Goza com a tua língua
Lisboa é grande. Mas duvido que haja, nela, mais do que um Helder Guégués. Pois bem, esse mesmo, que talvez você conheça (Lisboa é grande, mas os círculos são pequenos), tem um blogue em que, com paciente regularidade, comenta questões (sobretudo «erros» e «falhas») do nosso idioma. Chama-se Letratura e está aqui. É um prazer, um gozo, uma lição.
Pilhei o título do post de um cartaz galego, erotizante de linguístico. Pilhei a assombrosa foto no blogue de Helder Guégués. «Tudo vos será perdoado».
Há rebuliço na cave
Na caixa de comentários do post PRETO NO BRANCO, há discussão da grossa entre Nuno Ramos de Almeida e o autor do mesmo, Valupi, sobre a actuação do Bloco de Esquerda.
Está o Parlamento em férias, a agora isto!
Como se tal não bastasse, no post LIMPAR A FULIGEM, andam em grande folia Jorge Carvalheira e a nossa querida Dona Ermelinda, «senhora» que aqui vem sobressaltar-nos em outros avatares, masculinos esses.
Quem disse que este blogue era manso, pá?
BLOGOMILHO
Galiza, Festival de Ortigueira, 2005 (foto Vieiros)
Na Galiza, a blogosfera (e quem cunhou o termo? José Mário Silva? Paulo Querido? quem, quem?) chama-se «bloguesfera». Mas também, e mais garridamente, «blogomillo».
O blogomilho galego (há-de ter-se aqui uma ideia dele) acaba de ver-se reconhecido com um prémio nacional na concreta pessoa de MARTIN PAWLEY, autor de Días Estranhos.
Já aqui no Aspirina se noticiou um encontro, muito proximamente, de blogueiros galegos e portugueses. Agora citem-se palavras de Pawley, entrevistado no Portal VIEIROS (Caminhos).
Como valora a evolución do blogomillo neste tempo?
«É espectacular. Se alguén nos conta hai tres anos, cando eramos vinte sendo xenerosos os que tiñamos blogs en galego, que hoxe a cifra andaría perto de dúas mil, non o creríamos. O cambio máis importante é que agora non lle tes que explicar aos amigos que é un blog antes de dicirlle que ti tes [tu tens] un.»
E sobre o comportamento blogueiro:
«A xente ás veces confía nunhas estrañas regras de “cordialidade na rede” que non comparto según as cales non hai que afastarse xamais dun comportamento case monxil [monástico] para non ofender a ninguén. Eu levo discutido no blog, e moitísimo, e sobre materias ás veces delicadas, con persoas que hoxe teño por amigos. En Internet, como na vida, dúas persoas poden levarse a matar un día, e ao seguinte son amigos da alma.»
Quarta-feira de cinzas
Acabou o carnaval em S. Bento. Segue-se a quaresma cavaquista. A maior vergonha, no episódio da falta de quórum na Assembleia da República, ainda não está à vista. Vamos ter de esperar uns dias. Virá dos chefes dos partidos centrais, Sócrates e Marques Mendes. O que eles não serão capazes de assumir fechará um ciclo. Será o apogeu da decadência partidária, a fulguração suprema da vexante cultura política portuguesa.
119 deputados, por razões diversas, tinham coisas mais importantes para fazer do que estar a votar propostas do Governo relativas a espaços marítimos e a indemnizações a vítimas da criminalidade, entre outras trivialidades. Podemos até supor que a grande maioria dos faltosos estaria tão concentrada nos espaços marítimos que se antecipou à votação e partiu para o terreno. Os políticos preferem estar no terreno, é sabido, especialmente quando ele fica situado em frente aos tais espaços marítimos. Mas a viandante decisão destes impacientes deputados também conseguiu, num golpe de génio, abarcar a temática das indemnizações às vítimas da criminalidade. É que estamos perante um caso em que as vítimas da criminalidade parlamentar atingem dez milhões de indivíduos, o que só acrescenta relevância à proposta que ficou por votar.
