Ontem, ouvi esta entrevista feita, entre outros, por Pedro Mexia ao Miguel Vale de Almeida. Saliento, entre os vários entrevistadores, Pedro Mexia, já que foram afirmações do próprio e o diálogo delas decorrentes que me levaram a escrever um texto que tenho há tempos na cabeça.
A entrevista e as respostas dadas dão pano para mangas para apontar três factores recorrentes nestes temas: um erro histórico, um preconceito e uma atitude.
Em primeiro lugar, há em algumas pessoas a falsa ideia de que as certas causas, como a do casamento entre pessoas do mesmo sexo (CPMS), não têm necessariamente paternidade na esquerda, antes devendo ser olhadas como “causas transversais”, causas que podem ser perspectivadas como mais um passo na conquista vagarosa dos chamados direitos liberais.
Pareceu-me que esta ideia não causou qualquer interrogação.
Com o devido respeito, as conquistas de direitos têm paternidade ideológica e lutas como a que se travou pelo CPMS são, na sua essência, lutas e causas de esquerda. Não se pode falar numa “causa transversal”, simplesmente porque ela não o é, nem mesmo porque aparecem uns quantos da direita a excepcionarem o seu mundo ideológico, a visão do mundo que os rodeia.
Podemos falar, sim, de comportamentos transversais, no sentido em que, evidentemente, a homossexualidade atravessa todos os quadrantes políticos. Mas ter por evidente que os comportamentos são transversais deve levar-nos a explicar de seguida que a reivindicação de um estatuto jurídico de igualdade, de visibilidade, brota de quem pertence a um específico universo político, ideológico e cultural. Este é, portanto, o erro que se traduz numa tentativa de validar nas convicções de todos uma conquista de esquerda, para que ela passe a pertencer, geneticamente, a todo o espectro jurídico.
É natural, por exemplo, que com o tempo pessoas e instituições que combateram o CPMS mudem de ideias. Mas se isso acontecer, o CPMS não deixa de ser património da esquerda.
Não se trata, nesta exposição, de distribuir pontos, mas de não procurar consensos e discursos amáveis à custa de uma leitura da realidade que não a honra.
Explicar que o CPMS pode ser visto como mais um passo nas conquistas do liberalismo é deixar no silêncio a circunstância de nunca ter existido liberalismo em Portugal e de o liberalismo normativo que tivemos, através de todas as constituições oitocentistas, caracterizar-se, em matéria de direitos, pela negação da universalidade. Conforme o texto, de 1822 a 1911, a titularidade de direitos dependia de factores como a classe e o género. O mesmo se passou noutros países.
Em suma, o CPMS é tanto uma conquista da esquerda e da sua visão do mundo quanto o é, por exemplo, a IVG.
Outro erro em que se cai na entrevista, com o devido respeito, é falar-se em anticatolicismo. Não consigo perceber o que é que se pretende significar com este conceito tão pobre, associado à luta pelo CPMS. Pedro Mexia fala nisto, por exemplo, quando se refere à minha atitude, e à da Fernanda Câncio, nomeadamente num debate anterior à aprovação do CPMS.
Falando por mim, posso apenas chegar à conclusão de que ainda vivemos num país no qual se uma pessoa é sentada à frente de um padre e contraria as posições do padre, padece de anticatolicismo. É automático.
Na verdade, é-me absolutamente indiferente o que a Igreja defenda em matéria de costumes: é o que é, conheço o que defende, e é um problema dos fiéis. Isso não me impede de criticar a interferência da Igreja no poder, por exemplo, quando assim entenda que é o caso, ou de, colocada num debate em que o opositor é um padre, contrariar, como não pode deixar de ser, as suas ideias. Mas já percebi, e esta entrevista veio fortalecer a minha convicção, que basta contrariar a Igreja ou alguém da Igreja para se ser anticatólico. Resta saber se o padre perante quem eu debato é um feroz anti-ateu.
