
Edward Kienholz e Nancy Reddin Kienholz, Retrato de uma Mãe com o Passado Também Afixado, 1980-1981
Em Detroit, um juiz deu razão a uma queixa da editora de hip-hop “BreakBack Records” contra um dos seus músicos, um tal DJ Karamel. Este foi condenado ao pagamento de uma pequena multa pelo “crime” de não ter incluído samples nas suas faixas, ao contrário do que garantira à editora. Aparentemente, ele preferia criar na íntegra os seus beats, recorrendo, imagine-se, à obsoleta arte da composição musical. Reza a douta sentença que “hip-hop is all about found objects, recycling sonic elements of our urban landscape. Creating original material and representing it as samples betrays the trust consumers place in what they believe are legitimate and de facto contemporary cultural objects. Sometimes, originality can be considered cheating”.

Pela primeira vez desde o fim de Novembro, passei um dia sem pôr olhos em cima desta página. De regresso a Lisboa, já a meio da noite, ainda fui tentado por um reluzente quiosque de Internet numa estação de serviço toda modernaça. Mas resisti com galhardia; sempre me ensinaram que não devemos ceder aos nossos vícios em público. E em boa hora o fiz: não sei se conseguiria concentrar-me na restante jornada depois de confrontado com as dimensões da teofania que varreu este canto da blogosfera (sim, já reparei que os cantos das esferas são de topografia inconstante e traiçoeira).
Deus, pá, que sejas bem-vindo!
Assegurámos o contributo de um extremo esquerdo rápido na finta e de um “carregador de piano” discreto e eficaz. Tratámos da contratação-surpresa em terras de Espanha. E arriscámos a compra de um artista do meio-campo que não há forma de aparecer no centro de treinos (e fica entregue à vossa inventividade a tarefa de adivinhar quem é quem)… só faltava mesmo guarnecer melhor o lado direito do nosso ataque. Precisávamos de um atacante rigoroso no cruzamento e estonteante na desmarcação. Alguém para usar o pé direito com proficiência, mas sem esquecer o jogo de cabeça.
Aí está ele: a partir de hoje, Rodrigo Moita de Deus é o nosso convidado residente. E vai dar início a uma existência dúplice, a uma epopeia do pensamento bicéfalo. O Dr. Moita de Deus, do respeitável Acidental, vai transformar-se de quando em vez no temível guerrilheiro maoísta-refundado El Rodrigo, no Aspirina B. Ou será ao contrário? Bem, vamos lá a ver no que isto vai dar. Adivinham-se dias turbulentos no balneário.
Estava eu sentado na casa-de-banho, que é como sabemos lugar destinado a meditações e a leituras esdrúxulas, quando dei comigo agarrado a um dos 15 suplementos de um “Expresso” já atrasado, começando logo pela página de uma velha conhecida, mas que se apresentava na ocasião irreconhecível, oculta por um novo e frenético estilo capaz de a disfarçar como a mais decente e recatada das burqas. E de que falava ela? Ela escrevia muito, escrevia sobre tudo mas sobretudo sobre o Natal, que é a seca que todos sabemos, mais a mais para ela, que sente um indisfarçável ennui a cada vez que o calendário se aproxima do dia 25 do costume, do menino Jesus, da manjedoura, da Palestina e, acima do mais, do consumismo desenfreado. O SMS, a hipocrisia kitsch, o presentinho, a bichinha do centrinho comercial, isto é a nossa sina, condenados como estamos a manter apenas este sentimento de ocidental. E ela lembra-se bem do Fernando Calhau (animem-se que é o único nome que ela larga na crónica toda, logo ela que se dedicava ao name-dropping com o afinco produtivo das gaivotas da Praça Duque da Terceira em pleno bird-dropping) e ele até lhe ofereceu uma t-shirt a dizer I spend therefore I am, e isso das compras deixa a menina a pensar que está tudo doido, é que ela sim tem direito a comer pratos gratinados com cabernet sauvignon na Madragoa e o pior é logo a seguir quando chega o sacana do fim do ano. Ela quer mesmo é ir mudar de ano ao Brasil ou a um país muçulmano, longe das passas e da gente passada, porque se viu numa festa sinistra a olhar para os amigos todos com desejo de suicídio em massa como em Jonestown, e logo emborcariam uma litrada de cicuta se alguém representasse essa fatídica beberragem (claro que a moça só podia mesmo ter um desejo de término ligado a poção letal digna de filósofo, nunca aos banais artigos de drogaria manhosa que vitimaram os fiéis do reverendo Jones), e o Messias não vinha, e o champanhe corria como se fosse água (só não percebi se o tal Messias era o do espumante homónimo ou não). Pronto, a rapariga fez a malinha e deu de abalada para o Brasíu, só que chegou ao check-in e viu aquilo pejado de brasileiros barulhentos e portugueses chunguentos de sapatilha e aquilo foi demais, lá foi ela em busca de um lugar em executiva por quinhentas lecas, contos de reis, informa ela. Pró ano vai às Seychelles de executiva matar saudades de quando lá foi com Soares, pois agora nunca iria com o Cavaco, cruzes canhoto.
A senhora diz há anos que quer escrever um grande romance mas ainda não passou dos contos sofríveis, agora parece correr desesperada em busca de um estilo cool, diferente e orgulhosamente livre de pausas, cheira-me que ainda não é desta que vamos ter direito a degustar a prometida obra-prima.
Depois do desvairado Mahmoud Ahmadinejad, aqui está mais um presidente cheio de vontade de inventar cenários em que poderá ordenar o uso de armas atómicas. Este não quer apagar Israel do mapa; as suas mais modestas ambições passam antes por defender aliados ou “abastecimentos estratégicos”. E tem um hino guerreiro que inclui qualquer coisa como “Qu’un sang impur abreuve nos sillons”. Isto está a ficar cada vez pior.