A Assembleia esconde um laboratório para a investigação da esquizofrenia. O seu Regulamento impõe ao deputado a participação nas votações; já de si, este um dever patológico quando aplicado a pessoas que foram eleitas, e são pagas, para isso mesmo. Porém, o Estatuto dos Deputados considera que toda e qualquer razão é válida para faltar às votações. Nuno Melo, líder parlamentar do CDS-PP, deu-nos um exemplo paradigmático: a propósito de dois dos seus cinco deputados desaparecidos em combate, disse que se ausentaram para actividades que ele, Nuno Melo, considerou importantes. E assim arrumou a questão com um argumento que alia a beleza da simplicidade com o delírio de grandeza.
A dimensão veramente fascinante na ocorrência é do foro manual. Mãos esquerdas e direitas assinaram folhas de presença. Concluído o exercício caligráfico, enfiaram-se nos bolsos ou pegaram em sacos com toalhas de praia, e ala que se faz tarde. Os nomes inscritos foram deixados ao abandono, privados da dignidade que só as cabeças lhes poderiam garantir. A questão que agora temos de resolver é a seguinte: que fazer com esses nomes que levaram com os pés? Como já não representam os seus outrora legítimos proprietários, entretanto rebaptizados na igreja das Sinecuras e Prebendas, tornaram-se nomes inúteis. Devem ser apagados.
DESENHO*7
DESENHO* 6
Alentejanidades
O Valupi lembra-me a minha ascendência berbere. O Filipe Moura lembra-me que sou alentejano. A minha irmã, Maria Antónia Venâncio, que é só lisboeta, lembra-me – com esta sua foto – que, se mais razões faltassem para o orgulho meridional, as flores do campo já serviam.
Ao longe, espreita a serra de Alcaria Ruiva. Mais 10 quilómetros, e estamos em Mértola. O centro do mundo, claro.
Limpar a fuligem
Também eu, a la Fernando e sem lhe pedir autorização, destaco parte de um comentário de Jorge Carvalheira adentro de um post que já era dele. É um texto delicioso, e bombástico… De caminho, recupero a tradição dos itálicos, de tão boa memória no BdE.
Anónimo, ou Dona E., ou lá o que é:
Assim de chofre V. assustou-me, nessa silhueta altiva de embuçado. A escura capa, o chapéu sobre os olhos, a protestar, ao Fernando, contra um vilão qualquer… Quase o confundi, oculto e misterioso, com umas figuras que antigamente havia, elas também secretas, também de chapéu e capa cintada… Mas depois vi que não. O seu estilo, bem lido, é mais do homem da Sandeman. Ou assim.
Eu só tinha ido ali visitar o blogue, “de viseira aberta” e coração nas mãos, não vi que o quarteirão era seu, desculpe lá!
Mas vamos ver se é possível meter algum rossio nesta acanhada betesga, um par de coisas há-de lá caber.
A primeira é o que V. chama, por erro crasso, choramingueira. Saiba que é raiva. É ira. É fúria, algumas vezes. É frustração e desespero, muitas. V. pode intuir as razões, mas eu vou alinhavar-lhas.
