas ou outras, acaba sem dar por isso a defender o indefensável e a negar as mais evidentes evidências; quem normalmente se preocupa com os sentimentos religiosos das massas passa a fazer tábua-rasa do senso comum, torna-se um zelota da liberdade de expressão dos tablóides e descobre nisto tudo uma conspiração do tamanho da terra (ainda vão dizer que foram os serviços secretos sírios que, entre duas bombas em Beirute, fizeram os malfadados desenhos do profeta). Tenho imensa vontade de dizer a toda a gente que tem razão, uns porque sim e os outros porque não. Vou esperando que o pó assente e que alguém se digne a comentar a ninharia que se passou esta semana : a OPA da Sonae sobre a PT, que me parece menos susceptível de produzir os lugares comuns que o episódio dos cartoons não pára de produzir.

A quem serve a escalada

«Seis das doze caricaturas do profeta Maomé foram publicadas no Egipto, em Outubro, sem levantar a menor polémica, afirmou ontem o embaixador dinamarquês no Cairo. A reacção surgiu dois meses depois, quando os líderes muçulmanos reunidos num encontro da Organização da Conferência Islâmica (OCI) coordenaram estratégias e “cristalizaram” a crise, revelou o jornal The New York Times. Só então a revolta começou a sair à rua, com o apoio de vários governos. (…) Para Sari Hanafi, da Universidade Americana de Beirute, os regimes árabes que estavam ressentidos com a pressão ocidental de democratização viram aqui uma oportunidade. (…) Por outro lado, as manifestações também permitiram a certos governos afastar o crescente desafio que enfrentam por parte da oposição islamista que se apresenta como defensora do islão, acrescenta o NYT. Foi o que aconteceu com o Egipto, onde os islamistas têm vindo a aumentar a sua influência, como se viu nas eleições; foi também o que se passou na Arábia Saudita. A 26 de Dezembro, o reino quis ouvir o embaixador da Dinamarca, depois decretou o boicote. “Os sauditas fizeram isto porque quiseram marcar pontos contra os fundamentalistas”, disse Said.»
Público, 10 de Fevereiro

«Estamos num confronto cultural e civlizacional. Podemos rezar todos os dias para que não exista. Estamos em guerra. Os americanos já o perceberam há muito tempo, os Europeus ainda não.»
José Pacheco Pereira, Quadratura do Círculo, SIC

Abençoada blasfémia

O Ocidente é uma religião. É a religião do Direito. Tem templos, sacerdotes, teologias, livros sagrados. Responde a preces. Os seus concílios são abertos à participação de todos os cidadãos maiores de idade. Está em perpétua revelação. Tem raízes na filosofia grega, na tradição judaico-cristã, na civilização romana. Sabe-se friável, e nessa fraqueza vai sempre renovando a sua força. Corresponde ao império do Espírito da Lei, a Idade da Justiça.

Em boa hora, os simpáticos e pacholas dinamarqueses recuperaram a alma viking e deram um imprevisto abanão na modorra ideológica. Agora que aconteceu, até custa a crer que não tenha acontecido mais cedo. É que o ataque aos bonecos teve o condão de desenhar um novo mapa conceptual. De um lado, vemos uma vontade de poder obscura, manipuladora, que trata os seus como carne para canhão na busca de vantagens políticas, ganhos financeiros ou fruição de delírios sociopatas. Do outro, 2.500 anos de gesta heróica na procura da liberdade. Este é o tempo de assumirmos a nossa diferença, reclamarmos a memória de todos aqueles que deram as suas vidas por um ideal humanista, chamem-se eles Sócrates, Cícero, Cusa, Galileu, Thoreau, Marx ou Teresa.

A raiz etimológica de civilização remete para comunidade, referida a um complexo urbanístico complexo com estatuto de cidade. Implica uma ordem que rege a convivência, regula as transacções sociais, confere direitos e deveres, organiza o poder, autonomiza a política. Neste sentido, os conflitos com os terroristas, psicopatas e alienados que se reclamam defensores do Islão não configuram um choque de civilizações; pois estes infelizes não estão a desenvolver civilização alguma, apenas a ferir a deles e a nossa. Porém, o Islão tem uma questão para resolver: a secularização da sua política e respectivo edifício jurídico. Um Islão político é incompatível com o Ocidente, como se vê pela retórica e práticas dos fundamentalistas. Um Islão político não reconhece fronteiras nem o valor absoluto da vida humana, não admite laicismos nem direitos humanos. Mas um Islão cuja política e lei civil sejam seculares será no mesmo passo um humanismo. Foi precisamente isso que conseguimos fazer do cristianismo, e muito nos custou.

Aqueles que neste momento aproveitam para, mais uma vez, verter bílis contra o Ocidente têm a razão dos trapaças. Queixam-se de a obra não estar acabada, o terreno sujo e continuarem a morrer operários na construção. Enfim, é uma desculpa como outra qualquer para não estarem a trabalhar.

Sufi Ciente

Eis uma muito conhecida parábola de Jalal al-Din Rumi – místico e poeta sufi nascido no séc. XIII, no actual Afeganistão – que se grava facilmente no coração e à qual não nos cansamos de voltar, aqui transposta em versão livre:

Um homem vai visitar o seu melhor amigo. Bate à porta e ouve “Quem és?” Responde “Sou eu.” O amigo diz-lhe “Vai-te embora, não te conheço.” Magoado, o homem vai embora. Passado um ano, volta lá. “Quem és?” Responde “Sou tu.” O amigo abre a porta. E diz-lhe “Bem-vindo. Esta casa é tua.”

Enquanto os cães ladram, a caravana da história faz caminho. Para quem gosta de números, apostaria os meus rentes em como há centenas de milhões de muçulmanos cuja ambição é viverem em paz, conforto e harmonia com o resto do mundo. Quantas centenas de milhões? Vou arriscar uma quantidade: entre 10 a 12.

São pessoas condicionadas pelos poderes políticos, religiosos e culturais. Pessoas cuja voz não se faz ouvir, que talvez nem a si próprias se oiçam. Mas são aquelas que nós deveríamos tentar conhecer, apoiar, defender. Estão em todo o lado, aqui em Portugal. Costumam ser chamadas de “moderados”, o que não lhes faz justiça. Não pode haver moderação no combate pela dignidade. E dependemos delas para estancar a sangria, reduzir a loucura.

Começar por nos aproximarmos das comunidades islâmicas, não sendo remédio santo, já seria suficiente.

A alternativa Shakespeare

Eu até compreendo a raiva dos muçulmanos diante dos 12 cartoons injuriosos.
Mas näo compreendo, nem tolero, a sua resposta.
Bandeiras queimadas? Ataques a embaixadas? Embargos e ameaças de morte? Ódio generalizado ao ocidente, sem distinçöes? Eis a mais estúpida e apocalíptica das reacçöes, a meio caminho entre a loucura e a barbárie.
Se eu fosse um muçulmano indignado, deixava as pedras no chäo e citava Shakespeare.
Aquilo do Hamlet, sabem, sobre haver “algo de podre no reino da Dinamarca”?
Para além de ser mais elegante, era também mais verdadeiro. É que até pode haver algumas coisas “podres” lá para os lados de Copenhaga (os malfadados cartoons, por exemplo) mas o resto do país e os seus habitantes näo merecem levar por tabela.

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