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Apenas para administração interna; o fabricante não se responsabiliza por usos incorrectos deste fármaco.

Calicracia

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A palavra calicracia não existia antes de eu a ter inventado. É, pelo menos, uma ilusão que defenderei com unhas e dedos. E inventei-a para falar do reinado da candidata à Presidência francesa, Ségolène Royal. Quer ela vença ou perca a eleição, já ganhou. Ganhou a atenção dos jornalistas, dos homens, das mulheres e dos intelectuais de cepa clássica mais avessos a questões superficiais.

O que é novo na candidatura de Ségolène não é a temática do género. Mulheres com poder sempre existiram em alguns períodos da Historia, da mais antiga à mais recente. Nem sequer a coincidência de se ver a Alemanha, a França e os Estados Unidos com mulheres em posições cimeiras do sistema republicano será o que mais releva. A absoluta novidade, no caso da candidata socialista, consiste na primazia dada ao seu aspecto físico.

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De que falamos quando falamos de cultura

Bastou um rápido olhar às páginas de um jornal de Lisboa para me aperceber do estranho uso da palavra «cultura» e do adjectivo «culto» em diversos anúncios do mais diverso teor.

Na região de Setúbal procuram um casal de caseiros para uma quinta, mas exigem bons conhecimentos de língua inglesa. Alguém com uma menina deficiente para cuidar exige uma pessoa culta, jovem e livre de compromissos familiares para tomar conta da dita menina. Mais à frente é um cavalheiro (são sempre cavalheiros, não sei se já repararam…) que se proclama culto e deseja conhecer uma senhora culta com idade entre 40 e 50 anos para assunto sério. Para não haver empate há uma senhora (são sempre senhoras, não ficam atrás…) que se proclama também culta e procura um senhor entre 60 e 65 anos, igualmente culto e com vida estável para assunto sério.

Será tudo isto porque as pessoas se arrepiam com as respostas dos concursos televisivos onde a cultura é bem escassa e os resultados não mentem? Será porque a cultura, como a água potável, é um bem cada vez mais escasso na nossa sociedade? Todas as explicações terão a sua lógica. A relação das pessoas com a cultura é, em geral, complicada.

Há anos, recebendo eu convites para as diversas exposições da Biblioteca Nacional de Lisboa, questionei as pessoas do secretariado para não me tratarem por doutor, mas a resposta deixou-me sem resposta: para eles a lógica era outra. Sendo eu amigo do director da Biblioteca Nacional, não fazia sentido que não fosse também doutor. Os envelopes continuaram a conter esse título. De nada valeram os meus argumentos em sentido contrário. A lógica venceu a verdade.

Não sou doutor, mas sou tratado como tal. Afinal uma questão de cultura.

José do Carmo Francisco

Derrota

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Este foi o ano em que se impôs como obrigação moral da indústria cinematográfica americana atribuir o Oscar a Scorcese. Tratou-se de um movimento que assumiu contornos de cause célèbre, e de facto. Ora, o filme premiado não o justifica. Tirando o asqueroso Babel, é inferior a toda a concorrência. Um filme que se vê e se esquece, dando-se por bem empregado o tempo passado, mas é obra sem génio ou momentos de génio.

Para os poucos (na última contagem, restavam dois em todo o mundo conhecido, e lembro que já se conhece o mundo todo) que ainda esperam dos 5.830 eleitores da ACADEMY um qualquer critério racionalmente artístico, esta é a última chamada para a realidade. Os nomeados são apenas os beneficiários de um sistema que funciona tal e qual como a Misericórdia. Todos os anos há um orçamento de prémios para distribuir por quem der mais, e todos os anos há que escolher novos sortudos. Não tem nada a ver com qualidade, acontece é a qualidade conviver feliz com quem lhe paga mais, daí as eventuais coincidências. E são esses, os que pagam, que tentam também comprar os membros que têm os canivetes e os queijinhos na mão, usando um marketing desenhado para o efeito. O investimento mais do que compensa, pois o filmes nomeados e premiados ganharão um acrescento de rendimentos, directos e indirectos — estes últimos ainda mais importantes, pois valem negócios futuros.

Para mim, ver Martin Scorcese Oscar-dependente é triste. Porque é banal, venial. É uma ofensa, mesmo que involuntária, à memória dos que nunca entraram na história dos premiados e em cujas obras está o melhor da História do cinema. Do Raging Bull não esperava esta derrota.