Eu não chamei a terreiro a educação daqueles largos tempos da nossa longa vida colectiva, em que três quartos do país trabalhava de sol a sol sem direito a uns sapatos, a uma camisa, a uma escola (lembra-se deles?), para o quarto restante viver à tripa forra. Para esses tempos nefastos há escusas avulsas, a pedido, foi ele a ditadura, a atribulada república, foram os desleixos da monarquia antiga, a economia fraca, a miséria geral…
Eu falei apenas dos últimos trinta anos, em que tivemos todos liberdade como nunca, de escolher, e de optar, e de decidir da nossa vida. Nunca houve na história de Portugal tanta escola, nem tantos alunos, nem tantos professores, nem tantos livros, nem tanto dinheiro, nem tanta iliteracia, nem tanto analfabeto funcional, nem tão crassa ignorância, nem tamanha ausência de educação. Então qual é agora a desculpa, perguntei eu, numa lógica honesta. E sugeri (sustento) que, não sendo nós piores que outros (salvo o que de nós disse um certo romano, há muito tempo), o busílis poderá estar, entre outros, na história que foi a nossa, e na vida que andámos 500 anos a fazer. Sugeri que não chegaremos à modernidade, nem apresentaremos cara lavada, antes de nos limparmos da fuligem.
É isto uma heresia, bem o sei, para consciências delicadas. Mas o mundo, que não fui eu que fiz, anda aí cheio delas. Senão vá V. perguntá-lo à história, à nossa em particular. Vá com cuidado, não bata a qualquer porta! Não gaste muito tempo com histórias de encartados, os das grandes roupagens oficiais, pelos riscos de conto do vigário. Essas histórias têm por trás a carreira, sabe como é, uma cátedra, a pública consideraçãozinha, o mais certo é adoçarem-lhe esta pílula mais amarga, ou aquela verdade menos cómoda, segundo a antiga ciência do sobreviver. Por isso experimente V. ir à literatura, excelente lugar para refugiados. Puseram-lhe sempre famas de falsa e de fingida, na bem fundada esperança de que o povo não venha a lê-la. Troque-lhes V. as voltas. Esqueça as alamedas épicas e vá por certos becos do Camões, anda por lá muita verdade ostracizada. Bata à porta do Sá de Miranda, que fazia sonetos como quem calceta ruas, ele explica por que se foi ao Minho e mandou os da corte bugiar. Em podendo, passe no Diogo do Couto, não perca por nada o Bernardo Gomes de Brito, espraie-se no Fernão Mendes Pinto, divirta-se com as entrelinhas do Gil Vicente, e vá perguntar ao Buchanan e ao Clenardo de Lovaina, eles lhe dirão o que a Índia, em três tempos, fez de nós.
E se ainda me segue, Dona E., procure outros que eu aqui não citei, que eu nem conheço, mas que andam por aí à sua espera, eles sabem muito bem que só é cego aquele que não quer ver. Havendo empenho seu, eles lhe mostrarão de que maneiras, para sossego do trono e do altar, os poderosos trucidaram sempre os mais sabedores de nós todos, os mais insubmissos e os mais lúcidos, os Damiões de Góis e os Teives humanistas, os Vieiras e os Cavaleiros de Oliveira, os Verneys e os Ribeiros Sanches, mesmo os duros Pombais, quando existiram, os estrangeirados iluministas, os liberais malhados, os republicanos maçons, os socialistas utópicos, os Jesus Caraça e os Azevedos Gomes, os Rodrigues Lapa e os Pulidos Valente, as Marias Lamas e os Jorges de Sena e os Luíses Gomes, que mais sei eu, nem um célebre bispo do Porto escapou.
E se ainda lhe sobrar algum fôlego, perca-o no Saramago dos anos 80, esfalfe-o no Lobo Antunes que já houve, antes de haver um génio. Mas não perca algum Quental, escabiche um bocado no Eça, e no fim vá ler a história alegre do Pinheiro Chagas, que era aquilo que o seu povo merecia. Vá, e indigne-se!
Não sei o que lhe diga sobre as criancinhas da Europa, que há cem anos andavam a trabalhar nas minas. Deus me livre de pensar que na Europa nunca houve exploração do trabalho! O que apenas poderá preocupar-me são aquelas criancinhas que na minha terra ainda hoje o fazem.
Por fim, onde viu apelos à resignação, V. tresleu. Mas não desanime, homem! Vê-se por aí muito pior! E não se ponha assim por baixo das rachas do meu texto, maré de levar para casa o embaraço duma pinga de lirismo, a comprometer-lhe o fato.
