Aviso aos pacientes: este blogue é antianalgésico, pirético e inflamatório. Em caso de agravamento dos sintomas, escreva aos enfermeiros de plantão.
Apenas para administração interna; o fabricante não se responsabiliza por usos incorrectos deste fármaco.

Letters from Iwo Jima — Clint Eastwood

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Vai ver este filme porque:

– Passas menos tempo na blogosfera, o que só te faz é bem.
– Tens uma razão para desligar o computador. Ou o televisor. Ou o DVD. Ou o IPOD. Ou a Playstation. Ou, nalguns casos, isto tudo ao mesmo tempo.
– Sais de casa. E, quando sais de casa, a tua casa agradece, pois as casas também precisam de estar uns tempos a sós.
– Aproveitas a ocasião para convidar um grupinho para ir contigo. Ou aquela pessoa que brilha mais do que o ecrã. E que até pode estar a viver contigo. E que continua a gostar, muito, de convites para ir ao cinema. Especialmente se vierem de ti.
– Recebes, por uma ninharia, magistral obra de arte de um homem que fará 77 anos em Maio, o que lhe deu já algum tempo para ter juízo.
– Aprecias o talento de Ken Watanabe. E o de Kazurani Ninomiya.
– Confrontas-te com uma questão fotográfica: é um filme a cores ou a preto-e-branco? A preto-e-branco não é, a cores não parece. Talvez seja um filme a cores em preto-e-branco.
– Descobres que todos os soldados, independentemente do posto ou do exército, são filhos da mãe. E gostam de o ser.
– Aprendes que a guerra é uma continuação natural da economia. Que a guerra é também uma indústria. E, por fim, uma feira.
– Contemplas esta intuição: sagrado é todo o solo onde vertemos o sangue. Mesmo o sangue invisível, mesmo o solo invisível. E começas a não deixar que te escolham as guerras.

«É VOCÊ O MEU PAI?»

Os autores do Aspirina têm acesso aos bastidores do blogue. Nada de transcendental, nem – habitualmente – de muito excitante. Mas ele há casos.

No post de 12 de Janeiro sobre as «lampreias», alguém – certa Sue – colocou, dias depois, um apelo. E, ontem ainda, informava que vem «todos os dias» ver se chegou resposta.

Como o Aspirina serve – também – para facilitar a vida, aqui se publicita, com este nosso discreto destaque, o apelo de Sue. Tal e qual. Com a sua grafia. E com a sua esperança.

janeiro 22, 2007 01:15 AM

Ola pessoal!
Feliz ano novo a todos aqui que sao adeptos!
Hora bem!
Estou a procura desde… nao sei quando do meu pai, Carlos Rodrigues Costa de Febres. Posso vos pedir este favor, querem me ajudar? Aqui encontrei muitas coencidencias com ele. O peixe, o mar, o estrangeiro…sao coisas que sei. Pai, se me leres, qual que sejas o que fizeste, sou tua filha Susana, nao te esqueceses de mim, porque vivo com sodades tuas.A Ultima vez que te vi, fui quando tua primeira neta Sydney Claudia (minha filha) nasceu. Eu vi tua imagem tua cara na Sexta feira 17 de dezembro 1999 e tu fizeste ano no dia seguinte. Tens um neto tambem Nils nascido uma sexta feira 22 de fevereiro de 2002 em Paris. Eles nao te conhencem mas falam de ti.Temos fotos, mas as imagems sao frias e sem sentimentos e carinhos. Eles tem esperança de te conhecer e eu de te fazer esta prenda, nos tres. Sou Susana Maria Santos Rodrigues Costa com meus meninos Sydney e Nils

fevereiro 17, 2007 03:49 PM

Boa tarde!
Venho aqui todos os dias, em vao, espero mesmo uma resposta.
Deixe meu email a vista : suebysue@msn.com assim se calhar e melhor, pois nao?!
Boa continuacao a todos!
Bye

Exageros familiares – 2

«Dantes não havia assim estes maus-tratos de crianças».

É mero efeito (e efeito benéfico) de uma sociedade mais aberta. Simplesmente, agora crescidinhos, vêm-nos o arrepio, e o susto, de termos estado, um dia, vulneráveis.

Conhece outros «exageros familiares»? Conte-nos.
Se minimamente nos reconhecermos, pomo-los em destaque.

