Aviso aos pacientes: este blogue é antianalgésico, pirético e inflamatório. Em caso de agravamento dos sintomas, escreva aos enfermeiros de plantão.
Apenas para administração interna; o fabricante não se responsabiliza por usos incorrectos deste fármaco.

Assinatura ilegível

Lisboa. Sexta-feira, 29 de Maio de 1986

Pela primeira vez neste país, está estampada, visível, na capa de um semanário de grande tiragem, a expressão ‘bancos de esperma’. Ouço o miúdo perguntar ao pai: ‘Ó pai, o que é esperma?’. Está o pai com visitas, está o pai na cervejaria, no estádio, está o pai com a mãe sentado no sofá. E este pequeno frémito do pai resume uma civilização.

Lisboa, 3 de Agosto de 1986

Querida Kárin,

Foi com certo contentamento e uma mais certa incredulidade que li a tua carta que ontem me chegou. Dentro de menos de três meses – se bem fiz as contas – o teu bebé irá nascer. E eu passo desde ontem o tempo a segredar, que digo eu, a gritar a mim próprio que eu nada tenho a ver com isso. Que o problema e, neste caso, também a alegria são exclusivamente teus. Quiseste de mim esse filho, agradeceste-mo com gentileza que eu jamais pensei me coubesse em sorte. Mas, com isso, estavam as contas saldadas.

Quiseste que o teu filho fosse meu. Desculpa, exprimo-me mal. Quiseste que o filho que tivesses achasse em mim o progenitor. Progenitor, sublinhaste – não ‘pai’. O que até (acrescentaste, como prevendo reservas minhas) nada tinha de original, pois umas amigas tuas tinham tido pouco antes um filho ‘pelo mesmo processo’.

O processo era simples, pude convir. Um boião esterilizado, um termómetro e um homem. O termómetro indica o dia azado, o homem produz, o boião transporta. O transporte devia fazer-se rápido, mas eram só dois quarteirões. Nada de listas de espera, nada de médicos e enfermeiras, nada de milhares de coroas para as clínicas de Estocolmo. Eu tocava à porta, tu abrias, um beijo furtivo, e reentravas na solidão. Que era só para a quebrares que nela agora te fechavas.

‘Descansa, ele há-de saber quem foi o progenitor’ – asseguravas. E eu ria-me intimamente de tantas garantias. Podes crer: tanto se me dava. Tinha achado engraçada a proposta que me fizeras, e havia em toda aquela andança certa aventura. E nem a gratidão de que afiançavas estar repleta conseguia enternecer-me. Pensava, sim (e quem mo levaria a mal), que o ‘processo’ era, como dizer, passível de simplificação. Dispensava-se o boião, as distâncias encurtavam grandemente. Mil vezes me propus fazer te essa contraproposta, com delicadeza suma. Mas mil vezes me dei conta de que nada indicava que só a mim me surgissem tais espertezas. Era evidente que isso não te estava nos propósitos. E não era já excelente elogio o que me fazias?

Porque, disso estou certo, não era só pelos meus olhos verdes ou pelo alourado dos meus cabelos que me pediras colaboração. Tu sabias que eu nunca te humilharia ao ponto de te lembrar, nem logo nem jamais, que também havia para essas coisas processos mais simples.

Agora a criancinha vai nascer. Crescerá sueco ou sueca. E um dia, daqui a muito tempo, perguntar-se-á, perguntará: Quem é o meu pai? Agora sou eu que to peço: Diz-lhe.

Teu do coração,

(assinatura ilegível)

de «Um Selvagem ao Piano»

Então é assim

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Nos tempos mais próximos, irei colocando aqui alguns textos – recentes uns, mais antigos outros – que tiveram pouca difusão. Quando achar que não há mais, ou que já não os há apresentáveis, ou que já chateei o suficiente, partirei. A vida é alhures, já dizia o outro. Em francês. Com outro chique.

O Aspirina, esse, continuará. Há mais marés que marinheiros. Quem sabe, leitor e amigo, os grandes dias que ainda o esperam aqui.

O regresso (2)

Os chocolates espanhóis foram deveras comprados, e alguns comidos. Seriam o único gasto seu naquele dia. Mas, na reentrada no país, iriam faltar ele e o pastor. Foram escondidos num matagal, e ficaram esperando que um carro, pela fronteira legal, os viesse buscar. «Duas horitas, e a gente vem apanhá-los.» Procedimento banal, mas ele não o sabia. Cento e vinte minutos podem levar eternidades a passar. Nem por teima, era aquilo uma Sexta-feira Santa, à exacta hora em que o Outro também aguentara horas, e em piores condições.

A madrugada de Sábado Santo achou-os em Madrid. O casalinho amigo, que estava para ficar em Cáceres, acabou por ir levá-los à grande capital, a uma casa de padres, perturbados no sono, mas logo solícitos. Um deles, ainda o sol não rompera, pegou no carro e meteu-se com eles a caminho da longínqua Barcelona. «De comboio, pela fronteira, nunca. É um suicídio», diziam-lhes, querendo demovê-los do plano inicial, passarem a fronteira em Irun, na legalidade. E mais lhes disseram que, em Barcelona, havia alguém, um padre também ele, que conhecia palmo a palmo os Pirenéus, onde nascera, e que os poria salvos em França.