O grande vizinho a Norte

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Na Galeria de Arte SARGADELOS, no Porto (galeria, e também loja de porcelana, sim, vá até lá, e veja o seu serviço de jantar, na sua mesa, quando você for rico…), está visitável, até 28 de Fevereiro, a exposição PORTUGAL E GALIZA: um passado comum. Fica na Rua Mouzinho da Silveira, 294.

Não é por nada, mas você podia ir lá, ir lá por mim – que vivo tão longe das coisas boas – e depois contar aqui. Tá?

O homem que levava os raciocínios até ao fim

Dos jornais que lhe passam hoje pela mão, que sobrará, que sobreviverá, daqui a uns tempos? Muito pouco. Mas a maior probabilidade, nisso, têm-na as crónicas, aquelas que você, leviano, desprezou ao passar das folhas. Sim, bastantes cronistas reúnem, depois, a sua produção. Está a ver: você vai ter segunda chance.

Não faço ideia se Paulo Moura, repórter do Público e estreante de romancista, algum dia reunirá as suas crónicas. Mas aqui lhe fica o pedido de que, venha ele a fazê-lo, não exclua «O homem lógico», a sua crónica daquele domingo de Fevereiro do ano – ah, tão longínquo – de 2007.

Quanto a você, visitante do Aspirina, não espere essa segunda oportunidade, que pode, sim, vir ainda longe. Volte a folhear o jornal. O impagável texto está (se a versão online confere) na página 46. Vá, divirta-se. Você tem esse direito.

Actualização 1

Afinal, o Público de hoje está grátis online. Aqui.

Actualização 2

… e portanto também aqui. Aqui. Em casa. Ora abra.

«Um idioma fascinante»

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Do Expresso de 24-II-2007

Introdução à História do Português
Ivo Castro
Colibri, 2006, 242 págs., €14,70

Durante vinte anos, a história do nosso idioma teve em Paul Teyssier, merecidamente, o autor de referência. Mas, em 2006, Ivo Castro publicou uma «muito ampliada» edição da sua Introdução à História do Português, e não custa prever para este livro um lugar cimeiro.

Os tempos estavam maduros para uma nova história da língua. Os trabalhos levados a cabo pelas investigadoras Clarinda de Azevedo Maia, Rita Marquilhas, Ana Maria Martins, Esperança Cardeira e pelo próprio Ivo Castro pediam, pela sua qualidade, uma obra de síntese. Ela aqui está. Uma das suas virtudes é a de, por sua vez, pedir por mais.

Seguimos os passos do idioma desde a sua longínqua e fascinante confecção no Noroeste peninsular até meados do século XVI. É este um momento fulcral, que encerra o período decisivo, e movimentado, do Português Médio, já descrito com garbo por Esperança Cardeira, num livro (Entre o Português Antigo e o Português Clássico, 2005) que desenvolve teses avançadas por Castro: as da transição dum português de criação e moldes galaicos para uma norma nova, elaborada e difundida por Coimbra e Lisboa (aonde o idioma chegara como língua estrangeira), e isso com o estímulo dos cultos Infantes de Avis. Esta ancoragem de fenómenos linguísticos na geografia e na história social produz efeitos, entre nós, inauditos.

Vantajosa é, também ela, a ponte lançada à história literária, que acompanhamos com detenção até à «língua» de Gil Vicente, aqui com recurso às pesquisas de Teyssier. Surpreendente, e quase enternecedora, é a resistência do Infante D. Pedro, na década de 1430, a uma renovação cultista do léxico, que acabaria por dar-se. São estes nichos de tensão que tornam emocionante o que poderia ser simples relação de factos.

Ainda assim, a modéstia do título (uma «Introdução») justifica-se. A segura e detalhada marcha estaca por 1600. Os últimos quatrocentos anos da história do idioma ocuparão escassas páginas. É como se a dinâmica da língua tivesse, então, travado a fundo, e Garrett ou Vieira ou Fernão Mendes Pinto fossem, numa ditosa acronia, nossos contemporâneos. Mas há outros problemas. Visto que o livro vive (e vive bem) dos «processos» que o idioma atravessa, falecem-lhe as visões de conjunto, os patamares, os «estados de língua» atingidos. Depois, tão pormenorizado é o tratamento da variação fonológica quanto é sumário o do léxico. Isso sucede em histórias de outras línguas. Mas um exame aturado e objectivo do português médio mostraria (é um exemplo de surpresas) quanto suposto latinismo foi mera absorção de elaborações castelhanas. Da língua da Meseta importámos, ainda, e em boa consciência, largas dezenas de locuções e uma inumerável fraseologia. Para o panorama lexical de épocas mais chegadas, dispomos (e uma grande história da língua será sempre empreendimento colectivo) dos elucidativos estudos de Mário Vilela e de Telmo Verdelho. Como dispomos, para fenómenos sintácticos recentíssimos, das investigações de João Andrade Peres.

