A peça Discurso do Presidente da República na Cerimónia Militar Comemorativa do Dia de Portugal no Peso da Régua não teve a atenção merecida, isto por causa do processo de galambicídio em curso. Pretendo corrigir essa falha. Até porque desconfio que não foi Marcelo a teclar, sequer a ditar, a coisa. Mais, ele engasgava-se na leitura como se fosse a primeira vez que passava os olhos pelo texto. Um texto involuntariamente hilariante.
Eis uma amostra do que lá se encontra, muito para além dos ramos mortos lançados para o fogareiro da chicana:
Clichés soporíferos
«Portugueses, Todos os dias sabemos que, por entre alegrias e tristezas, estamos a fazer Portugal. Todos os 10 de Junho, cada qual diverso dos outros, evocamos passados de quase novecentos anos, ganhamos redobradas forças para os presentes e sonhamos novos futuros. Este 10 de Junho, é, também ele, muito diferente dos últimos.»
Assim começa um lençol de banalidades, nas melhores partes, e de exaltadas inanidades, do princípio ao fim. Juliana misturada com demagogia de uma retórica paupérrima, e ainda com a pulhice suficiente para alimento do negócio dos jornaleiros&comentadeiros. Nesta citação, a abertura do discurso solene, é notável a ausência de uma singular ideia. A menos, claro, que se atribua esse qualificativo à noção de que, porque cada 10 de Junho é “diverso dos outros”, este, por inerência, “é, também ele, muito diferente dos últimos.”
Américo Thomaz não o conseguiria dizer melhor. E tentou, várias vezes.
Xaropada folclórica
«Tudo isto faz sentido. Porque é o retrato do Portugal que queremos. É o retrato do Portugal, que queremos, porque nós queremos que os Pesos da Régua dos nossos interiores sejam tão importantes quanto as Lisboas, os Portos, os Setubais, as Coimbras, os Aveiros, as Vianas de Castelo, os Faros deste nosso Continente. E, claro, os Funchais, os Portos Santos, as Pontas Delgadas, as Angras do Heroísmo, as Hortas, os São Jorges, as Madalenas, as Santas Marias, as Graciosas, as Flores e os Corvos para só falar nos mais próximos dos nossos mares. Iguais na lei, iguais na esperança do futuro.»
Vamos esquecer a dificuldade com as vírgulas, maleita que se esperava nunca vir a atingir os escritores e revisores do Palácio de Belém, fiquemo-nos pela contemplação da técnica de encher chouriços quando nada se tem para dizer e há que ocupar o tempo. Chegamos enjoados aos Corvos com a suspeita de ter existido uma versão anterior sem a limitação de “só falar nos mais próximos dos nossos mares”. Parece o lamento de quem não se importaria de continuar a despejar nomes de locais durante 45 minutos.
A densidade intelectual e ambição programática do “iguais na lei, iguais na esperança do futuro” faz do calendário de festas e feiras do Borda D’Água um manifesto revolucionário.
Megalomania psicadélica
«Porque só isso nos permite e permitirá podermos ter e continuar a ter a projeção no mundo que é o nosso designo nacional. É a nossa vocação de sempre: fazermos pontes, sermos plataforma entre oceanos, continentes, culturas e povos. Outros há, e haverá, que são e serão mais ricos do que nós e mais coesos que nós. Mas com línguas que poucos conhecem, incapazes de compreenderem o mundo, de o tocarem e de o influenciarem mesmo aquele mundo que está mesmo à beira da sua porta. Nós nascemos diferentes. Uma Pátria improvável. Feita a pulso, contra o vento. Muito cedo universal. Muito cedo chamado ou condenada ser mais importante lá fora do que cá dentro.»