Chegaram à tardinha desse sábado à capital catalã, onde foram entregues em nova casa paroquial, tão suspeita politicamente como a de Madrid, se não mais. O padre fronteiriço apareceu horas depois. Vinha exactamente de uma caminhada pelas montanhas natais. «Combinado. Eu levo-os a França. De hoje a oito dias.» Oito dias! Outra eternidade. Mas não sobravam alternativas.

O válium é uma grande invenção. Uma invenção triste, mas a vida, às vezes, é uma tristeza toda ela. Doze horas de sono podem ser, e nesse caso ali eram, uma prenda inestimável. E, depois, até ao perigo uma pessoa se habitua. Já ao quarto dia eles iniciavam a volta turística de Barcelona. O trivial. Nem merece a pena mencionar.

E chegou o dia aprazado da fuga definitiva, domingo, o primeiro domingo de Abril. Deixaram Barcelona ao fim da manhã. Eram já cinco da tarde quando, a dois mil e quinhentos metros, no cocuruto do monte que subiam, se lhes desdobrou ante os olhos o mais deslumbrante dos panoramas. De leste a oeste, quanto a vista abarcava, uma cordilheira refulgia, rosa e laranja, ao sol declinando.

Não, a liberdade pode vir na mais fria das brumas, ter o cheiro da imundície, e será sempre uma bênção. Não era preciso ela chegar assim, como ali chegava, nesse assombroso esplendor. Mas há destas sortes. E o mais bonito ainda é aquilo que não se mereceu.

Foram dormir a Montpellier, a um convento de mendicantes. O companheiro decidiu ficar. Iria em breve demandar a Suíça, onde estudos de teologia o esperavam. Ele, não. Era o Norte que o atraía. Ao terceiro dia, meteram-lhe na mão uma bucha, um bilhete para Paris e o endereço dum convento. Paris era o que já se conhecia de bilhetes-postais, e por isso rumou mais a norte ainda, a outros países, outras gentes.

Quando pôde regressar, fê-lo banalmente de avião. O peregrinar por terra, que se havia proposto, não foi esquecido, mas estava impraticável. Não guardara moradas nem de Paris, nem de Montpellier, nem de Barcelona, nem de Madrid. Não tivera esse cuidado, ele que tão lindos planos concebera. Não havia, assim, meio de agradecer àquela santa gente. E, depois, o mais certo era que todos eles, como santos verdadeiros, já nem dele se lembrassem.

O regresso (1)

Ao senhor arquitecto Nuno Teotónio Pereira

Era uma daquelas ideias malucas, mas era simpática, bonita até. Quando ele voltasse a Portugal, haveria de regressar pelo mesmo exacto caminho, haveria de repisar estrada a estrada, batendo, casa por casa, à porta de quantos o tinham acolhido na fuga. Quando um dia regressasse. Se regressasse. Porque a situação nacional estava, assim parecia, para durar. Para seu próprio descanso, prometera-se logo dez, quinze, mais anos de exílio. Era moço, sentia-se velho. E era esse o sentimento em que teria morrido se, em vez de atirar-se à deserção, houvesse embarcado para a guerra. Porque, tanto era certo, naquele bocado de mundo para onde iria guerrear, a morte acabava por ser, de todas as hipóteses, a mais realista. Operação no mato, uma bala de olho já nele, e pronto. «O oficial, lá, é sempre o primeiro.» Ouvira, e acreditara. «Gajo inseguro, óculos, mais idade. Não engana.» Era de uma lógica mortal.

Decidiu deixar o País no preciso momento em que, no quartel, vira afixadas as notas daquele segundo mês da «especialidade». Decepcionantes. Ele era bom em algumas coisas, as que metessem lérias por escrito, sobretudo. Tinha mesmo, com base nisso, planos de classificação vistosa. «Um tipo bem classificado tem grandes chances de não ir», afiançavam-lhe. «Ou só vai no fim, e então é que elas doem. Mas vale a pena arriscar.» Uma proeza dessas iria afagar-lhe grandemente a auto-estima.

Simplesmente, o desmontar e voltar a montar da espingarda (a G-3 era uma espingarda? hoje já não tem essas certezas) era desempenho fundamental, e revelara-se um alçapão. E fossem ele só as armas! É que a componente física, também ela, não dera notas brilhantes. Vendo bem, só os exercícios de orientação nocturna – «dropping» num pinhal, um mapa sumário e fé na boa estrela – só eles mereciam menção. O seu grupo, cinco cadetes amigos, era de longe o melhor nessas operações. E na unidade todos sabiam, o alferes e o capitão incluídos, que era a ele, à sua incompreensível bússola interna, que se deviam as chegadas às horas e aos postos certos.