A maior perplexidade surge, todavia, da persistência de um tabu: o que envolve a ruptura, entre todas decisiva, que teria fundado o português como língua diferente do galego. A questão é séria. Enquanto essa ruptura não for identificada e descrita (e ninguém até hoje o ousou), galego e português continuarão a ser, para efeitos científicos, a mesma língua. E a própria existência do português como língua independente será da ordem do apriorismo político, dos aconchegos pátrios – mas decerto não da ciência.

Simplesmente, e tanto é certo, esta história do nosso idioma sob o olhar de Ivo Castro (no Expresso de 7/1/2006, comentando versão anterior, Joaquim Manuel Magalhães falava em «afectuosidade e encantamento») é um reinício auspicioso. Aguardamos uma prossecução, curiosos por descobrir aí, um dia, o espelho do nosso tempo.

Fernando Venâncio

Feeling the feeling

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É um ilustre anónimo, de quem tenho a sorte de ser amigo. Designer gráfico de profissão, poeta à solta por vocação. Os seus versos são visões alucinantes que compõe com a rudimentar câmara de um telemóvel. Luís Castro mostra-nos que a beleza é excessiva, mas por estar em todo o lado. Ou por estar nele, que a recria por onde passa.

No seu non friction, logo abaixo do nome, encontra-se uma citação retirada de um diálogo do THE SINGING DETECTIVE, a única série televisiva que merecia ganhar óscares, e muitos. Só por esta secreta celebração, já apetece lá entrar. Pelas imagens fotográficas que parecem pinturas pós-realistas, não apetece sair.

Dores bem gemidas

De Mínimo Ossário, série de sonetos de JOSÉ LUIZ TAVARES, e mais exactamente de «sonetos para o meu pé esquerdo» – meu, dele – seleccionámos este.

Flictena, eritema, eczema — pra soneto
não serão baixo tema? Vertical, porém,
no comum silêncio que do deus é desdém,
na manhã espigada soa o médico decreto.

Minha dor bem gemida (envergonhado
embora do sorriso da enfermeira castelhana)
não seria bem maviosa ária siciliana,
mas alento do que o osso traz quilhado

por mor de mal medido salto. Mas amanhece
num solo de Turina, à química do sonho
entrego os prenúncios da dor, pois socorro

são as mãos da jovem castelhana. Inda fosse
só o calor fingido de um dezembro tristonho,
ante tão sinestésica aparição, todo eu coro.

JOSÉ LUIZ TAVARES

Uma trompete no coração da noite

Na noite em que festejo discretamente os meus 56 anos, um acaso leva-me a colocar no leitor de CDs um disco de promoção da música portuguesa apresentado no Festival do MIDEM em Cannes. Trata-se de uma edição da Sociedade Portuguesa de Autores e inclui músicas tão diversas como «Venham mais cinco» de Zeca Afonso, «Vila Faia» de Thilo Krasmann, «Amélia dos olhos doces» de Carlos Mendes e Joaquim Pessoa ou «Queda do Império» de Vitorino. Os músicos são quatro, mas os outros que me perdoem. Há um não sei quê de especial na trompete de Tomás Pimentel. É algo de muito familiar para quem nasceu numa casa de músicos filarmónicos e desde muito cedo aprendeu a ver o avô a lavar a trompete com água morna e bolinhas de chumbo. O tom puríssimo e alto de um som que guardei na minha memória afectiva regressa de súbito ao meu ouvido. Tomás Pimentel pega na trompete e espalha os mesmos sons quentes e tensos que o meu avô tocava só para nós depois de lavar a trompete com água morna e bolinhas de chumbo. Zezinho, queres ouvir o «Teodoro leva-me ao sonoro»? – perguntava o meu avô. E eu dizia logo que sim. Outras vezes era a moda da Rita: «Esta é que era a moda / que a Rita cantava / lá na Praia Nova olaré / Ninguém lhe ganhava». Tomás Pimentel lembra-me o meu avô por causa do modo firme e delicado, impetuoso e suave, alto e sussurrante como faz sair da trompete os sons das mais velhas canções portuguesas. Também o meu avô usava a surdina apenas quando a pauta musical o determinava. O som da trompete deve ser sempre amplo e cheio, forte e intenso, timbrado e solene para que a música possa ser um intervalo de festa na monotonia cinzenta da nossa vida.