Finalmente, nestes temas que desencadeiam uma luta de e por convicções, vem ao de cima como nunca, sob forma de mera análise do debatido, uma atitude sem cura à vista, o machismo. Trata-se de um sexismo difícil de suportar com postura amena, que ressalta em mais um programa de televisão e que é amigo do país dos bons costumes: mulheres que tenham uma intervenção forte na forma como se expressam são sempre, mas sempre, vistas por certa gente como não cordiais, ou antipáticas ou pouco conciliadoras, para não dizer histéricas.
Não vale a pena tentar explicar a calma de uns em contraposição à agitação de outras com a experiência na Academia (como o Miguel tentou), digo eu que tenho 15 anos dela.
A questão é que se uma mulher é insultada aos gritos e com uivos, numa estratégia para a calar, estando sentada em frente a uma plateia que levanta cartazes com definições criminosas de “homossexualismo” e ouvindo de tudo, desde os homossexuais serem anormais a os mesmos serem comparáveis com o que for, se essa mulher levanta a voz, se aponta ao dedo à plateia cobarde que uiva cada vez que ela fala, essa mulher é histérica, anticatólica, claro, pouco harmoniosa e coisa má para os “indecisos”, usando as palavras de Pedro Mexia.
Se um homem comparar homossexuais a animais, disser erros de direito propositadamente para confundir as pessoas, gritar quando isso lhe é apontado, acusar a mulher de ter mentido quanto à sua formação ou se, sendo padre, disser com voz de veludo que até tem amigos homossexuais, mas eles ou um pai ter relações com um filho é a mesma coisa, esse homem é incisivo, activo, participativo, tudo, porque a forma está correcta e é homem.
Evidentemente, se for explicado ao padre que considerar que alguém cometeu um erro é diferente de considerar que alguém é um erro, temos histérica e anticatólica.
Este eterno duplo padrão de exame da intervenção feminina e masculina não se esgota no que foi dito numa entrevista; a entrevista serviu apenas de mote para estas palavras. Por outro lado, claro que falo por mim, quando recordo que participei em muitos outros debates televisivos antes e após o Prós e Contras, tendo ouvido por graça perguntarem-me se nesses ia drogada, já que não levantei a voz nem apontei o dedo a ninguém. Na substância, não disse nada de diferente, mas não senti necessidade de reacção, com inevitável dose de emocionalidade, em debates sem um ambiente de hostilidade, de agressão e de insulto anormal, como o que encontrara no famoso Prós e Contras.
Nada disto exclui que perante uma mesma agressão uma mulher possa reagir com calma olímpica e um homem com violência. Do que se trata é de apontar a qualificação de ríspida, histérica ou anticatólica que uma mulher merece sempre que tem um comportamento que, se fosse de um homem, seria qualificado de frontal, incisivo ou de corajoso.
Para além dos exemplos, esta entrevista fez-me pensar mais uma vez na existência de uma cultura de divergências cúmplices.
As pessoas pertencem a mundos diferentes, por um lado, defendem causas opostas, mas falam umas com as outras numa espécie de código de classe. É por isso que os restaurantes estão cheios de mesas com pessoas que negam as outras que bebem do mesmo vinho. Assim garante-se a tal classe, e com isso tudo o que der jeito e que daí venha, desde logo não se ser um excluído de circuitos de sedes de poder. O código de acesso a tudo isto é um código tacitamente acordado de não-agressão.
O que move uma pessoa livre quando abraça uma causa, antes do interesse pessoal na mesma, é a convicção de que reside ali um princípio de justiça.
Gosto de pessoas movidas pela convicção, que vão à luta contra quem quer que seja, que lançam mão do direito à indignação quando são vítimas de agressão e de insulto, que preferem a substância de cada um de nós a uma forma, seja ela qual for, com o conteúdo que for, mas obediente à lógica das divergências cúmplices; gosto de pessoas que usam razão e emoção, pessoas sem medo dos rótulos, que não pensam duas vezes antes de contrariar um adversário à conta do anti que lhes vai ser pregado às costas, gosto de pessoas que debatem ideias, que pagam o preço que for por isso.
Se essas pessoas forem mulheres, sei que estão condenadas à já referida dupla valoração.
Em suma, ser livre tem um preço.
E ser mulher também.