Mas o panorama total era alarmante. Nunca ficaria entre os cinco, mesmo os dez, primeiros, mesmo que batesse a malta de Coimbra, aqueles quinze indisciplinados universitários que a sabedoria militar havia mantido juntos no seu pelotão. É que bastantes outros lhe passariam à frente: os paisanos, esses a quem a cultura não atrofiara nem senso prático nem os músculos.

Só muitos anos depois saberia que, ainda ele não cruzara os Pirenéus, já os revoltosos coimbrões estavam de regresso às carteiras. A saída deles transtornava toda a classificação final, deixando mesmo os melhor classificados à beirinha da mobilização. Nem a genica natural nem o esforçado cerrar dentes, nada havia valido aos pobres.

Abandonou o país por uma bela tarde de Março de 1970. Já conhecia Marvão, só nunca a imaginara cenário de relevo na sua vida. Era lá que alguém que agora ia ajudá-lo tinha uma casa, um arquitecto da capital que só nesse dia havia de conhecer. Bastantes foragidos haviam, antes dele, saído dessa primorosa mansão para irem «comprar chocolates» a Espanha. Acto ilegal, fraqueza lamentável, mas tão humanos que qualquer guarda-fronteira compreenderia.

Iam um grupinho. O arquitecto e a mulher, um filho deles, porventura dois, um casal amigo a caminho de Cáceres, e mais uma pessoa, o jovem tranquilo que, nessa manhãzinha, em Lisboa, se lhe apresentara como pastor protestante, e ele soubera ir ser seu colega de aventura.

Quatro anos mais tarde, em Lisboa – porque o exílio afinal só duraria isso – encontraria o arquitecto num comício da extrema-esquerda moderada. E ele haveria de abordá-lo, e de agradecer-lhe, como quem agradece a um santo. O arquitecto, simpático, sorriu, mas não se lembrava dele. Um santo, nem mais.

continua

Mana

Um homem tinha dois filhos. Um filho e uma filha, desta vez. Um dia, disse-lhe a filha: Pai. Não, não lhe disse, escreveu: Pai. Era a primeira vez que lhe escrevia em duas dezenas de anos, e estava prestes a fazer os vinte. Pai. Saltou uma linha e entrou na carta. Pai. Não, isso já estava. Tenho outro amante. A letra nem denunciava tremuras. Se alguém dever admirar-se, não serás tu. Tinha havido um ponto de exclamação, já só o ponto se aproveitava. Posso-te imaginar ciumento, estupefacto é que não. Parágrafo. Amantes tive eu logo aos catorze, e ninguém melhor do que tu sabe quem foi. As reticências tinham sido postas – era isto evidente – ao ter-se iniciado já a frase seguinte. Levaste-me para o sótão, na nossa outra casa. Parágrafo.

Nisto, entra na história o filho. Entra é uma maneira de dizer, pois ele já esteve, por detrás do pai, seguindo a leitura. Com que então, senhor meu pai! O pai vira-se, estende-lhe a carta e diz: O resto é para ti. O filho pega na carta, procura onde tinham ficado e lê em voz alta. Terás pensado que o segredo ficaria guardado. E, na realidade, nunca a ninguém falei. Mas o Gustavo cedo descobriu o que nem muito escondido estava. Gustavo levantou os olhos da carta para o pai. O pai disse: Continua. Gustavo prosseguiu: Uma tarde, ainda eu de novo chorava a mágoa de ter nascido filha tua, entra ele no sótão. Estava excitado e nada fazia para encobri-lo. E serviu-se, como tu, minutos antes, te serviras.

Gustavo parou. Continua, disse o pai. É mentira, pai. Continua, repetiu ele. Durante semanas, talvez meses, foi um ir e vir entre vocês. Até eu fugir. Pronto, era isto. Gustavo fixava a carta, onde só a garatuja da assinatura sobrava. Continua. Gustavo olhou o pai. Sabia-se lívido, após ter tido o rosto ao rubro. No pai nada parecera alterar-se. Continua, ou eu esquartejo-te com esta bodega. Nas mãos do pai surgiu um revólver. Continua, velhaco. Porque eu hei-de vingar-me da desonra que na minha própria casa me trouxeram. Um filho meu!

Gustavo tinha uma vaga impressão de que o pai exagerava. Descobriu-se também de pistola em riste. Velho aleivoso. Foi então para isso que quiseste ter uma filha, por força uma filha! Ia disparar, quando acordou. Era realmente uma irmã o que sempre desejara ter tido.

de «Um Selvagem ao Piano»

Papa de sarrabulho

Quase nada foi dito sobre o discurso do Papa Bento XVI na Universidade de Regensburg. A totalidade das minhas leituras revela articulistas a tocar as problemáticas pela rama ou a saltar para fora do texto com velocidades superiores à da luz. E ninguém os poderá censurar, posto que a alocução é intempestiva, dirige-se a intelectos que não sejam só deste tempo; isto é, convoca inteligências de compreensão lenta.