José do Carmo Francisco

Borralho do Referendo — “as mulheres”

As mulheres são fodidas. Não sei se, mais de 12 anos após o lançamento d’O AMOR É FODIDO (da então, ainda, coqueluche da alta cultura pop), alguém se perturba com este vernáculo. Seguramente não os responsáveis da SIC que permitiram ao Fernando Rocha um ciclo de glória no débito de palavrões frente às câmaras. Mas a verdade é para ser dita com todas as sete letras, e acontece que as mulheres são fodidas. São fodidas em casa e no emprego. São fodidas de manhã e à noite. São fodidas deitadas e de pé. São fodidas em qualquer lugar, até num referendo.

Alguém disse que, numa cultura onde se venera uma mulher que engravidou sem ter relações sexuais, a sanidade mental na relação entre os géneros nunca mais se iria recuperar. Os paradigmas dualistas, a mulher santa e puta, têm entretido párocos, escritores, artistas plásticos, cineastas, advogados, psicólogos, polícias e taberneiros. Só que nós, herdeiros dos mitos católicos, não somos por isso menos do que os outros, os que não tiveram tal sorte. A condição feminina é vítima do incondicional masculino em todo o Mundo e desde que há memória. O século XX, no tanto que alterou, não resolveu o assunto. As discriminações continuam, como revelam ano a ano os índices comparativos de salários, cargos de chefia empresarial, poder político e, imagine-se, investigação médica. Veremos o que mudará pela força da onda sociológica, quando houver mais mulheres licenciadas do que homens para os mesmos lugares, e as posições forem maioritariamente ocupadas pelo belo (e agora também inteligente) sexo.

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Os Fogos e o Carbono

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Os danos causados por ignorância são mais propriamente chamados erros.

Aristóteles, Ética a Nicómaco

Em 1971, numa comunicação apresentada na Suécia, Lester Match afirmava que os cálculos, tendo em conta as trocas de dióxido de carbono (CO2) entre a biosfera e os oceanos, previam que a concentração de CO2 na atmosfera no ano 2000 atingisse as 380 ppm (partes por milhão). O Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, no seu relatório apresentado em Fevereiro de 2007, refere que o CO2 é a componente antropogénica mais importante dos gases com efeito de estufa, e que a sua concentração atmosférica aumentou de um nível de cerca de 280 ppm, por volta de 1750, para um valor de 379 ppm em 2005.

Não foi portanto por falta de previsões atempadas que se não se contrariou o estado actual e o aquecimento global emergente, embora não seja despicienda a natureza conservadora dos testes (de hipóteses) estatísticos, tornando necessária uma enorme evidência para concluir, como hoje é adquirido, que é verosímil que as alterações climáticas ocorram por influência do homem.

Portugal, no Plano Nacional para as Alterações Climáticas (PNAC 2006), aprovado pelo Governo em Agosto de 2006, apresenta para 2010 (o ano médio do período 2008-2012) a expectativa de sequestrar o equivalente a cerca de 3,36 milhões de toneladas de CO2 por via das actividades de florestação, reflorestação e desflorestação, previstas no nº 3 do artº 3º do Protocolo de Quioto — de contabilização obrigatória — a que se juntam outras 3,69 milhões de toneladas de CO2, associadas ao nº4 do mesmo artigo, relativas a políticas e medidas adicionais de gestão florestal, agrícola e de pastagens. No total é o equivalente a mais de 7 milhões de toneladas de CO2 por ano, que se prevê possam ser retidas nos sumidoiros vegetais, por acção da fotossíntese, complementada por boas práticas de gestão e biotecnologia. Este número é apresentado como um resultado final, líquido, que permite descontar outro tanto nas emissões industriais.