Ao explicar ontem à minha filha a diferença entre corrente contínua e alterna, lembrei-me de uma história curiosa. No início do sec. xx, Thomas Edison tentava a todo o custo proteger as suas lucrativas patentes do avanço da corrente alterna, que tinha o estranho e genial Nikolai Tesla por progenitor.
Aproveitando-se da planeada execução de uma elefanta — acusada de ter dado cabo do seu tratador depois de este lhe ter dado a provar um cigarro aceso — Edison tratou de propor a sua execução com… corrente alterna. Tudo para cimentar a noção de que esta forma de electricidade era perigosa, coisa de que ele já começara a tratar, procedendo a várias execuções de cães e gatos e cedendo o gerador necessário para o funcionamento da primeira cadeira eléctrica.
O elefantícidio consumou-se no meio de fumo e faíscas. Depois de alimentada com cenouras temperadas com cianeto, a pobre Topsy foi ligada a uma corrente de 6.600 volts. De acordo com a imprensa da época, “the big beast died without a trumpet or a groan”. Claro que a execução pública foi filmada pelo próprio Edison.
Mais pormenores deste bizarro episódio do avanço da Ciência aqui.
Acabo de descobrir que tivemos um visitante que aqui chegou depois de procurar por um site de coisas estranhas . Não percebo bem porquê, mas fomos a primeira recomendação do sábio Google.

Ontem, pela primeira vez, vi um noticiário da Rede Record. E aquilo mete medo. Imaginem o “24 Horas” em movimento: crimes em barda, corrupção por todo o lado, gente feia até mais não. Tudo tem aspecto patibular: do deputado corrupto ao delegado, passando pelos políticos, que, por sinal, andam sempre em fuga. Nunca antes tinha ouvido tantas vezes, em tão pouco tempo, as palavras “assalto”, “tortura”, “assassinato” e “chacina”.
Tão cedo não volto a falar do sensacionalismo das nossas TVs.