Jorge Carvalheira
O Abrupto, a ameaça e a ficção
Às vezes, a gente lê o que quer ler. Sucede sempre aos outros, claro. Mas uma vez tinha que ser a minha. Conduzido por uma informação com certo picante, impedi-me de fazer o óbvio: ir verificar se de facto JPP tinha refeito o texto. Não tinha. Supu-lo cedendo a uma pressão. A ameaça era real, está documentada. Só não sei se foi exercida. Se o foi, saiu frustrada.
Tenho a pedir desculpa ao autor do Abrupto por imaginá-lo cedendo a correcções políticas. E aos leitores deste blogue por não ter feito o trabalho de casa. Quis fazer História. Mas fi-la romanceada. Se não foi simplesmente ficção o que fiz.
O Abrupto cede à correcção política?
Através de um «newsgroup» de galegos e portugueses, sou alertado de que o autor do Abrupto ofendeu a unidade da língua portuguesa. Se o meu revoltado co-foreiro reportou bem, José Pacheco Pereira terá anotado no seu blogue: «À minha volta fala-se brasileiro, língua dos empregados de restaurante em Portugal, produto da globalização».
Vou verificar. É um facto: JPP actualizou o post das 11.54 de ontem. Concretamente, terá eliminado essa passagem e algumas outras, tão inócuas como ela.
No nosso fórum (que, evidentemente, não identifico) lia-se: «No blog de Pacheco Pereira, ao que parece o mais lido de Portugal, é feita uma referência ao português do Brasil, que mais uma vez demonstra a falta de consciência de unidade da língua, vinda da parte de alguém que é claramente um membro da nossa elite e que, por esse motivo, devia ter mais consciência e deve ser mais responsabilidade em relação àquilo que diz. […] Este é mais um exemplo da diferença de atitude das elites castelhanófonas, francófonas e anglófonas, que têm consciência e promovem a unidade das suas línguas enquanto as nossas elites não têm essas consciência e não promovem o conceito de unidade das variedades de português. É caso para repetir pela milionésima vez: com elites assim o nosso país não precisa de inimigos. Contudo o importante é agir, e o sentido desta minha mensagem é o de incitar a que escrevamos para o endereço de email do autor do blog sobre esta questão, chamando-lhe a atenção para que no futuro não repita o erro num blog que, ao que parece, é tão influente» [negrita meu].
A pressão terá, pois, tido efeito. Fico perplexo, e na realidade decepcionado. Claro que o brasileiro nos é uma riqueza e um orgulho, e não posso imaginar que JPP o sinta diferentemente. Mas tudo indica que, cedendo ao clamor da correcção política, ele repudiou uma afirmação lúdica e totalmente inofensiva.
Preto no branco
Um estudo mostrou como a variedade na pigmentação pode conduzir a decisões mais correctas em casos tão complexos como os das deliberações judiciais. A surpresa dos resultados (ou a falta dela) suscita outras reflexões que ultrapassam o contexto forense. Em particular, permite perguntar: que andamos a fazer com os povos que estão em Portugal?
Cada pessoa é um povo, e seria por aqui que tudo deveria começar. Um angolano tem mais diferenças face a um guineense do que um cabo-verdiano face a um português. Não há nesta observação nenhuma hierarquia, apenas o enfoque na estrutura cultural onde a personalidade se forma. A lupa pode mostrar mais: um angolano de Cabinda tem (ou pode ter) mais diferenças face a um angolano do Moxico do que um moçambicano face a um tanzaniano. Claro que tudo isto é discutível, e ainda bem.