Interrogo-me, no entanto, se as emissões directas dos fogos florestais terão sido devidamente contabilizadas nesse balanço. Tomando como referência o cenário de 100000 hectares (ha) ardidos por ano, e os valores médios de conteúdo de carbono para as diferentes componentes dos ecossistemas silvestres na Europa, infere-se uma estimativa grosseira: de que essa área ardida pode corresponder à emissão de cerca de 8 milhões de toneladas de CO2, ou até mais. Embora a economia dos fogos florestais ainda não internalize as perdas de biodiversidade ou a erosão dos solos, o mercado do carbono permite estimar o valor dessa emissão bruta: tomando como referência €12 por tonelada de CO2 (o valor utilizado no PNAC 2006), aquele volume de emissões dos arvoredos queimados perfaz quase 100 milhões de euros. Os mais de 400000 ha ardidos em 2003 teriam assim um valor estimável de cerca de 500 milhões de euros, só em carbono emitido!

De facto, não se vê porque é que a indústria do fogo, uma metáfora — alguns dirão: uma metonímia — para designar o conjunto de interesses e atitudes que relevam de uma cultura pirófila, não deve ser objecto do mesmo rigor de aferição que as indústrias propriamente ditas. Certo é que se pode admitir uma baseline própria dos ecossistemas mediterrânicos — em 1985, António Manuel de Azevedo Gomes, deputado socialista e catedrático do ISA, afirmava que 10000 ha seria o montante normal de área ardida no país, por ano, tendo em conta o clima, as espécies e a história. Hoje, com o aquecimento global, e a expressão crescente do eucaliptal, esse limiar será outro. Mas tem custos que não devem ser ignorados e, dir-se-ia mesmo, desde já acautelados, com investigação apurada e medidas de prevenção. Convém não esquecer que mesmo em Janeiro arderam 100 ha. Como será o Verão?

Py

Nota: o nosso amigo Py fez a gentileza de aceitar o convite para publicar aqui, no segredo dos deuses (nós), um texto originalmente escrito para o PÚBLICO. Tomei a liberdade de escolher uma imagem que foge ao assunto central, esperando não vir a arder no Inferno por causa da duvidosa opção.

O PÚBLICO mudou; mas para melhor?

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É sempre injusto avaliar mudanças estéticas e conceptuais nos primeiros dias. O choque afecta o entendimento da nova organização. E é igualmente injusto esperar demasiado; injusto para o nosso sentido crítico fatalmente acomodado, entranhada a estranheza. Para começo de conversa, que poderia ser já conclusão, não se ganhou nada de útil ou relevante com a “renovação”. Talvez pelo contrário.

A questão é fascinante: conseguirão os jornais resistir à Internet? O pânico está instalado. Todas as forças apontam para a bancarrota do papel-notícia; onde se incluem as razões evidentes — um jornal diário sai com um dia de atraso num ambiente empanzinado de informação, e isto numa cultura que promove a reacção imediata, que automatiza a cognição, que impõe um modelo restritamente visual e transitivo — e as emoções subterrâneas — um jornal é anti-ecológico, um desperdício que não se recicla e, last but, now, not least, suja as mãos e a casa. Na era da ubiquidade digital, e da instantânea saturação mediática, os diários carregam a vetustez hebdomadária e os semanários evoluíram para embrulhos de revistas. Num certo sentido, a imprensa em papel deixou de veicular noticias, reduziu-se ao comentário (e, com sorte, à investigação, mas já lá vamos). É este o cenário, em versão minimalista, para o drama do PÚBLICO e dos outros jornais generalistas.

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Retrato breve de M. R. D. L.

Cansa os olhos nos vidros do écran
Cansa os dedos nas letras do teclado
A voz mantém a frescura da manhã
E o rosto é um mapa do seu passado

Quando não tinha as horas sozinhas
Quando passava as noites em vigília
Era a mãe das irmãs e das sobrinhas
Tal como foi dos rapazes da família

Abria a porta duma casa pequenina
Como se fosse milagre de hotelaria
E naquela sua pensão clandestina
Quanto mais se cansava mais sorria

O seu quarto não tem porta fechada
A sua voz continua firme e quente
Uma solidão todavia tão povoada
Que se multiplicou em tanta gente