Para termos a inteira medida do que será a vitória de Cavaco, devemos prestar atenção à malta que ciranda em seu redor. Nem toda, é certo; mas a sofreguidão induzida pela proximidade da vitória já arreganha os caninos aos mais incontinentes. E lá começam a escorrer os insultos e a soberba. Agora, no Pulo do Lobo, que por norma até parece espaço mais ou menos civilizado, surge o McGuffin, brandindo os cacetes do costume: generalizações, agressividade, arrogância, falta de educação democrática.
Para este senhor, as eleições só nos colocam dilemas simplórios: de um lado, há “três ou quatro pseudo-candidatos”, com ideias por certo “de pacotilha”. Eles entretêm-se a produzir “ruído. Nada mais”. Todos andam “apostados em”: “denegrir”, “ridicularizar a austera figura de Cavaco” (ai que aleivosia!) e “desferir sórdidos ataques” que apenas revelam o “vazio e a indigência” dessa malta. Sim, que a “grande farsa desta campanha, protagonizada sobretudo por Soares e Louçã” é a “incapacidade destes para apontar um rumo ou uma estratégia de longo prazo para o país”, capaz de ir além do lugar-comum das “mui queridas questões «fracturantes» e do empenho em cultivar um estilo «cosmopolita» e «moderno».” Ao fim e ao cabo, é como se essa horrenda maltosa bramasse: “nós, que somos importantes e fundamentais, propomo-nos para bibelot pois não temos opinião sobre nada”. Soares, claro está, vagueia “fora do mundo”, carregado com a sua “puerilidade aliada à soberba”. Tudo isto é, de acordo com o vocabulário mal-educado do senhor Carapinha, “obviamente bullshit“.
E que tem ele a dizer do seu candidato? Nada de famoso. “Cavaco Silva não é propriamente uma figura «interessante». A «grande» sofisticação não mora ali. Também não se adivinham conversas de antologia sobre os mais apaixonados temas”. Então, porque vai ele votar nesse palonço sem interesse? Preparem-se: é porque “o que faz falta é sacudir a malta, esbofetear a malta, chatear a malta”. Nem mais. Cavaco será um “homem sério”, “adepto do rigor e da competência”. E essas credenciais bastam para fazer um Presidente. É que o McGuffin fica “mais descansado se souber que em Belém está um homem que, não se tendo resignado, está disposto a trabalhar. Ou, se quiserem, a «chatear».”
É ou não é uma tristeza?
Querem ler os brilhantes argumentos com que Vasco Graça Moura transforma a sua coluna de hoje num panfleto eleitoral? Vão lá. Ou, se quiserem poupar tempo, podem ficar com um breve resumo, com alguns comentários meus à mistura, em itálico:
Portugal está face a uma grave crise económica. Para a ultrapassar, “é imprescindível que haja total coesão e compreensão entre os órgãos de soberania”. Portanto, devemos votar num candidato programática e ideologicamente próximo do governo, certo?
O candidato salvador vai escorar a sua “capacidade política” “no rigor, na experiência, na competência e também na disponibilidade permanente”. Estará ele a falar de Soares, que nem aos 80 pára?
Mas claro que também é natural que a “personalidade do candidato conte, e conte muito, para a sua designação”. Portanto, devemos recusar o candidato que ainda há dias negou palavras suas e mentiu descaradamente.
Se estes métodos de selecção falharem, o melhor é eleger o candidato com um manifesto que seja um “compromisso solene e um programa viável de actuação”. Estou a ver aí uns quatro nessas condições…
Devemos exigir alguém que afirme a “sua independência e o seu posicionamento acima das forças políticas”. Já não percebo nada; agora está a apelar ao voto em Alegre?
A fechar, o nosso homem em Belém deve rejeitar “enquadramentos e compromissos partidários, a dicotomia esquerda/direita, a revisitação do passado e a ordenação do presente segundo enfoques paroquiais ou interesses mais do que discutíveis”. Aparte a ideia de fazer de conta que não há esquerda ou direita, não se entende grande coisa desta passagem; mas aquilo de não se regressar ao passado deve deixar de fora pelo menos Cavaco e Soares.
E agora, em quem vai votar Vasco Graça Moura, se não consegue coligir nem uma meia dúzia de argumentos que se possam aplicar apenas ao seu candidato? Pobre homem indeciso…

