Arquivo da Categoria: Jorge Carvalheira

A cadeira do rei Sancho

A Moreira de Rei já chamaram ninho de águias, sobre um montão de rochas. E o viajante concorda. Se das águias não encontra sinal, que o tempo as levou para outros ares, já o ninho cá ficou e rochedos não faltam. Só a história, e a teimosia dos homens no que é seu, explicam um lugar assim. A igreja, logo à entrada, é de antiga fábrica românica, com bárbaros cachorros zoomórficos. O viajante encontrou a chave na porta lateral e foi cumprimentar a padroeira, que é Santa Maria. Já viu os caixotões do tecto, pintados com cenas devotas, e os painéis com figuras de santos, que são uns regalões. No mais ignoto lugar sempre lhes cabe a moradia mais aprimorada, e nunca lhes faltam esmeros e frescuras, como agora podemos ver. As talhas reluzentes de castanho genuíno trazem ao viajante lembranças do padre Júlio, que antes de tomar aqui os paramentos descarregava as pistolas na mão do sacristão.
Do padre já se não lembra Manuel, nem a mulher, que atravessam o largo atrás duma carroça. São velhos, mas não tanto. Só lhes constam as boas famas que ficaram no povo, e ainda se lembram bem da Carlotinha e do irmão, que eram filhos. Ela há muito que se ficou num parto, ele morreu há poucos anos. Mas agora já não têm padre residente, que os não há. Chegou a haver esperanças num rapazola aí do povo, que andava no seminário. Mas um dia tomou-se de amores e resolveu desistir, Deus é quem sabe.
Saberá ou não, isso é outra conversa. O burrico é que parece não ter dúvidas, já lá vai adiante com três sacos de milho e uns molhos de feijão para secar. Os donos seguem atrás e o viajante vai com eles. Manuel andou uns anos na emigração, como toda a gente. Foi onde ganhou dinheiro para comprar esta casa e arranjá-la, aqui à vista do castelo. Mas era uma vida desgraçada, aquela, uns escravos do trabalho. Os filhos lá cresceram, lá casaram, ainda hoje lá vivem. Ele, quando pôde, escapuliu-se, que não há como viver na nossa terra.
– Tivemos cá rei e tudo! Se passar no castelo, há-de lá ver a cadeira!
Manuel esvazia a carroça e recolhe o jumento, que o afligem o calor e a mosca. E a mulher fica a espalhar ao sol as maçarocas, na laja que se estende logo ao traço da porta. A canzoada que ladra ali ao lado é do pároco da vila, que vem rezar os ofícios quando calha. E está tão belicosa a cainçada, que nem deixa conversar. Com batedores assim, o padre há-de ser bom caçador. Mas o viajante fica a pensar que o padre Júlio caçava muito melhor.

Jorge Carvalheira

Perguntas sem resposta

Hoje acordou cedo o viajante, que tem as horas contadas. Esperam-no ao fim da tarde os cavalinhos rupestres no baixo Côa, há que meter pés ao caminho, que há-de ser longo. Já se despediu das muralhas da cidade, já deixou para trás a porta do Carvalho, já segue para norte pela estrada da Meda. Para trás ficou também a capela de Santa Luzia que não pôde visitar, tão fechada que estava debaixo do seu arco românico.

O bairro da mesma santa, estendido pelo arrabalde que se dispersa na encosta, é uma pequena parte da cidade moderna. Mas não há ponto cardeal que a febre da construção tenha poupado. O viajante perdeu-se ontem à noite nos dilatados subúrbios e não pode imaginar donde vem tanta gente habitar estas casas. Por força haverá muitas vazias, que todos os munícipes concentrados aqui não haviam de chegar para as ocupar. Mas a perplexidade do viajante é sem motivo. Havendo dispersas no país inteiro meio milhão de casas devolutas, sempre uma parte caberia à cidade, a menos que houvesse um milagre qualquer. A especulação imobiliária fez-se galinha de ovos doirados há uns anos, não há terra em que o betão e uma ideia peregrina de progresso não andem de braço dado. Os construtores trocam as leis e os planos por peitas e ganhuças, os edis fazem o mesmo por taxas e derramas, e os governos, sobre todos, abdicam do país por impostos e sisas. Os banqueiros multiplicam capitais, como é da sua função. E alguém há-de pagar um dia esta factura, se não estiver já hoje a pagamento.