O que não merece discussão é a constatação da inércia lusitana no processo de acolhimento do estrangeiro. Seja loiro ou moreno, escuro ou claro, tratamos as outras nacionalidades em figura de gente com uma desconfiança que se consuma em desprezo. Há causas antropológicas evidentes, pulsionais, que só se transformam com o poder evolutivo do pensamento; mas a nossa sociedade não está servida de um escol que queira alterar a situação. As escolas e os meios de comunicação não levam a que sejamos amorosos daquilo que no outro é diferente. Ficamo-nos pela curiosidade circense e manipuladora. A consequência trágica é que desse modo também nos impedimos de descobrir o que há no outro de semelhante — e até de nosso, por ser exactamente o mesmo em todos.
Os responsáveis principais pelo marasmo são os partidos políticos. Seja porque é aos partidos que é dada a responsabilidade da governação e legislação, seja porque os partidos — sem excepção — cultivam o oportunismo como estratégia de poder. O espectáculo das excursões aos bairros da miséria e marginalidade, em período eleitoral, é uma vergonha a pedir vaias, ovos podres e até uns sopapos. Visitem-se as montras online do PCP e do Bloco, insuspeitos defensores parlamentares dos direitos e condição de vida dos imigrantes, e leia-se o que eles têm para dizer: informação em circuito fechado para cumprir agenda editorial. Não há uma única iniciativa ou ideia relevante para com ela se fazer cultura. No caso do PCP, chega a ser escandaloso descobrir que a notícia mais recente trata de um texto de Jerónimo de Sousa datado de 21 de Dezembro de 2005, aquando de uma visita à Comissão de Moradores da Cova da Moura para tentar sacar uns votos. O Bloco é mais prudente, não datando a maior parte das suas parcas notícias, mas revelando igual falência política e cívica.
Explicar aos infantes que Portugal é uma misturada de heranças, algumas das quais ainda vivas na sua origem — e que por isso um berbere, um árabe e um judeu contemporâneos são nossos antepassados, são família — seria o começo de uma educação verdadeiramente superior.
DESENHO* 4
Portugal em extinção
Cristiano Pereira oferece-nos uma viagem visual e sonora ao mundo de Artur Gonçalves. Muita gente se anda a rir com a figura, num típico fenómeno de sobranceria cultural que esconde o intento maligno de terraplenar a identidade pátria. Pela minha parte, não compreendo como o Presidente Jorge Sampaio conseguiu acabar os seus dois mandatos sem o condecorar. Afinal, terá existido mais algum português com a coragem, e bom gosto para gravatas, que esta capa ostenta?… Shame on you, Mr. President.
Signor Presidente del Consiglio
Para os meus alunos – eles rondam os 20 anos – o telemóvel existiu sempre. Como para mim o telefone. É isso: o mundo já veio feito assim. E é essa gratificante falta de perspectiva histórica, no dia-a-dia, o que permite imaginar-nos eternos. O que é, de resto, a melhor disposição para vivermos. Imagine-se o que era uma consciência contínua da nossa temporalidade. Não dávamos um passo. Íamo-nos arrastando. Sim, fazer-nos esquecer a morte é uma das espertezas da vida.
Tudo isto por causa das eleições italianas de ontem. Não se vê logo a relação? Exacto. Mas eu explico. O chefe do governo de Itália chama-se «Presidente do Conselho»… de ministros, claro. Também Mussolini tinha o cargo de «Presidente del Consiglio dei Ministri», e ignoro se a designação é anterior ao Regime Fascista.
Nós dizemos «primeiro-ministro». Mas dizemo-lo desde há trinta e pouco anos. Porque, antes, também o nosso chefe de governo se chamava «Presidente do Conselho». Só isso. Nunca se ouviu chamar a Salazar ou a Caetano «Presidente do Conselho de Ministros», mesmo em discurso indirecto, mesmo numa notícia de jornal. Isto era uma das finuras da nossa ditadura. O senhor não era o chefe de um grupo de pessoas, mas um chefe sem mais, um «Presidente». Havia portanto dois presidentes no país. E, na percepção pública, um deles era mais «presidente», e esse não era o da República. Era o outro, o eterno.