Crónica para um menino que também perdi

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Escrevo-te, André, esta crónica triste descendo a Avenida Fontes Pereira de Melo, no mesmo lugar onde há vinte e quatro anos chorei as lágrimas mais quentes e mais grossas pela morte do teu irmão Paulo. É esta estranha e repetida geografia citadina que me leva hoje a recusar as lágrimas e pensar em ti não no passado mas no presente.

Tenho em casa, algures perdida numa gaveta, mas não perdida na minha memória, uma fotografia que tirámos na eira da casa da tua avó. É uma fotografia a preto e branco como, afinal, são todas as fotografias porque na verdade o nosso mundo não é a cores mas sim a preto e branco. Como aquela fotografia em que estamos todos felizes depois de um almoço de festa, cozinhado naquele fogão que é um monumento culinário e naquela cozinha que é um santuário da gastronomia. Mais do que felizes, estamos juntos, todos juntos à volta da festa de aniversário da tua avó que eu abusivamente resolvi, entretanto, tomar como minha.

Era Abril, o mês de todas as esperanças, depois de tantos anos de notícias censuradas, de músicas proibidas, de filmes cortados, de ruas sossegadas e de prisões cheias. Circulo hoje de mãos nos bolsos, cheio de frio e atónito perante a notícia da tua morte em Paris e a Avenida Fontes Pereira de Melo, onde soube da morte do teu irmão Paulo em 1982, esta avenida, transformou-se, de repente, num quadro cor de cinza onde o teu nome está escrito e não se apaga.

Quero que saibas, André, que continuamos todos naquela fotografia a preto e branco tirada à volta da avó na eira numa tarde de sol em Abril. Vamos continuar todos nessa fotografia porque ao lado da avó somos felizes e não há preço a apagar nem pelos beijos nem pelas lágrimas.

José do Carmo Francisco

Para um retrato de Fernanda

Nos olhos de Fernanda existe e permanece uma melancolia serena, mas vigiada por intervalos de alegria. São intervalos de alegria as viagens e os encontros. Na Índia, na Etiópia, no Egipto, em São Tomé e Príncipe, no Dubai ou em Marrocos, as viagens são um apelo difícil de recusar. Por isso Fernanda viaja no tempo e faz crónicas modernas de lugares antigos, lá onde o som das caravelas sulcando o oceano ainda persiste nos búzios entre os recifes, as areias e as dunas das praias mais quentes.

Os encontros começam nos almoços ruidosos onde a ementa principal é a troca de testemunhos e de opiniões. Continuam entretanto, tarde fora, entre os licores mais doces do Inverno e os refrescos mais apetecidos do Verão. Nos olhos de Fernanda existe e permanece uma melancolia serena, mas vigiada por intervalos de alegria. Por isso, quando se despede e a sua sombra se perde no fim da rua perto do Teatro Nacional, apetece parar o tempo dos relógios e fixar um tempo interior onde seja possível não o desgaste mas a permanência. Para que Fernanda fique e seja o ponto de encontro entre a memória e a alegria.

Nos olhos de Fernanda há o apelo da água. A mesma água de onde saíram os sons que animam todas as orquestras do Mundo e todas as notas que povoam as pautas de todos os músicos. Os olhos de Fernanda são a estante onde se projecta e repousa uma música muito antiga mas sempre pronta a subir do lugar da escrita até à sua arte final, cumprindo assim a tarefa principal de todas as melodias. Ou seja: trazer ao coração dos homens um tempo feliz mesmo que essa felicidade seja veloz. Mesmo assim valerá a pena toda essa brevidade.

José do Carmo Francisco

Borralho do Referendo — “ainda ninguém”

Durante a campanha, que começou mediaticamente em Novembro/Dezembro, cada lado apresentou quase todos os argumentos legítimos, e ainda uma imensidade de ilegítimos. Ao se chegar ao período oficial, as últimas duas semanas de intenso e ubíquo debate público, coabitavam a inevitável saturação e um fenómeno curioso: os iluminados de última hora. Tal como em Jerusalém, onde alguns se descobrem Messias antes de se descobrirem internados, foi comum encontrar personalidades que usaram profeticamente a fórmula “ainda ninguém”, seguida de vocábulos variáveis relativos a pensamentos e discursos inauditos. Foram protagonistas de súbita iluminação, onde estaria em causa ver o problema segundo um especialíssimo ponto de vista — o seu, acabadinho de pensar e de imediato revelado. Eram argumentos com ferro decisório para converter o opositor ou reduzi-lo a má vontade. O Fernando até nos deixou (involuntariamente) um exemplo disto, vindo da pena de Miguel Sousa Tavares. Mas eu assisti a vários, o mais caricato deles com a Clara Pinto Correia. A senhora começou a berrar e a agitar furiosamente os braços, provocando um vórtice de pânico que os restantes participantes nesse debate, mais respectiva jornalista, deixaram gravado nos seus lívidos e paralisados rostos.