O viajante vai ficando cansado destes embates com a realidade, sempre espessa e concreta e angulosa. Ouriçada de esquinas afiladas, que deixam feridas nas mãos. O que dava jeito a este viajante era acreditar em trovas e refugiar-se nelas, se para consolo de almas foram inventadas. Mas não tem ele essa sorte. Há-de parecer que anda à procura de quebra-cabeças e não é verdade. São os quebra-cabeças que vêm ter com ele. Parou aqui à saída, para ver as instalações do mercado dos gados, sem sinais de ocupação há muito tempo. Num lugar de ruralidades dominantes é sempre um gosto vê-las, mesmo assim vazias, que já estarão à espera se um dia o gado voltar. Mas não estão sós no desamparo, pois logo ali à direita, espraiados no vale, andam vinte hectares de pomar abandonados. O viajante pára o carro num caminho de saibro, pula uma parede a observar melhor. O matagal pagão assoberbou as árvores, que lá vão resistindo aos gritos pela encosta. Algumas já secaram, outras lambeu-as o fogo, muitas granjearam frutos enfezados que tornaram à braveza natural. Na vastidão da tapada ficou a branquejar uma inútil estação de tratamento.

Umas vezes protesta o viajante contra a própria ignorância e falta de entendimento. Outras muito suspeita que dez cursos de economia não haviam de chegar para lhe tornar compreensível este mundo. Dá consigo a perguntar o que o faz correr assim, andar por montes ardidos, e pomares abandonados, e terras adormecidas donde a vida desertou. Vinha à procura dum país, a ver se lhe encontrava ao menos as raízes, e só esbarra em perguntas que lhe ficam sem resposta. Anda por ali a restolhar no capim, a tropeçar em antigas tubagens de rega, a arranhar-se nos silvedos. Abre os braços à carícia do sol, oferece o peito ao ar de vidro da manhã, e com tanto se dará por satisfeito. É um tolo, este viajante, a querer entender o mundo. Deu com a fronteira da parede, esbarrondou umas pedras, saltou para a carreteira e foi-se embora.

Jorge Carvalheira

Paraísos perdidos

ao José Rentes de Carvalho

Nesta casa já se dançou a pavana, num tempo em que as damas da família sabiam dissimular o queixo delicado atrás de leques andaluzes, à sombra frondosa das nogueiras. Havia um piano vertical na sala das visitas. E entre a leitura dos folhetins recortados d’O Século, e a bruma evanescente de paisagens campestres a amanhecer no cavalete das aguarelas, por certo alguém, à tarde, punha a rodar na vitrola de corda uma ária do Caruso, uns acordes de zarzuela, enquanto duas donzelas ensaiavam coreografias de salão, entre javas e habaneras. Cheirava a terra a chuva de Setembro e os galos cantavam no ar de vidro de Janeiro, assim terá sido há muitos anos, antes de o mundo dar sinais de começar a morrer.
Quem primeiro morreu foi o patriarca que construiu a casa, ou a mandou fazer assim tão regular e adequada. Havia nela um tão exacto casamento entre função e forma, que por trás se lhe adivinha grande paixão e muita sabedoria. Depois foram as damas que partiram, e consigo levaram o piano, o Caruso e os anelos adocicados, para terras menos agrestes e remotas do que estes fins do mundo.