George Bush continua a sonhar com a “vitória completa” que não deve tardar, uma vez que, “apesar dos obstáculos que enfrenta, os iraquianos mostraram que sabem unir-se em prol da unidade national”.
Ao mesmo tempo, a agência oficial de ajuda humanitária americana encontra ali um país “fora de controlo”, dividido por um “conflito intestino” envolvendo grupos religiosos, étnicos, criminosos e tribais. Será o mesmo “Iraque” de Bush?

Que me perdoem os demais, mas a resposta mais vigorosa ao meu desafio do outro dia foi a do Vasco. Se fosse rapaz para essas coisas, diria que é uma cena do ca… raças.
PS: obrigado ao JPG pela dica; e pela imperdível análise toxicológica das crónicas de Eduardo Prado Coelho.
Há uns dias, Cavaco Silva dizia-nos que estamos da iminência do que, em futebolês, se chama uma “chicotada psicológica”: “a chegada de um novo presidente pode ter o efeito, quer se queira quer não, da chegada de um treinador novo”. É que “às vezes, a equipa não é má, mas precisa de um novo treinador”, com direito, presume-se, a ditar a táctica, substituir elementos, exigir reforços, etc.
Agora, Cavaco tentou tranquilizar-nos: “conheço muito bem as competências do Presidente”. Escasso valor terá esta garantia, vinda de alguém que parece, como na altura realçou Vital Moreira, incapaz de distinguir as competências do árbitro das do treinador.

Primeiro, foi Manuel Alegre. Confortado pela presença da viúva do capitão de Abril, tratou de o arregimentar para a sua causa: “Sei que o Salgueiro Maia gostaria de me ouvir dizer o que estou aqui a dizer”. Agora, outra viúva ilustre, Matilde Sousa Franco, tratar de anunciar aos viventes as vontades do esposo: “toda a gente sabe que foi um grande amigo de Mário Soares, estando certa de que, se fosse vivo, o apoiaria”. Mas, com tamanha alergia ao que chama “oportunismo político”, que terá passado pela cabeça da senhora quando aceitou fazer parte das listas eleitorais do PS, escassos meses após a morte do marido?
O programa que ontem à noite animou a RTP 1 proporcionou-me uma das experiências televisivas mais divertidas da minha vida.
O espectáculo foi entregue a meia dúzia de mentes brilhantes que supostamente iam discutir a alma lusa ou coisa que o valha. O professor Adelino Maltez ficou com o papel de dizer umas banalidades isentas de conteúdo com voz ribombante e condizente expressão grave e intensa; acabava uma frase — invariavelmente sem conclusão — e ficava a olhar com ar de mau para as câmaras e para os comparsas, não fosse algum ter a ousadia de lhe perguntar o que queria afinal dizer. Clara Pinto Correia entretinha-se a demonstrar a sua erudição com umas historietas medievais e a falar dos filhos a propósito do estado deplorável do ensino, do bom que é morar no Bairro Alto, local onde as crianças podem brincar à vontade na rua (talvez a ver qual encontra mais seringas), da maravilha que foi ir a pé a Fátima (pobres petizes). Um padre velhinho muito simpático dava ideia de se ter enganado no estúdio: quando lhe perguntavam qual devia ser o perfil do próximo PR, falava de Goa. Um senhor publicitário discorria sobre a falta de gravatas do primeiro-ministro japonês e sobre a miséria que é a “marca” Portugal.
Como guardião da racionalidade ficou, imagine-se, Nandim de Carvalho, que teimava em remar contra a maré e tentar dizer coisas com sentido. Jacinto Lucas Pires, ao longo de todo o programa, não conseguia reprimir um sorriso incrédulo.