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Magna Magnani

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Nesta sexta-feira passou na Cinemateca L’Amore, de Roberto Rossellini. Sala cheia e vedetas, Paulo Rocha em cadeira de rodas, João Botelho bonacheirão, outros da indústria, outros do circuito, outros. Todos para ver dois filmes num; mas o melhor é escrever “dois filmes numa”, Anna Magnani a uni-los. O primeiro, Una Voce Umana, é a adaptação do texto de Jean Cocteau, La Voix Humaine (1930). São 35 minutos de rosto. Nesse rosto há uma voz, contínua, opressiva, desesperada — precisa é de ser vista, a voz, para se conseguir escutar. O segundo, Il Miracolo, tem argumento de Fellini; o qual também se estreia na representação, algo que só iria repetir em 1982. É um marco na história do cinema, um milagre este Miracolo, por mais razões do que aquelas que me cabem no verbo e no texto.

Uma pobre de espírito, indigente, delirante, cruza-se com um melífluo sátiro, mudo e quedo, que a embriaga e viola. Descobrindo-se grávida, reclama uma paternidade divina, incônscia outrora agora. A comunidade humilha-a, não quer santos na terra. E agride, expulsa a louca. Ela foge para as alturas, para o refúgio de uma igreja. Mas, nas alturas, até as igrejas estão vazias. É a solidão completa. E nela, na solidão dela, nasce a alegria. Não do seu corpo, mas pelo seu corpo. Do seu corpo só o seio que tira para dar a uma boca que chora e faz rir de espanto.

Ter este filme alegórico, telúrico e superlativo — uma narrativa que se corta no fio da navalha que atravessa e cujo sangue escorre em nós; filme intempestivo do fundador do neo-realismo, realizado 2 ou 3 anos depois do fim da Segunda Guerra — sido exibido nas vésperas do referendo, só acrescentou pathos e pungência ao momento.

Há um certo tipo de opinião que reprova as escolhas de Bénard da Costa para a Cinemateca, ou seja lá para o que for. É uma opinião que se crê culta, mas não o é, que não gosta de filmes anteriores a 1960, porque nem sequer os entende, e que talvez um dia se imponha autoritária. Por isso, porque o Diabo anda sempre a tecê-las, o melhor é ir à Cinemateca no dia 21 do corrente. Volta L’Amore, volta uma experiência de um tempo em que ainda havia pessoas e quem as filmasse.

Anna Magnani, a mais funda expressão do feminino no cinema? Sim, claro. E transparente.

Dies irae

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O Abrupto até em terramotos é bom. E não em último lugar pelos seus correspondentes. Veja-se o que escrevia, de Faro, Sérgio de Almeida Correia.

A natureza é insondável e não há maior sensação de pequenez, impotência e inutilidade do que aquela que nos atravessa durante um tremor de terra. Só espero que agora não venha aí uma dessas almas da campanha do “Não” dizer que este foi um primeiro sinal da ira divina por causa do resultado do referendo de ontem. Num país em [que] o clero ainda ameaça excomunhões automáticas por delito de opinião tudo é possível, até terramotos por encomenda.

Devo dizer que tive, de imediato, o mesmo pensamento. Não do castigo, mas do clero.

«Onde há amor, não há aborto»

A comentadora que assina Sininho escreveu isto, que importa ‘puxar’ para aqui.

Tenho a sensação que, neste momento, muitos homens sentem um “aperto” ao pensar que, numa situação futura, poderão ver a sua parceira a tomar essa decisão [de interromper a gravidez] de uma forma autónoma, perdendo eles o direito a participarem nessa decisão tão grave e, por fim, irreversível.

No entanto, como mulher e mãe, gostaria de dizer que a maioria das mulheres que aborta, fá-lo por se sentir só, abandonada pelo seu parceiro.