Nos planos da dinâmica paranóica dos meios de comunicação e das ocultas estratégias políticas, o assunto está esgotado, regressando no próximo round. Esticou-se a “reacção islâmica” até parecer o que não foi, saboreou-se o embaraço do Vaticano, cresceu a impaciência das elites culturais perante o fanatismo religioso e ensaiaram-se umas chicuelinas onde se toureou a Razão e nela se espetaram uns ferros com fé. Não foi pouco, mas pouco se aproveita.

Continuar a lerPapa de sarrabulho

Miguel Real por estas plagas

Alguns blogues já haviam alertado: Miguel Real dera em escrever, também ele, neste precário e volátil meio. Nem mais, e no amável blogue Prazeres Minúsculos. Foi-se ver, e era mesmo. Com um texto brilhante, esse aí indicado.

O brilho não admira. Miguel Real anda a escrever cada vez melhor. Que digo eu? Quem leu A Voz da Terra – o seu romance saído o ano passado, e que teve (se bem recordo) dois votos vencidos no Grande Prémio do Romance da APE – já sabe que temos nele, sem mais, um grande ficcionista. E também um, aqui e ali arrebatador, artista do idioma.

Bem-vindo, Miguel.

O melhor blogue do mundo

Não apanhei o período da paixão pelos blogues, os anos de 2002 a 2004. Estava de ressaca, anteriores experiências comunitárias na Internet tinham-me já revelado o essencial e o acidental nisto de se comunicar com anónimos através de um teclado. E, talvez por ter começado num outro formato, pouco me fascinou, me fascina, nos blogues.

As leis da selecção natural também se aplicam na blogosfera. Stultorum numerus est infinitus, e nada como a Internet para o comprovarmos. Passado o ciclo da novidade — e exceptuando aqueles que, por variada causa, são militantes do meio ou se sentem obrigados a dar notícia de terceiros — ficamo-nos por um conjunto muito limitado de autores. Olhemos para a listagem de blogues referenciados aqui no Aspirina, por exemplo. A maior parte deles está activa, alguns mantendo um ritmo intenso. Quantos visito regularmente? Dois. Um deles é o melhor blogue do mundo.

O que Pacheco Pereira faz é admirável, sob qualquer ponto de vista. Primeiro, oferece conteúdos intelectualmente superiores num discurso acessível para o leitor médio (tal como faz na imprensa, onde alia o rigor da reflexão à simplicidade da argumentação), expondo a sua erudição e amplitude de interesses sem proselitismo. Depois, usa o meio para servir a comunidade, o que acontece com a publicação de e-cartas, fotos, textos de autor (a surpreendente parceria com Agustina), referências à blogosfera e, muito importante, com a reflexão e crítica da blogosfera enquanto objecto sociológico e ecossistema. Por último, mas cada vez mais longe do fim, a sua produção é constante; assim cumprindo a promessa, inclusa na etimologia, de os blogues serem diários e diários.

Com tudo, talvez o traço que mais me impressiona no Abrupto, e na pessoa que o faz, seja a ausência de cinismo. Há melancolia, sim, inevitável consorte da lucidez, e até essa apenas implícita, mas não há expressão do cinismo. O cinismo é imbecil, e o Abrupto é um dos mais poderosos antídotos contra a estupidificação nacional; logo, água choca para um lado, azeite puríssimo para o outro.

Lendo as suas “Regras Próprias“, não há como evitar a conclusão: eis o melhor blogue do mundo. Do meu mundo, pois claro.

Para que serve a Galiza

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A Galiza serve para albergar os galegos. Dá-lhes espaço e luz, um chão, um céu. E água, pedra e floresta. E sossego e inquietação. E vontade de partir para longe. E a saudade, já, do regresso.

Mas também a nós, portugueses, a Galiza serve. E para bem mais do que poderíamos supor.

Primeiro, e já não será pouco: a Galiza recorda-nos que somos menos únicos do que apreciamos pensar. E que o Universo, ou mesmo a Europa, não se andaram preparando para produzir, aqui, esta tão inesperada mistura, que chamámos portuguesa, de sonho e pragmatismo, de evasão e acanhamento, de um entusiasmo por amanhã e uma entrega já hoje à fatalidade.

Assim, a Galiza faz-nos sentir-nos menos sós nesta agreste Península. Estamos acompanhados na ríspida vizinhança dos excitáveis e excitados castelhanos. Que nos disturbam e cansam com o seu colorido, a sua eloquência, a sua certeza de ditarem as leis do planeta.

E, por isso, a Galiza serve para lembrar-nos a felicidade, que a Galiza não teve, de podermos fechar as portas e janelas à algazarra. E podemos ler Javier Marías no alpendre, ver Almodóvar no sofá, calcorrear um Prado silencioso e digital, ouvir Tamara enquanto passeamos. Como se o Mediterrâneo luzisse em Elvas ou viesse lamber as praias da Covilhã.

Serve a Galiza, igualmente, para recordar-nos uma sorte, sorte que ela também não tem: a de desconhecermos um idioma superior, dia e noite contaminando, abafando, ameaçando de morte o nosso. E, por isso, quanta necessidade há, quanta urgência talvez, de o protegermos, a este, e da maneira mais simples, e a mais esperta: conhecendo-o melhor, estimulando nele forças dormentes, usando-o com imaginação e fidalguia.