Dificílimo saber por onde pegar neste caleidoscópio de nacionalismo pindérico, com erro de concordância (lido) e gralha (safa) e tudo. A mera sugestão de que um país com 10 milhões de pessoas, envelhecido e sempre na corda bamba económica, vai servir de “plataforma entre oceanos, continentes, culturas e povos” num planeta globalizado com mais de oito mil milhões de indivíduos, num tempo de explosão tecnológica que anulou todas as distâncias e permite uma comunicação ubíqua de todos com todos, é pura alucinação. É de quem tem uma inteligência feita da serradura que ficou no chão ao construírem as caravelas.
Mas a passagem supinamente espectacular na citação, rivalizando com qualquer outra no discurso que esteja na compita para a mais choné, é a alusão a certos “povos”, prudentemente não identificados, os quais, mesmo tendo mais dinheiro no bolso do que nós (os cabrões), são afinal uns desgraçados por causa das línguas respectivas “que poucos conhecem”. Não contente, o nosso ufano Chefe de Estado revelou que esses tais povos, embora mais coesos do que nós (seja lá o que isto queira dizer), apresentam como característica antropológica serem profundamente estúpidos. O que os impede de “compreenderem o mundo, de o tocarem e de o influenciarem”, pão nosso de cada dia para os lusitanos. A que se seguiu a estocada final: “mesmo aquele mundo que está mesmo à beira da sua porta”. Irra, nem esse mundo ali a metro, metro e meio da sua porta?!… Então, porra, nós somos os maiores, caralho!
Sonsice populista
«E mais aquelas eras — que não distam assim tanto de nós, apenas cinco décadas, ou seis, ou sete, ou oito — em que as finanças estavam certas, mas a liberdade, a saúde, a educação, a segurança social, ou não existiam ou eram para um punhado de privilegiados. Tudo isto foi e, às vezes, ainda é verdade. Como foi e é que não podemos desistir — nunca — de criar mais riqueza, mais igualdade, mais coesão distribuindo essa riqueza com mais justiça.»
As eras “que não distam assim tanto de nós” são as do salazarismo. O uso da expressão “finanças estavam certas” é para convocar essoutra expressão “contas certas”, mantra de António Costa desde a campanha eleitoral de 2015 e esteio estratégico dos seus Governos. Donde, o texto diz explicitamente que “tudo isto foi e, às vezes, ainda é verdade”. Ainda é verdade, ponto final. E de que “verdade” se fala? Esta: “a liberdade, a saúde, a educação, a segurança social, ou não existiam ou eram para um punhado de privilegiados”.
Ou seja, esqueçam o Ventura. O próprio Presidente da República permite-se veicular, assinando por baixo, o populismo mais rasteiro e mentiroso que é possível conceber-se. No 10 de Junho, para manter a tradição.
Matemática vinícola
«É, finalmente, o retrato de Portugal, que queremos, porque só somos verdadeiramente Portugueses na medida em que sempre fomos e somos universais, sempre disponíveis para a solidariedade em relação aos outros — como aquele nosso compatriota Manuel Ponte, há dois dias, que com mais de 70 anos de idade fez aquilo que outros com menos 70 anos de idade não fizeram.»
Fui confirmar no vídeo, Marcelo diz mesmo como está oficialmente escrito: “com mais de 70 anos de idade fez aquilo que outros com menos 70 anos de idade não fizeram”. Ora, é possível que o autor do texto se tenha esquecido de grafar a segunda preposição “de”, na sua cabeça intencionando referir-se aos “outros com menos de 70 anos de idade”; por exemplo, fulanos de nacionalidades alternativas com 69 anos de idade, quiçá a dias ou horas de fazerem 70, e que se tinham ficado nas covas. Mas essa hipótese não parece puxar carroça porque é fácil de perceber como a frase pede a subtracção dos 70 anos inteiros para ficar de arrebimba o malho, em heróica sintonia com os critérios estilísticos genéricos da peça.
O que nos leva para o seguinte cálculo. Tendo Manuel Ponte 72 anos, Marcelo está então a admoestar todos aqueles que, actualmente com 2 aninhos de idade, nunca até hoje tentaram impedir adultos violentos com facas na mão de escaparem à polícia. Sim, há “vinho de excelência” no Douro. Pipas e pipas dele.