Fá-lo por medo de não conseguir suportar a imensa responsabilidade de colocar neste mundo um ser, sozinha. Fá-lo porque sente essa responsabilidade muito antes do homem, à medida que o seu corpo se transforma. Fá-lo por falta de amor, diálogo, compreensão, apoio… Onde há amor, não há aborto.

Sininho

Com 8 anos e 8 meses de atraso

Recordo-me bem da surpresa da vitória do NÃO em 98. Ninguém imaginou que tal fosse possível, tirando os que nada percebem das situações onde se encontram. O voto da rua, a minha — urbana, jovem, classe média —, era maciçamente pelo SIM. Quem se anunciasse pelo NÃO era visto com estranheza, até repúdio, como se fosse um anacronismo ambulante e falante. Não fazia parte do Portugal da Expo 98, do aparecimento da Optimus com a promessa de telemóveis para todos, da feérica abundância consumista de Guterres. E tal estado de ausência de espírito era também uma consequência da demissão dos nossos pais, os quais se tinham alheado da discussão desde sempre, desde a educação em casa que nunca fizeram. Por outro lado, a ideia de que Portugal era um país católico configurava uma grotesca anedota. Portugal já não é católico, sequer cristão, desde o século XIX, desde 1820 — e é para ser brando, pois o povo, em nenhum período da nossa História, se mostrou muito católico, e as elites ainda menos. Acontecia, apenas, que as igrejas e os clérigos faziam parte da economia e da vida social; coisa bem diferente de terem sido influenciadores de ideias e comportamentos, pois não o foram. Não havia estádios, cinemas, televisão, discotecas, centros comerciais, havia igrejas, missas, festas religiosas. Era só isto, não tem mistério.

Pois a rua não mostrava transcendência, e a única imanência era a da mulher grávida, senhora da vida e da morte. Por isso as sondagens diziam em 1998 o que os resultados deste domingo de 2007 repetiram: a maioria dos portugueses, se obrigada a tomar uma decisão, escolheria a despenalização total do aborto. Tudo bem, venceu a democracia, dirão os democratas. E se o NÃO tivesse ganho? Alguns dos que na noite passada louvaram o discernimento dos portugueses votantes teriam vindo falar em manobras e conspirações das forças ocultas, não teriam sido capazes de encontrar uma vitória comum na sua derrota pessoal. Também o ódio surdo à democracia faz parte da democracia, essa fêmea que a todos alimenta.

E agora? Agora, alegremo-nos com a subida da participação num referendo. Portugal não tem uma cultura de discussão intelectual, apenas de conflito pífio. As mudanças geracionais demoram gerações a acontecer, se não estou em erro. Por isso, haja paciência, a maior de todas as virtudes. Demora — e pede um tipo especial de intelectual — a criar uma comunidade de pensadores. Os pensadores precisam de aliar ao consumo da informação a disponibilidade para sacrificar o seu produto. Os debates são verdadeiras lutas, onde se corre o risco de se ser ferido numa convicção, ver mutilado um raciocínio, morta uma ilusão. Entretanto, nem a escola, nem a universidade, nem a imprensa se interessaram por ensinar os portugueses a pensar. Claro, os políticos ainda menos se interessam, pois os nossos actuais políticos sobrevivem à custa da manutenção do charco onde sobra em lama o que falta em profundidade. Acreditei, e ainda acredito, que os blogues podem contribuir para essa causa do crescimento intelectual. Daí, os textos reflexivos e polémicos que foram saindo, e vão continuar a sair, relativos a estas fascinantes temáticas da nossa vida comunitária.

Quanto ao aborto, todas as boas vontades estão unidas nos mesmos propósitos, e o futuro assim o mostrará; pouco importando onde deixaram hoje a cruz, ou para onde a carregaram.