A Galiza é o nosso melhor contacto. Pode a Espanha ser-nos um exemplo de sociedade, e é decerto um parceiro comercial. Mas não nos é, nunca foi, nem parece que venha a ser, um interlocutor. Até hoje, ninguém apresentou uma fórmula para isso que não diminuísse Portugal.

A Galiza, essa, há-de servir-nos, sempre, de casa ao lado. Com amigos certos. Para uma longa conversa ao pôr-do-sol.

*

A conversa entre galegos e portugueses tem vindo a fazer-se também na blogosfera. Salientarei, do lado galego, O Levantador de Minas, o blogue de Jaureguizar Cabaret Voltaire (antigamente Facendo Amigos) e o de Martin Pawley Días Estranhos (sic). E ainda o Portal Galego da Língua. Do lado português, tem de destacar-se Renas e Veados, tal como Coroas de Pinho.

A 13 e 14 de Outubro, haverá no Porto um encontro luso-galaico sobre Weblogs. Toda a informação aqui.

O mapa acima, de fabrico alemão, usa o nome espanhol da Galiza. Para muitos galegos, esse é também o nome do seu país. Mas há que sublinhar, no conjunto, a saborosa incorrecção política da mapeação.

Leituras de fim-de-semana (2)

UM MOURO NO NORTE (cont.)

Chegara eu de Lisboa? Sim, e de mais longe ainda. Do recanto mais fundo do fundo Alentejo. Vinha duma terra, Mértola, outrora cidade altiva, rica, porto mercantil que abastecia Lisbuna. Um pacífico povo mouro aí vivia, laborioso, feliz. Até ao dia, infausto entre todos, em que hordas cristãs de nortenhos, falando uma língua inaudita, vieram destruir-nos casas e oficinas, impor-nos uma religião, fazer-nos esquecer a amada língua berbere. Ainda hoje a minha cidade, que acabou vila, é uma das três ou quatro jóias urbanas do País. Pois sim. Mas seria exagerado agradecermos aos cristãos do Norte terem tido a gentileza de não nos riscarem do mapa. Por nós, nunca recuperámos da invasão. Hoje batemos palmas à selecção portuguesa? Acreditem que também teríamos feito uma boa equipa.

Não me tornei padre. Essa batalha, o norte cristão perdeu-a. Ficou o mundo, também, com um problema a menos. Hoje, do púlpito, eu encheria atentas naves com verdades em que eu mesmo não acreditaria. Uma vida exemplar não era, igualmente, de mim esperável. Ainda assim, garanto que tinha perfil para voos eclesiásticos. Neste momento, poderia estar já a cónego, quem sabe se a mais. Seria feliz? Algo me faz supor que não. Mas nunca mo poderei provar. Também a vida nos vai formando, e acaba por fazer de nós seres inverosímeis, a perguntarem-se ‘como é que cheguei aqui’, olhando à volta, procurando um código, talvez escrito no desenho dos ramos ou no voo das aves, que nos informe, finalmente, do que viemos aqui fazer.

Concedo: também não eram, estas, considerações que me visitassem o ânimo, naquela tarde, há cinquenta anos, em que de longe avistei Guimarães por primeira vez. Não eram estas reflexões, nem nenhumas outras. E por isso eu era feliz.

Leituras de fim-de-semana (1)

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UM MOURO NO NORTE

Há gente que não assenta. Anda de terra em terra, aproveita o melhor de cada uma, e parte, parte de novo, que o vasto mundo chama. Uma pessoa assim sou eu. Nada de especial, adianto já. Mas sou irremediavelmente ‘especial’ para mim mesmo, e vivo na firme, ainda que improvável, convicção de sê-lo também para os outros. Ora, até nisso, não sou especial. É que todos, todos, assim nos sentimos. Vivemos confinados nessa desesperada, e também sólida, impressão de sermos o centro do mundo. Infelizmente, somo-lo. E, porque mais ninguém se dá conta disso, vivemos nesta desdita, e nesta solidão, que a gente sabe.

Não eram, estes, pensamentos que me atormentassem aquele domingo de Março de 1955 em que avistei Guimarães pela primeira vez. Nem é certo, sequer, ter percebido que era Guimarães aquilo que avistava ao longe. Vou explicar. Nesse longínquo dia, jogava o Benfica em Braga. Isso era uma boa razão para eu me meter à viagem, de Lisboa. A outra razão é que queria ser padre, e Braga era um sítio, digamos, muito adequado. Mas, e agora vem, não era bem Braga aonde me dirigia, e onde iria passar os oito intermináveis anos da minha adolescência. Era um alto cerro a leste da cidade, de onde se avistava o mundo inteiro, e Guimarães para começar.

