Fui-me deitar após ver John King mostrar a um atarantado Jake Tapper que aquele ser dado como politicamente morto em 6 de Janeiro de 2021, inclusive por pessoas do Partido Republicano, registava ganhos eleitorais de 3% face à sua votação em 2020 em muitas zonas dos EUA. Estava, portanto, não só em vias de ganhar como de ter um resultado acima de todas as previsões mais optimistas.
Em setenta e tal milhões de americanos não há setenta e tal milhões de fascistas. Mesmo a percentagem que corresponderá ao retrato folclórico dos criminosos que invadiram o Capitólio será ínfima. A quase totalidade desta gente que deu a vitória a Trump representa o “average Joe” que não faz mal a ninguém e quer é levar uma vida decente e pacífica. Pessoas com todo o direito a preferirem ir para a direita em vez de para a esquerda calhando chegarem a uma encruzilhada.
Acontece que o seu voto premiou quem, de facto, despreza a democracia, o Estado de direito e o elementar humanismo. A primeira vez que constatei ser Trump um fenómeno desconhecido da ciência política ocorreu em 2015, quando atacou o senador John McCain precisamente no valor em que ele era mais prestigiado, e mais prestigiante, no universo do Partido Republicano: ser um herói da guerra no Vietname, tendo ficado com graves sequelas para a sua saúde por causa dos ferimentos ao ejectar-se de um avião e das torturas a que foi sujeito durante 5 anos. Ora, não só parecia estulto atacar McCain fosse pelo que fosse como tal ataque vir de um tipo que nem sequer fez o serviço militar, e sobre quem recaía a fortíssima suspeita de ter sido protegido pelo poder da sua família para precisamente escapar à guerra do Vietname, levava a concluir com 750% de certeza estarmos perante um suicídio político. Qualquer Republicano sentiria asco ao ouvir “Eu gosto das pessoas que não foram capturadas” saído da boca de um cobarde, né? Pois nada disso aconteceu, passou-se tudo exactamente ao contrário.
Nesta campanha, e depois do que provocou em 6 de Janeiro de 2021, Trump verbalizou existir um “inimigo interno” mais perigoso do que os inimigos externos, o qual poderia ser alvo das forças policiais e militares. Como não o identificou, a sugestão foi a de que os seus adversários políticos são esse inimigo interno. Sobre Liz Cheney, ex-congressista Republicana e filha de Dick Cheney, lançou a imagem de ela vir a ficar na mira de armas. Sobre o sistema de Justiça, disse que pretende substituir funcionários federais que não aceitem perseguir judicialmente quem ele considere um inimigo político, tendo prometido processar Joe Biden, Kamala Harris, Nancy Pelosi e Adam Schiff. Não apetece ter qualquer tipo de respeito por quem ameaça a liberdade, e a vida, mas a democracia impõe aos seus defensores a humildade de serem apenas parte da comunidade e a coragem da integridade. Daí, ser necessário congratular Trump pela sua vitória, como Kamala Harris fez — e Trump não fez com Biden.
O poder da democracia não é o do dinheiro, das armas ou do sangue. A democracia existe como contrapoder dessas forças que podem ser esmagadoras, exploradoras e ostracizantes de indivíduos e grupos. O poder da democracia radica exclusivamente na Lei. Uma lei fundamental, portanto nascida da vontade soberana de uma dada comunidade. Se essa comunidade, em eleições livres isentas de fraude, decide dar o poder a quem ameaça a própria democracia, ainda assim há motivos para festejar. Não o perigo, até o nojo, que o resultado eleitoral provoca mas o processo. O orgulho de continuarmos a ser frágeis, subindo às muralhas da cidade com a gana da liberdade.