Jorge Carvalheira

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A pista da ilha Caravela

Aqui há trinta anos, no dia em que os ecos da mudança começaram a alastrar pela Guiné adentro, numa espécie de maré enchente que as notícias da BBC traziam lá de longe, logo um vento de esperança agitou os corações cansados daquela gente toda. Pois se é da liberdade que estamos a falar, quem é que vai agora chegar fogo às peças e aos canhões? Parecia pertinente a questão.
Já há muito tempo que nada se mexia no teatro, a não ser os aviões e os caranguejos cegos, que trotavam nas bolanhas durante a maré vaza. Mesmo assim, eram sempre com pezinhos de lã que o faziam, não fosse algum diabo tecê-las. E demónios tecedores era o que não faltava, a animar aquela paisagem. Que o diga o Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, que tinha na secretária da Avenida da Liberdade nove requerimentos de pilotos aviadores, a pedirem dispensa de o ser. Aguardavam punição exemplar.
E foi assim, lembro-me como se fosse ontem, que o último bombardeamento aéreo aconteceu ao final da manhã do dia 9 de Maio. Lá fomos em voo rasante até ao objectivo, a encaixar na coluna a pancadaria inclemente da turbulência, seguia eu a asa do coronel comandante, um velho homem excelente, com o rabo mais calejado que um chimpanzé do mato. Do objectivo ergueram-se três cogumelos de fumarada negra. E depois disso não se voltou a ouvir por ali o estrondear dos canhões do império, suponho que se calaram de cansaço. Ou de velhice.
O tempo trouxe, aos poucos, a confirmação do que se vinha cogitando. Pois se é da liberdade que estamos a falar, quem vai agora chegar fogo às peças e aos canhões? E viu-se claramente que a guerra era acabada, quando começaram a passar ao largo, de gurupés apontado a casa, rebanhos de caravelas roídas pelos búzios, a adornar de fantasmas de almirantes de barbas e conquistadores zarolhos, de destroços de piratas e negreiros, de missionários comidos pelos cafres, de donatários cúpidos, de exploradores de sertões, e dos vagamundos de que falavam os livros antigos. Perante tais evidências não havia que duvidar, a guerra era passado.
De forma que alguém começou a pensar no melhor modo de trazer para casa os aviões, nem todos eram sucata centenária. Maneira expedita era fazê-lo saltitando, África acima, com a primeira escala na ilha do Sal. Quem dobrara, descendo, tantos bojadores, melhor os dobraria, já subindo. O problema eram as oitocentas milhas sobre o mar, e a garantia de passar por cima delas sem molhar os pés. De modo que se resolveu tirar a coisa a limpo, e fazer o teste definitivo da autonomia dos aviões, com carga máxima de combustível, à máxima altitude utilizável, que eram treze mil e quinhentos metros.
E lá fui eu atrás do coronel comandante, o tal velho homem excelente de quem já se falou. Parecíamos dois sísifos condenados, até chegar aos quarenta mil pés. E por lá andámos a desenhar no ar triângulos minúsculos, a tropeçar em fronteiras, ainda agora esbarrámos no Senegal e já estamos à vertical da linha de Conakri, só o vasto mar dos Bijagós é que nos dava um pouco mais de folga.
Gorou-se, porém, a prova real do exercício. Pois que, a dada altura, sobressaltaram o chefe as estranhas cabriolas que o meu avião se pôs a desenhar. Desabituado de tamanhas alturas, o regulador automático começara a cortar-me o oxigénio da máscara. Como se nada fosse comigo, eu fui perdendo o controle do avião, mais tarde era a visão que já me ia falecendo. E foi o grande saber do velho comandante que o levou a colar-se atrás de mim, a ditar-me procedimentos que eu reproduzia em gestos desconexos, a conduzir-me à entrada da pista que eu já não descortinava, e a mandar-me despejar no asfalto a passarola, que acabou rebocada à mão para o estacionamento.
Tínhamos passado entretanto sobre a ilha Caravela, a norte dos Bijagós, naquele estranho exercício de bilhar às três tabelas. E eu tinha visto, no meio duma vastidão de coqueiros, uma enorme faixa de macadame, que me pareceu uma pista de aviões. Algum tempo mais tarde, pois que o tempo disponível tinha passado a ser muito, consegui o acordo dum piloto de helicópteros para o passeio turístico. Levámos connosco um jovem alferes médico, aterrámos numa praia semeada de bolas de nafta escura, e logo um grupo de negras primitivas apareceu a saudar-nos, entre risadas tímidas. Vestiam tangas de ráfia pré-históricas, que eu só conhecia das gravuras da etnografia ultramarina, e ali mesmo nos deram a admirar os peitos do império, assim abertamente expostos à carícia do sol, um deles apresentava um nódulo visível, que o jovem médico logo aproveitou para diagnosticar. E a pista enorme lá estava, enigma rectilíneo e vastíssimo, o piso ainda irregular, de macadame não compactado.
Ficou-me sempre vivo este mistério, que não se decifrou em trinta anos. Nunca ouvi uma palavra sobre ela. E a minha primeira explicação foi que um governador previdente pensou nela como garantia de retaguarda. Viessem as tropas a ser empurradas para o mar, às mãos do inimigo ou às dos políticos dementes de Lisboa, e ali achariam refúgio seguro.
Até que tropecei há tempos na chave do enigma, quando vi num jornal um par de onagros bem falantes, a escoicinhar contra a descolonização criminosa. Se colónias ainda houvesse, compravam eles por bom preço umas divisas de furriel amanuense, para não irem comandar em Madina do Boé uma companhia de atiradores. E pois que colónias já não há, por força as retomarão, para virem depois a descolonizá-las sem crime.
São os pais da Pátria em versão pós-moderna. E já têm na ilha Caravela uma testa de ponte. A Pátria, essa, está ansiosa por lhes inscrever o nome na parede do forte do Bom Sucesso, ali ao lado da Torre de Belém. Sendo para quem é, há-de arranjar-se um espaço disponível. Talvez assim, calados os canhões, se venham a calar, também, as bestas.