Desde então, passei a acordar vendo a cidade três ou quatro léguas lá adiante, e garanto que há no mundo poucos espectáculos para um despertar assim. Quantas vezes a Penha não se recortou, nítida, sobranceira a um vale, o das Taipas, acamado num lago de nevoeiro, liso e brilhante. Tantos anos depois, isto ainda põe lírica uma pessoa. Depois, e o lirismo ainda não acabou, quantos pores-do-sol não viram estes olhos, em que Guimarães encerrava o dia num rosa-laranja glorioso, agora já não nítido senão irisado, como diriam os poetas. Já se percebeu: tenho da primeira capital portuguesa uma impressão muito devedora à natureza. Impressão limitada, decerto, mas intimamente enriquecedora. Também a natureza nos forma. De resto, mais tarde soube que jóia urbana Guimarães era, com um dos três ou quatro mais belos centros históricos do País. Na altura, este miúdo calhava caminhar pela cidade, achava bonito, mas não sabia quanto.

Chegara eu de Lisboa? Sim, e de mais longe ainda. Do recanto mais fundo do fundo Alentejo.

[prossegue e termina mais logo]

Este artigo apareceu, por convite de Pedro Chagas Freitas (ver blogue aqui ao lado), no jornal «Global Minho e Porto», editado em Guimarães. A fotografia é autêntica. Foi feita num fotógrafo da Rua dos Poiais de São Bento, em Lisboa, na noite anterior à partida para o Norte. Meios sofisticados permitirão identificar o emblema como de um clube importante da capital.

CARTA AO POETA ANTÓNIO CABRITA A PROPÓSITO DE CERTOS IMPASSES

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Do poeta natural de Cabo Verde José Luís Tavares publicou o «Aspirina» alguns originais e traduções de poemas portugueses para caboverdiano. Hoje, um novo original, com destinatário e mensagem. Decerto não por causa, mas seguramente por arrastamento do «post» de Valupi / RenatoC. «Somos um aterro literário!».

CARTA AO POETA ANTÓNIO CABRITA
A PROPÓSITO DE CERTOS IMPASSES

Sim — sempre o soube —
amas o fogo que assoa as ventas
aos baixios da alma com a afeição
do sabre gangrenando a giba.

Com a confiança do que atravessou,
incólume, o gargarejo de zeus,
desentranhas o manancial que sete
gerações de poeira ocultaram sob
a cauda centrípeta do harmatão.

Irmão antónio, que suspiro não é
decreto que cauciona a orfandade do escriba?
A minha filha já me ronda os versos
com a veterania do felino, inda desconheçam
os molares o salitre oculto em cada naco.

Irmão antónio, a ciência do desengano
não é apanágio do que se extravia
num raso copo de mezcal,
mas daquele que desabalado de si
apalpa o pulso ao furacão.

Pois, tu também te perdeste,
com a loquacidade do naufragado,
à esquerda pantanosa de um tempo
que recicla os mais débeis gorjeios
que nem cócegas fazem às coronárias

— arrancado aos pinhais onde lufam
polígrafos ignorantes da fotossíntese,
nas margens do limpopo despistas agora
o ranço que aleita os ouedes
onde se oculta o manancial.

Sagrasses em pedra-pome o rasto dos delírios,
qual cego que seguisse o engodo duma mansa voz,
mas conturba-se a atonal rebentação
com seu fio preto de insónias — e meia vida
escoa-se pelo cano que rói o sebo aos mistérios;

a outra, confia-la à pestanejada porosidade
dos versos, reles baforada
sem o póstumo luzimento que recobre
a irrestrita inteireza do abismo.

José Luís Tavares

Perspectiva histórica

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Às vezes, para estimular os meus alunos a alguma maior perspectiva histórica (que, segundo alguns relatórios, e a minha própria experiência, lhes falta aqui e ali), forço neles um jogo mental. Assevero-lhes, por exemplo, que daqui a 30 anos, portanto quando eles tiverem 50, o iPod (ou o tetraneto dele) produzirá não imagens hesitantes de vídeo, mas experiências tridimensionais. Concretamente, poderão ver «Tróia» no exacto meio da cena, que se desenrolará em seu redor até perder de vista. E poderão, à escolha, espadeirar com Aquiles ou com Heitor.

Olham-me, então, entre espantados e fascinados. E eu prossigo, dizendo-lhes que Multatuli (o Camilo Castelo Branco cá do sítio), a terem-lhe contado que um dia se poderia, carregando uns botões, ver imagens móveis e realistas – e até em directo – numa caixinha de 12×6 cm, pagas com uns códigos bancários, teria tido, e com razão, um espanto maior do que eles agora têm com uma Tróia em 3D e sound surrouding.

Não sei se a tecnologia vai levar exactamente a isso. Pode até conduzir a conseguimentos que hoje não me passam – nem poderiam passar-me – pela cabeça. Nós não podemos senão extrapolar o conhecimento hoje disponível, projectá-lo no futuro. Assim, em finais do século XIX, Júlio Verne, que já conhecia o telefone, imaginou salas imensas com milhares de telefonistas lendo aos assinantes, um a um, as notícias do dia. A rádio era-lhe, ainda, inconcebível.