A propósito de uma estrela global

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Cristiano Ronaldo anda nas bocas do Mundo. Não só porque acaba de festejar 22 anos, mas também, e principalmente, porque segundo o Diário de Notícias do dia 10 de Fevereiro vale 50 milhões de euros, não enquanto pessoa mas enquanto «marca». Fala-se da hipótese de ele sair de Manchester por mais de 85 milhões de euros. Gostaria de convocar aqui, não opiniões sobre se ele, Cristiano Ronaldo é ou não, uma estrela global como foram Best e Cantona e como é ainda David Beckham, mas sim um poema. Nada mais. Jornalista que fui da redacção de O Sporting desde Agosto de 1988 a Novembro de 2006, lembro-me bem de ele chegar da Madeira com apenas 11 anos de idade. Foi recebido no lar do jogador por Leonel Pontes e Paulo Cardoso. Percebia-se logo que ele era diferente, pois só era infantil na classificação etária. Como jogador não era nada infantil. Entrevistei-o muitas vezes no fim dos jogos. Mas vamos ao poema.

Fala de Leonel Pontes a Cristiano Ronaldo

Tu comias uma banana dentro de um pão
E nunca paravas de jogar em toda a Ilha
Nos torneios diários de futebol de salão
Dando às equipas um toque de maravilha

Nas férias eu já não era o teu treinador
Mas o amigo sempre atento e preocupado
Procurando que te alimentasses com rigor
E seguindo os teus passos por todo o lado

Em Lisboa eu era então o teu motorista
E pronto a ir buscar-te a qualquer hora
Tu ligavas mal o avião chegava à pista
E nós ficávamos a falar pela noite fora

Agora tu fazes anúncios de publicidade
Não tens tempo para o treinador antigo
Mas nada destrói a força duma amizade
E nunca deixei de ser muito teu amigo

José do Carmo Francisco

Um «sim» doloroso mas decidido

Se havia um referendo em que eu queria votar, era este. Mas assim não quis o destino, com grande interferência minha, de resto. Não sou cidadão português, a minha opinião não conta aqui.

Eu iria, pois, votar. Por disciplina de cidadão, por ter feitos as contas de ser humano. E iria votar SIM. Com dez, com cem dúvidas pessoais. Mas nenhuma como votante. Eu explico.

Se uma mulher e eu tivéssemos engravidado, eu quereria loucamente ter aquele filho. Sucedeu-me duas vezes (minto, sucedeu uma vez, e vieram logo dois…), portanto sei o que se sente. Contudo, a mulher que comigo tivesse engravidado, mas sem ela o querer, teria a plena liberdade para decidir. Eu poderia beber ranho e lágrimas – mas ela decidiria. Acima de tudo, eu poria, pois, a liberdade dela.

Era esse «sim» pela liberdade da mulher – um «sim» doloroso, mas decidido – que eu daria amanhã.

Poderá alguém dá-lo por mim?

Fernando Venâncio

Esta, NÃO; outra, SIM

A nossa classe política voltou a prestar-nos um péssimo serviço, e escolheu uma pergunta errada para ir a referendo. Sabemos que a pergunta está errada quando vemos pessoas de bem, e cabeças de excelência, em lados opostos da querela, a darem o melhor de si enquanto intelectuais e cidadãos, sem lobrigarem qualquer acordo — sem conseguirem negociar uma solução. A pergunta, que vamos referendar pela segunda vez, é uma pergunta discriminatória e irresponsável, pelas razões que o debate explanou. Então, que redacção deveria aparecer no boletim, amanhã?

Por exemplo, assim:

Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção dos progenitores, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?

Aquilo que é do conhecimento até de animais e plantas, que há mais de 2000 anos que não se regista uma imaculada conceição, foi obliterado da problemática; numa desconcertante e perversa lógica que premeia o já absentista comportamento masculino. A pergunta a votos deposita na opção da mulher o fardo da decisão, parecendo (a tantos!) que esse poder assim consignado é libertador. Que cruel ilusão.

Para lá de ser grotesco estar a excluir o progenitor de todo o processo decisório, pois nem sequer teria de ser consultado ou reparado, o maquiavélico propósito confirma a actual discriminação: o aborto é um problema da mulher, e pronto. Resolve-se no hospital, na faca.

Alguns são rápidos a apresentar argumentos inanes, como esses relativos a eventuais progenitores ausentes ou desconhecidos, etc. Outros atacam com as situações de conflito aparentemente insanável, onde o homem procuraria obrigar a mulher a levar avante uma gravidez malquerida, ou o inverso. Estrebucham como se não houvesse soluções éticas para os casos concebíveis. Como se o edifício legal não fosse mastodôntico precisamente por querer cobrir todas as alternativas e procurar ter respostas bondosas segundo uma hierarquia de valores constitucional. Como se não fosse óbvio que as excepções devem confirmar a regra. Enfim, há mesmo quem não pense antes de falar e escrever, e continue a não pensar depois de ouvir e ler.