Jorge Carvalheira

Pungentómetro

A Valupi

Muito antes de procurar, num texto, o que lá não está, é obrigatório ler nele o que lá está. Explicitamente.
Invadi-lo de subjectividade é enviesá-lo. É abusá-lo. É ver nele um outro que não existe.
A contenção e o pudor dum texto fazem-no contido e recatado. Pode ser belíssimo, carregado de intenção, mas não é pungente.
Só ao autor cabe medir a pungência que quer presente na obra. Por isso não há pungentómetros
no mercado. Tudo o resto são oportunismos de leitor.

Jorge Carvalheira

Mastrados

A senhora mastrada é mulher do senhor Roxo e tem um sindicato. Mal se lhe compreende um homem desta cor, talvez por isso tenha um sindicato. Mas adiante.
O senhor Roxo está em prisão preventiva, será por muito ir à missa, um dia algum juiz decidirá. O facto é que, sendo a mulher do Roxo, a senhora mastrada teve em casa um mandato de busca, que um desembargador qualquer determinou. Do desembargador não sabemos mais nada. Apenas que desembarga e determina mandatos, o que já não é pouco. E os oficiais lá foram.
A senhora mastrada concedeu ser mulher do senhor Roxo, e até lhes mostrou o sindicato que lá tinha. Mas não era bem isso que eles queriam saber. Porém do que buscaram não se falará aqui, por estar em segredo de justiça.
Sucede, porém, que a senhora mastrada, ou por ter um sindicato, ou por ser mulher do Roxo, não pode sofrer em casa um mandato qualquer, assim do pé para a mão. Mormente sem a presença dum mastrado do conselho superior, capaz de validar-lhe a diligência. A ver se os oficiais dão o bom dia, ou se pedem licença para revistar a alcova, ou desencravar à senhora mastrada uma gaveta renitente.
Sucedeu não estar presente o tal mastrado. Que o desembargador mandante do mandato se esqueceu de avisar o conselho superior das intenções da busca. E assim foi anulada a diligência, não por quaisquer razões substantivas, que se guardam em segredo de justiça, mas por este claro e insuportável vício da falta de memória dum desembargador. Até os códigos ficavam a sangrar, se alguma coisa transitasse em julgado.
Quando eu for grande, já sei o que fazer. Poderei dispensar um senhor Roxo, mas não vou abdicar de ser mastrado, e ter um sindicato. E hei-de aconselhar os meus vizinhos todos a esfolharem os códigos e a fazerem-se juízes. Ou até desembargadores, a ver se desembargam isto tudo.

Jorge Carvalheira

Poliglotas

Entramos todos no 15, ele atrás dela, ali no Cais do Sodré. E muito antes de se chegar a Santos, há-de ela conceder que vem de Itália. Ele é estranhamente quarentão, a grenha hirsuta, as muletas a amparar-lhe o pé de gesso.
– Falas português?
– Um pocô!
– Hoje no Centro Cultural de Belém arte moderna Berardo, último dia, entrada livre!
Eu registo-lhe a fausta novidade. Ela é que não dá sinais de comoção.
– Speak english?
– Um pocô!
– Today Centro Cuturral Belaim, modern art Berardo, no money!
Passa a travessa das Galeotas, e ela impassível às formas.
– Sprich dóitsch?
– Um pocô!
– Centro Cuturral Balaim, art modern Berardo, geld nix!
Passa a travessa dos Escaleres, e ela alheada das cores.
– Hablas espagniol?
– Um pocô!
– Hoy Centro Cuturral Belén, arte moderna Barardo, no dinero!
Passa o beco do Chão Salgado e ela insensível a tragédias, indiferente a criatividades. E sou eu quem aproveita a borla, que eles lá seguem no torpedo cego.
O Centro Cuturral tem fotos de Jorge Molder, e corredores muito frescos, e multidões no seu footing a digerir o almoço e as emoções estéticas. Há mães aflitas a perguntas das crianças, e perplexos pagadores de impostos, com ar de quem jurou calar a boca.
Eu acabo a mergulhar na luz divina do Tejo, ao fim da tarde. Pura arte há-de ser a dos dois poliglotas, numa rua qualquer da Cruz Quebrada, nalgum descampado do Jamor. Mesmo de borla, a colecção congela excitações.