Com desconto para o meu erro factual (só verificável daqui a decénios), os meus alunos terão ganho – assim espero – alguma perspectiva temporal mais. Sempre útil, neste exigente mundo.

SOMOS UM ATERRO LITERÁRIO!

É uma sorte podermos ter o Fernando Venâncio no Aspirina. A sua generosidade intelectual é de uma cepa rara, aquela que quer criar comunidade. E talvez por isso (ou por acaso, que tanto faz) tenha aparecido aqui este desopilante exercício do Renato C., a merecer itálico e acenos de cabeça:

O problema da parvalheira literária deste País não tem origem na estrutura crítica, que melhor ou pior acaba, as mais das vezes, por resultar inócua para o compto das vendas da grande maioria das edições.

O disparate reside, antes, no mesmo velho factor social que de tão devassado e moribundo perverte e arruína todos os demais: a Educação.

À força de uma sólida educação, composta por toda a sorte — ou azar — de lixo mediático com que entopem os neurónios às criancinhas inocentes, na verdade elas nunca passam disso mesmo: criancinhas; a inocência esvai-se, ainda assim.

Basta observar os comportamentos nas estradas, nos restaurantes, nas empresas, nos hipermercados, nas repartições, nos jardins, nas praias, em toda a parte. Aliás, até mesmo neste blogue… O português, essa coisa abjecta, polui com as suas atitudes infantis, inescrupulosas, pouco cívicas e nada inteligentes cada nanograma de ar que o rodeia. Cospe para o ar. Dá tiros no próprio pé.

E isto nem sequer está inter-relacionado com o nível socioeconómico das pessoas… Era bom se assim fosse, que sempre tínhamos a recorrente desculpa de sermos um País pobre e-tal-e-coiso. Mas, na verdade, a única diferença é que os economicamente ricos, embora tão pobres como outros quaisquer, detêm mais recursos para branquear os seus comportamentos.

Os piores canais e programas de televisão alcançam as maiores audiências; os piores jornais são os mais lidos — salvo honrosas excepções —, e a generalidade dos jornalistas são maus ou sofríveis ou acabam por evoluir para esse estádio à medida que acumulam experiência; as editoras recorrem ao tradicional “é o que vende” para ficarem de consciência tranquila; qualquer brutitates que saiba contar anedotas em público, ou qualquer crica com um par de cara ou um palmo de mamas, salta em menos de um fósforo para a ribalta das figuras públicas e lá se mantém, se estrategicamente fizer umas plásticas de quando em vez… E quando se dá por eles, zás! — derramaram as suas fartas pústulas num livro com a história da “minha vida”. Minha nossa! — quer dizer.

Se não, reparem que não é um problema confinado aos autores literários portugueses… Se quiserem algumas obras de referência de autores estrangeiros (das quais muitas são livros de vulto e, a seu tempo, best-sellers lá fora), tê-las-ão de ler em Inglês, Francês ou mesmo Espanhol. Contudo, se se dedicarem a esgravatar nos escaparates constatarão que não falta cá nada do lixo internacional. A bosta que se escreve em todo o mundo é traduzida e publicada à velocidade de uma corrida de burros. Porque muitas vezes os direitos para publicar a obra são alvo disso mesmo: de uma corrida de burros.

Há uma maré negra nas edições livreiras portuguesas. É um facto. Mas isso pouco ou nada se deve à acção dos críticos — muitos apenas na forma tentada — literários. Eles são normalmente gente boa que vasculha no lixo e por vezes se deixa contaminar. Apenas isso.

Falta, na listagem do insigne suprapostador, a Margarida Rebelo Pinto, o José Rodrigues dos Santos, o Miguel Sousa Tavares, o Gastão não-sei-quantos e outros que me neurastenizam a molécula (e que decerto me perdoarão pelo facto de me não serem mnemónicos)… Enfim. Mas nem todos são maus. Alguns escrevem bem e eu até os aprecio — o que, se eles soubessem — os encheria de contentamento e orgulho.

Afinal, o que faz falta é uma secção de reciclagem literária nos ecocentros do País. Quando assim for, pode ser que o aterro se dissipe…

Soube-me bem desabafar. Mas já criticava qualquer coisinha tenra…

Até já.

PS — Também acredito no Pai Natal.

Renato C.

O filme das vossas vidas

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Então é isso. Os vossos dias, e as vossas noites, esvaem-se-vos assim. Uma bebida num bar imensamente trendy, um ultra-rapidinha em casa antes do jantar fora, uma rupita levíssima que abala a conta do marido, uma queca nos lavabos do Centro Cultural de Belém.

Para ver-me informado disso, fiquei eu a noite passada roubando o sono ao corpo (sim, eu arrasto-me uma hora à vossa frente, calaceiros), dizendo-me que o filme da vida deles bem podia esperar até virem as primeiras críticas. Tudo bons pensamentos. Era a sábia natureza a surrurrar-me o melhor que lhe vinha à cabeça. Pois nada ajudou, viu-se. Sim, este desgraçado viu.