Mas ainda poderíamos ter uma melhor pergunta:

Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção dos progenitores, em resultado de acto médico, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?

Quem se lembrou de referendar um período de tempo, qualquer que ele fosse, ou é um patusco a gozar com a malta ou um tonto perigoso. Como podemos nós, leigos em tudo o que diga respeito a uma aferição do que está em causa no calendário abortivo, decidir em consciência? Que raio de pergunta é esta que nem sequer consegue unir os especialistas quanto às implicações das semanas escolhidas? Só este aspecto da questão, se todos votassem em honesta consciência, teria de levar à rejeição, pois é imoral concordar com uma premissa da qual se desconhecem as consequências.

O que haveria a fazer seria confiar à medicina e aos médicos o ónus da decisão. Imediatamente se esvaziaria o absurdo sobre o qual querem que tenhamos opinião decisiva.

E, finalmente, podíamos ter tido a felicidade de encontrar a melhor de todas as perguntas, e aquela à qual só se poderia responder SIM:

Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção dos progenitores, em resultado de acto médico, num estabelecimento de saúde legalmente autorizado, e após consulta de apoio à decisão?

É isto que todos os justos querem, sejam do SIM ou do NÃO, crentes ou descrentes, mulheres e homens: que todas as mulheres que pretendam interromper a gravidez possam recolher esclarecimentos clínicos legítimos e apoios estatais de promoção da natalidade, tanto psicológicos, como sociais e até financeiros. E, de preferência, que estejam acompanhadas pelo progenitor, o qual é tão responsável pela gravidez como a mulher. Porque o maior de todos os problemas começa no isolamento da mulher que está em conflito com a sua gravidez. E esta pessoa, por todas as razões, encontra-se em risco elevadíssimo de errar.

Precisando: os progenitores exporiam o seu caso, podendo defender a opção de abortar. Se, após o processo de esclarecimento e avaliação por técnicos especializados, os progenitores continuassem decididos a abortar, bastaria que estivessem na posse das suas faculdades mentais para o fazerem. Aí, o Estado estaria a conferir o direito de abortar por troca com o dever de justificar e assumir a responsabilidade pela morte provocada. Parece altamente pedagógico, dissuasor do aborto e um incentivo à gravidez segura e digna.

Acima de tudo, parece o mínimo. Isto, quando pensamos no modo como o nosso dinheiro se esvai pela má gestão abaixo e pela corrupção acima. Parece o mínimo, e nem isso temos ou vamos ter. Coitados.

Duas questões

No Expresso de hoje, em artigo de opinião, e a propósito do referendo de domingo, Miguel Sousa Tavares aponta duas questões que, informa, não viu discutidas. Julgo que importa encará-las.

A primeira é que com tanta veemência no “direito à vida” de um feto que se transformará num filho não desejado, não ocorra pensar no direito oposto: o direito de uma criança não vir ao mundo quando aquilo que a espera é uma vida indigna e miserável. 2006 foi, entre nós, um elucidativo exemplo de casos desses: filhos abusados sexualmente pelos pais ou padrastos à vista das mães, assassinados e escondidos em parte incerta ou mortos à pancada, sem que as instituições do Estado, a sociedade civil e os piedosos militantes do ‘não’ absoluto tenham demonstrado ter a solução que nos convença que não teria sido melhor nem sequer terem chegado a nascer. Não tenho dúvidas de que existem anualmente uns milhares de abortos que não deveriam ter sido feitos. Mas existem também, infelizmente, muito mais pais que nunca o deveriam ter sido.

A outra questão conexa que eu gostaria de ter visto explicada pelos defensores do ‘não’ é a da sua atitude perante o suposto crime, que a mim me parece totalmente hipócrita. Se eles acreditam verdadeiramente que um feto até às dez semanas é um ser humano que, pelo aborto, estará a ser morto, por que é que, em lugar de proporem penas suavíssimas ou até a isenção de pena para este ‘crime’, não propõem antes, e com toda a lógica, o seu agravamento? Como se chama o crime que consiste em tirar voluntariamente a vida a um ser humano? Homicídio, não é?

Miguel Sousa Tavares

Este blogue é antianalgésico, pirético e inflamatório