Nessa nossa atemporal percepção – eu tinha a idade dos meus alunos hoje – Salazar havia existido sempre. Por isso, o fim do Verão de 1968 foi um tempo tão delicioso. Falava-se do «sucessor», trocavam-se boatos. E isto na rua, lugar inaudito. Era o princípio do fim? Ninguém o sabia. Mas sabia-se que era o fim de qualquer coisa, de alguém. Do Presidente Eterno. Que só o tinha sido dos seus ministros.
Gapingvoidmania
Sonda Agustina pousa na blogosfera
O Abrupto publicou, em primeira mão, o mais recente livro de Agustina Bessa-Luís, Fama e Segredo da História de Portugal.
Não é uma estreia absoluta, mesmo entre nós. Alguns blogues são mesmo só literatura. Mas, durante uns dias, um blogue foi casa onde Agustina recebeu. Parabéns, JPP.
«E o que fizemos nós da educação?»
Destaco para aqui o comentário de Jorge Carvalheira ao post «É proibido ensinar. Aprender é vergonha». Trata-se de um texto notável do autor dos magníficos contos O Mensário do Corvo (Quasi, 2002).
Excelentíssimos senhores, alto aí e pára o baile, que tudo o que é demais parece mal! Sobretudo parece mal gastar tanto latim a repetir o que já foi dito mil vezes em vão. Só pode ser um exercício de desobriga de consciência. Está de acordo com a quadra, mas não deixa de ser uma vilania.
Deixem-se por isso de gestos de virgens ofendidas, como se fosse cair o carmo e a trindade, como se a tragédia da educação nacional fosse algo de surpreendente, de inesperado e único. É que a pátria inteira é feita de gestos tais há muitos anos, mas os senhores não querem saber disso, porque todos nós assobiamos para o ar e não queremos ver isso, porque é demasiado mau de ver, e porque nos fizeram assim.
Os senhores são cidadãos dum país que já tinha dignidade e alma, num tempo em que suecos, helvétivos, finlândios e dinamarcos ainda não tinham saltado a cancela do curral da barbárie. No tempo do rei Dinis os portugueses arroteavam terras, afiavam as lanças, construíam castelos e não se queixavam de ser pobres.
Os senhores pertencem a um povo que um dia foi levado para a Índia “ao cheiro desta canela”, ao serviço de interesses que nunca foram os dele, mas que por lá ficou até hoje.
Os senhores viram este povo gastar 500 anos a fazer filhos às pretas debaixo do embondeiro exactamente como os cafres, a merecer o estatuto de cafre da Europa, exactamente como se cafre fosse. Isto enquanto a Europa ia à escola e à oficina, e experimentava, e inventava, e progredia.
Os senhores viram este povo, ao longo de séculos, ser conduzido por elites crapulosas que sempre o cavalgaram com desprezo, e como alimento da barriga só lhe serviram mitos de fumo e nevoeiro. Os senhores viram o que foi feito de tanta riqueza que chegou nas caravelas, e puderam ver já que o mesmo destino tiveram os fundos que vieram da Europa, sem proveito nenhum para o país. Os senhores viram este povo, no séc. XIX, no tristíssimo papel do urso de feira, governado por estrangeiros, comido vivo por ingleses e outros filhos da puta civilizados, tentando apenas e sempre sobreviver à miséria.
Os senhores viram este povo a pagar as facturas da Índia em La Lys, viram-no a pagar as facturas do império na guerra das colónias, viram-no a fugir da fome, a salto, para a Europa, aos milhões, com a alma atulhada de mitos heróicos e putrefactos. Os senhores viram este povo a meter à força na cabeça que o ponto mais alto da pátria era o pico do Ramelau, na parte leste da ilha de Timor.