José do Carmo Francisco

Not Obstante

É um nome que se encontra pouco: Jallapão. Não sei porquê, pois fica no ouvido e merecia ser mais popular. Talvez seja apenas artístico. Aliás, é um nome que nos encontra a nós, se os deuses nos concederem a honra. Jallapão canta e tem vídeos. Jallapão oferece-se também num site. Um site como eu nunca vi outro igual, nem sei se voltarei a ver. Não está em causa ajuizar se este artista canta bem ou muito bem, assim ou assado. Jallapão está acima dessas futilidades. Este exemplo, por exemplo, é o que de melhor tenho visto em vanguarda de videoclips, superando de longe as sugestões do nosso JPC. Constate-se que tudo, mas tudo, é feito para simular um ecrã de televisão a ser filmado. Se isto não for a derradeira definição do pós-modernismo, vou ali e já não venho. Num plano mais pessoal, gostava de dizer que acredito no cantor e nos sentimentos que a letra desta canção expressa. Sim, acredito naquele amor, essa “grande emoção”.

Todavia, não vos iria incomodar apenas por causa do meu gosto. Acontece que Jallapão é um artista que sabe cuidar da imagem, e isto é particularmente importante para essa malta nova que anda a pôr vídeos no YouTube, e sabe-se lá mais aonde. Convoco a vossa atenção para a mensagem que encima os comentários ao vídeo. Repare-se na gentileza do artista, nos bons modos, na clareza com que estabelece um critério que ajuda qualquer um a encontrar o conteúdo dos comentários a fazer; mas, o que me surpreendeu, e do qual ainda não recuperei, foi o cuidado em ter uma versão também em inglês, provando que esta coisa da globalização não o vai apanhar descalço. Ouso dizer que é nesse texto que se descobre a suprema criação de Jallapão, not obstante a vastíssima obra já produzida.

Gandim

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Pode-se procurar aqui, aqui, aqui, e não se acha. Pode-se consultar o Houaiss ou o Dicionário da Academia, nicles. A palavra gandim ainda não se passeia por eruditas paisagens. Mas ela existe desde a minha adolescência (pelo menos). Cresci ao lado da Musgueira (e da Norte, bem pior do que a Sul), dei-me com essa gente, os musgas, a que se juntavam as tribos próximas da Charneca e das Galinheiras, uma cintura urbana de índios. A Musgueira Norte era um pardieiro de barracas, criada pelas deslocações forçadas dos habitantes miseráveis que viviam nos locais afectados pelas obras da ponte, a tal que o povo baptizou Sobre o Tejo para não ter que sujar a boca. Era um território fora-da-lei, engrossado com migrações e imigrações variadas. Era, ’tá visto, um viveiro de gandins.

O termo gandim será (hipótese) um neologismo formado por deriva fonética de gandulo. Adentro dos códigos axio-gramaticais do meio, um gandim seria um gandulo ainda pior. Pior em quê? A ajudar velhinhas a atravessar nos semáforos não seria com certeza, por falta de tempo. Os gandins eram seres atarefados, com uma agenda repleta de assaltos, venda de droga, consumo da mesma, proxenetismo, rixas e vinganças, decoração de interiores. A parte da decoração de interiores talvez até seja a mais relevante; pelo menos, do que me foi dado ver. Entrei em várias barracas da Musgueira, putrefactas ao olhar exterior, de fazer inveja à mentalidade consumista da classe média assim que se passava a ombreira. Lá dentro, avós despachadas e risonhas, rodeadas de electrodomésticos de última geração e outros mimos confortáveis, vendiam saquinhos de pó, ou barrinhas de haxixe, aos meninos betinhos que ali se abasteciam. Faziam-se encomendas de peças de automóvel, rádios, artigos variados e variados serviços. Dizia-se, por exemplo, “quero uma mota assim e assim”, e dias depois ia-se lá levantá-la ou ela era entregue ao domicílio. A Musgueira Norte era uma central de apoio à desburocratização do acesso à riqueza e ao delírio.

Há pouco, descobri com gosto que o vocábulo chegou à Madeira. Alberto João, para as câmaras, confessou inspirar-se num gandim. Não disse qual; mas, como de costume, deve estar a falar de si próprio.

«Na cabeça de Sócrates»

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Saia de casa. Já. Compre o Público de hoje. Leia «Na cabeça de Sócrates», de Ricardo Dias Felner. Não perca um dos textos mais fascinantes – e perturbantes – do jornalismo português dos últimos tempos.

O primeiro-ministro português é, da cabeça aos pés, uma laboriosa e enervante mistura de «frontalidade» e «dissimulação»? Não me diga que não tinha reparado.