Claro, os actores portugueses fazem largos progressos. Já não se lhes lê nos olhos a deixa seguinte, a dele, ou a do outro, e conseguem mesmo uma vaga descontracção. Os cenários são convincentes. E a linguagem até não mete logo o lisboetês desta semana.

Mas a história… (não reparei no autor, mas vou reparar), a história não tem nada daquela finura que faz as grandes séries, norte-americanas ou brasileiras, o imprevisto ou o dulcíssimo susto que nos atraem para a ponta da cadeira, e já no primeiro episódio, pois claro.

O filme das vossas vidas? Talvez o espreite. Talvez não. As vossas vidas são-me valiosíssimas. O filme delas, não sei se deva dizê-lo, um tanto menos.

Versos que nos salvam

«Versos que nos salvam» era o título da secção de poemas mantida pelo José Mário Silva no velho «BdE» e, em tempos, no «Aspirina». Adoptamo-lo por nostalgia, claro.

Virgílio Rodrigues Brandão é poeta, advogado e colunista do Liberal de Cabo Verde. Reproduz-se um magnífico poema de Virgílio, encontrável também aqui.

ESTELA CANTO E FELICIDADE

Redoma do meu umbigo,
primeiro útero
e mãe.
Lembras-me Estela Canto
nas penumbras tardes de Buenos Aires
à beira do café
com o tango dançando nos coretos
teus lábios de quinta-essência curva
e sorriso prenhe.
Confesso: lembras-me
porque me dói a alma,
todos os homens teus têm duas mães,
gemem quando amam
e procuram por ti sem saberem
– na verdade dizem-se ditames de dias novos
em corpo-longe.
Sim. Ah, sim. Lembras-me
que sou petros in natura
ansiando de trágico o teu riso em noite escura
apagada dentro de luz
em todas as auroras dos gemidos
que ficam nas sombras dos dias…
Sim, lembras-me Estela Canto,
as dores de parto letrino e de dentes
do poeta
e todos os anseios de amanhã
consumindo anos de mar refinado
para perceber de Deus em ti obra
e beijo que podem ser melhoradas…
Lembras-te de me lembrar,
ainda menino,
que posso ser melhorado?…
Recordo-me – expeliste-me de ti…
Lembras-me Estela Canto,
uma parte de Adão em Buenos Aires,
recortando sentidos,
apagando alma de amores,
criando caminhos do belo nas rasuras,
parindo luz numa íris cansada…
Será que sabia que daí chegava a ti
– ao teu Porto Novo e ao teu Fogo –
milho vermelho para construir seiva
para me gerar?
Lembras-me Estela Canto
pois nasci em ti, que foste apagando
o verde e dás sentido ao belo
mesmo nas noites escuras
e no medo cansado que espreita na voz
residente no teu ventre que também balbucia
como o poeta chorou em Genebra
e Buenos Aires quando eu nasci: «Ya no seré feliz.»
O que não sabe, é que é feliz!
Em ti…

Virgílio Rodrigues Brandão

Os indignadores profissionais

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José Saramago quando director-adjunto do DN em 1975

Se há raça de gente que me põe descrente da humanidade, é a dos indignadores profissionais. São os descontentes porque sim, para lá de toda, mesmo a mínima, tranquilidade de espírito.

Isto vem trazido por um comentário, assinado «Rendinhas e Veneno» (vá lá, tem nisto graça), ao post anterior a este, e que diz, entre mais: «Pois é, só é pena que o DN não se lembre o que o José Saramago fez quando foi seu director… já lá vão uns 30 anos é natural que tenha caído no esquecimento…»

É uma insinuação recorrente. Ora, exactamente o «Diário de Notícias» (caramba, o Google até já existe) publicou este artigo que há-de esclarecer o «Rendinhas» bem mais, talvez, do que sonharia. A foto acima é daí tirada.

Do maior interesse são, também, as declarações de Luís de Barros, então director do DN, sobre a sua oposição à entrada de Saramago para a direcção.

Não tem excessivo interesse, mas lembro que pouca gente tem minado (bom, tentado minar) tanto a mitificação de Saramago como aqui o Degas. Simplesmente, nunca permiti que a indignação me guiasse. Por isso me é um prazer constatar que há outros mais dois-dedos-de-testa, como os que depõem neste post da «Estrada do Alicerce», de Ruy Ventura.

Para sublinhar – e apreciar – isso, não preciso sequer de concordar com tudo o aí dito. Assim discordo frontalmente da observação de Paulo Tunhas (aí citado), onde se considera Saramago «palavroso» ou «sem sombra de ironia». Se é verdade que alguns romances, sobretudo os dos últimos dez anos, valem por escassas dezenas das suas páginas (e um ou outro nem isso), creio poder ter-se o estilista Saramago na conta de invulgar economista da linguagem. E de um mestre em ironia. Demasiado subtil, por vezes? Bom, isso já pode ter a ver com quem o lê.

É isso, a indignação-porque-sim só enfraquece as causas. Normalmente, nem causas tem.

Este blogue é antianalgésico, pirético e inflamatório