Os senhores viram este povo um dia fazer em desespero as atrasadas contas com a história e tomar o freio nos dentes. Tão bem tomado ele foi, e tão grande era a culpa histórica, que a clique dos poderosos, dos inteligentes, dos cosmopolitas, fugiu toda para o Brasil e ainda hoje não anda muito à vontade por aí. Tão bem tomado ele foi que o Moreira Baptista se borrou pelas calças abaixo no quartel do Carmo. Os senhores viram este povo voltar a casa, depois de 500 anos de forrobodó, e encontrar a casa em ruínas e a horta por cavar. E viram como, em oportuna manobra de recurso, este povo foi levado a integrar-se na Europa, que era afinal a sua terra, mas onde não teria lugar sem sofrer uma aturada catequese.
Depois disso o que fizeram os senhores, o que fizemos nós todos, o que fez este povo de si mesmo, da vida, da liberdade que tinha? O que fizemos da pouca indústria, o que fizemos das pescas, o que fizemos da agricultura, o que fizemos da justiça, o que fizemos da saúde, o que fizemos do dinheiro alemão, o que fizemos nós da educação?
Pois fizemos o que somos capazes de fazer. Pusemos tudo num pandemónio, levámos a banca à glória, porque desde a Índia (de Ceuta?) havíamos trocado uma boa capa por um mau capelo.
Somos óptimos, individualmente, e a trabalhar sob um capataz alemão. Colectivamente, não sabemos governar-nos, não temos capacidade para gerar uma elite que nos dirija. Somos desorganizados, corruptos, irresponsáveis, infantis, cafres, cafres, cafres. Os espanhóis viram-se livres da gangrena imperial, que também os aniquilou, há 100 anos. Nós apenas ontem. É o tempo que nos falta, para atingir a modernidade.
E o que fizemos nós da educação? Entregámo-la ao “génio” do PPD durante mais de 20 anos consecutivos. Demos-lhe o Deus Pinheiro, e a Manuela Leite, e um tal Couto dos Santos, e outros tantos. Demos-lhe a Weltanschauung do Cavaco, e demos-lhe o Roberto Carneiro, que talvez soubesse o que fazia e por isso mesmo se demitiu. Só nos faltou dar-lhe o saber do Dias Loureiro, porque esse fazia falta na polícia. E a subtileza de catrapilo do Jorge Coelho, atarefado a construir o túnel por baixo da Serra da Estrela.
Agora, 1200 criancinhas por ano vão aos fagotes à professora na sala de aula. E nós queixamo-nos de quê?
JORGE CARVALHEIRA
A despedida que antes de o ser já o era
Na verdade nunca escrevi com a regularidade que esperava no Aspirina. Por isso, acabo por partir sem nunca ter realmente chegado. Na adolescência, quando aparecemos em casa quando nos dá na bolha e saímos quando nos apetece, as nossas mãezinhas costumam dizer, num momento de irritação: «isto aqui não é uma pensão». Por isso, muito obrigado por me abrirem as portas da vossa casa que indecentemente eu tratei como uma pensão. E as minhas desculpas pela falta de assiduidade. Voltarei brevemente à blogosfera, com mais tempo e disponibilidade. Abraços a todos.
Blogues, jornais… e livros
«O monopólio da “verdade” e da palavra, detido em teoria no passado pelo poder político, pela imprensa tradicional e pelas editoras, já se entendeu que só se impunha ou parecia impor-se por não haver possibilidade de lhe opor uma concorrência séria. Mas hoje há gente a escrever nos blogues com competência e lucidez iguais ou superiores às dos jornalistas», escreve João Camilo no seu blogue Blue Everest, no post «Blogues e jornais: crédito?».
Se desejar ler mais João Camilo (desde há muito, professor universitário na Califórnia), passe pela livraria e peça Retrato Breve de JB, editado pela Fenda. É a reedição de um livro revelador, saído em 1974, triturado pela revolução. Ainda vamos a tempo. Do livro. E da revolução.