A festa do porco

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A propósito do Ano Novo chinês, o programa Nós, RTP, fez uma reportagem na Escola Chinesa de Lisboa. Entrevistaram petizes, entre os 6 e os 10 anos (suponho), os quais explicaram a seu modo, espontaneamente, a História e cultura dos seus pais e venerandos avós que assim se celebrava. Mas explicaram através de uma alma lusa, com todos os meneios e particularismos léxicos da Língua observáveis numa outra qualquer criança descendente de Afonso. Uma menina até chegou a ficar envergonhada quando nomeou o ano da Cabra, no que foi uma deliciosa prova de domínio semântico. A prosódia perfeita, para mais servida por singular fluência e confiança na expressão, criava um laço imediato que absorvia as diferenças faciais e etnográficas e as integrava na mesma identidade. Aquelas crianças são portuguesas, temos a mesma pátria. Então, os seus pais também podem ser nossos patrícios. E, indo por aí, chegamos finalmente à consciência de que há muita gente em Portugal à espera de cá chegar.

À espera de uma festa, onde se coma e beba bem. Onde se conviva, para viver melhor.

Eu, comovido a Oeste

Não, caros blogleitores. Não se trata de uma nova leitura do livro homónimo de Vitorino Nemésio. Eu comovido a Oeste sou eu mesmo. Eu, obscuro cronista numa manhã fria de Lisboa, pouco tempo depois de ter descoberto num alfarrabista o livro Litoral a Oeste de José Loureiro Botas. E fiquei comovido porque este livro agora por mim recuperado tem muito a ver com a minha educação sentimental. Alguns dos contos deste volume com capa de Manuel Ribeiro de Pavia estavam no livro de leitura do Ciclo Preparatório quando eu tinha dez anos. E fiquei comovido porque vi de novo aquelas figuras dos contos ao meu lado: a Tia Morganiça, o Pichelim, a Rita Rebocha, a Ana Fateixa, a Jacinta Caréoa, a Maria Rita, a Raposinha, a Leandra. Era gente que saltava das páginas dos livros e vinha para ao pé de nós, misturando as suas vidas e as suas lágrimas com as ondas do mar na Praia da Vieira. A própria história do autor do livro, filho de gente humilde, que começou a trabalhar com 12 anos e abriu uma pastelaria onde se juntavam escritores, me comoveu. Eu próprio sou filho de gente humilde, comecei a trabalhar com 15 anos e tirei o Curso Comercial como o José Loureiro Botas. Também a mim me disseram que não tenho nome para ser escritor como se a qualidade da escrita dependesse do bilhete de identidade de cada um. Também fiquei comovido pelo prefácio de Tomás Ribeiro Colaço, com palavras que deveriam estar à vista de todos em todas as redacções de todos os jornais e de todas as rádios: «Continue. Escreva mais, como sentir. Escrever é semear. É esperar, insistir. É amadurecer. É querer. É atirar pedaços de alma para uma folha de papel. É sofrer em silêncio e pensar em voz alta. É demandar perfeições que não se atingem, procurar ecos que não se ouvem, erguer castelos que ficarão desabitados, cantar ansiosas canções que ninguém escuta ou entende. Mas o espírito é terra abençoada à qual nunca se atira em vão uma semente viva; apenas sucede às vezes ser lento o germinar… E quando o escritor assim escreveu, sucede um dia que outros encontrem na sua obra todos os mundos que ele criou enquanto a servia». Fim de citação.

José do Carmo Francisco

Exageros familiares – 3 e 4

A Sininho ofereceu-nos um notável exagero, com versões feminina e masculina. Os nossos visitantes, que são maiores e baptizados (perdoe-se a cristandade da perspectiva), saberão qual uma e qual outra.

«Já nem se pode ver o futebol! É só novelas!»

«Sempre a mesma coisa – futebol! Já nem se pode ver a novela!»

Mais um:

«Antigamente, levavas uma eternidade a ter as fotografias na mão».

Um exagero monumental, sobretudo se as podias ter num 1 HOUR SERVICE. Mas compreende-se o seu tanto. Actualmente, o tempo entre o disparo e a obtenção do «print» é desprezável. Mas acabou-se, também, de vez, qualquer romantismo da espera. Ah, mundo prosaico!

Este blogue é antianalgésico, pirético e inflamatório