Jorge Carvalheira

Crónica da manhã

Primeiro, o Alberto mandou um mail, que fui ler ainda de noite.

Tenho estado afastado por andar em baixo há já uns meses largos. Não arranjo trabalho desde há seis meses, a minha licenciatura em Ciências da Comunicação não serve para nada, e a mulher da minha vida já não anda por perto.
De maneira que, há umas semanas, atingi um ponto baixo de melancolia e depressão. Acabados os exames de Filosofia, entreguei-me às delícias das vaporações etílicas, que, devo confessar-te, me aliviavam o sofrimento. Ficava tudo mais calmo, mais tranquilo, mais poético até!
(…) Sobre os maestros, é verdade, isto está a tornar-se preocupante. Bem colocados na vida, ocupam os postos certos para a batalha ideológica. São os intelectuais orgânicos de serviço. Por isso falam como falam, olham como olham, sentem como sentem.
(…) O meu futuro não me parece nada risonho, sabes? Provavelmente, quando acabar Filosofia, não poderei dar aulas, tantos são os cursos abertos e as escolas fechadas. (…)

Depois fui buscar o Courrier Internacional, que saiu hoje.

… Os japoneses dos 25 aos 35 anos vivem numa precaridade extrema. Aos freeters (free arbeiters) já chamam a geração perdida.
… Desde 2002, a primeira causa de morte entre os 20 e os 39 anos é o suicídio.
… Para Kinoshita, professor de Sociologia do Trabalho da Uni de Showa, a época actual tem traços comuns com a Revolução Industrial. No dealbar do capitalismo, havia uma multidão de trabalhadores privados de direitos e tão pobres que morriam de fome.
… Agora que a ameaça do comunismo desapareceu, o capitalismo pode regressar à sua forma original, a lei do mais forte.
… Com a globalização, as empresas podem sempre procurar no estrangeiro mão-de-obra mais barata.
… Após o rebentamento da bolha financeira, as empresas impuseram formas de emprego precário que atingem hoje um em cada três cidadãos activos.
… A paz não é uma coisa benéfica. A guerra, ao quebrar a ordem social, dá nova dinâmica à sociedade. Em vez de sofrer a discriminação e a humilhação, mais vale a guerra e um sofrimento partilhado por todos.

Ainda quis sair, à procura dum diário. Mas abri o Aspirina e dei com o post do Fernando. Foi uma óptima coisa, este achado dos americanos. Em vez de ler, vou passar a ficar-me pelos bonecos. Sei que à partida, o único direito que têm garantido os nossos filhos e netos é serem sobre-explorados, como os chineses, indianos e quejandos o são já. Mas o problema é de quem os tiver, não é o meu caso. Eu só não sei o que dizer ao Alberto.

Jorge Carvalheira

Eutrofização

O lago Chaohu mudou de cor. Vê-se, na China. Aconteceu-lhe o mesmo que ao exército vermelho. Agora é o cão de fila dos patrões planetários. Mantém na linha a força de trabalho indígena, e a toda a restante põe-lhe as pêras a três.

Assim – pudera! – mil corações derretem-se com saudades do grande timoneiro. Não fosse ele por vergonha, e até eu pedia emprestado o missalzito vermelho!

Jorge Carvalheira

Ernestina

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Havia em José Rentes de Carvalho duas Ernestinas, a mãe e a filha, a mulher e a obra. Da primeira nasceu ele assim, andarilho de muitos mundos, “romeiro sem romaria”, a viver há cinquenta anos na Holanda. Aí foi professor na Universidade de Amsterdam, aí tem visto apreciada e lida a vasta obra. Não assim em Portugal, e não admira, se Rentes de Carvalho nunca foi de cenáculos da moda, nem de incensórios, nem de capelinhas. E sobre o mais com este ar de estrangeirado.

A segunda é a espantosa e comovente saga duma família, e dum tempo, e dum certo país. “É um exemplo de como se pode passar literariamente por uma região sem se atolar nela”, e isto disse a propósito Rui Ângelo Araújo, que foi seu companheiro e alma da Periférica, e é outro animal transmontano que também se não ajeita a dar o lombo às amansias costumeiras.

Seria exagerado privilégio de Rentes de Carvalho ter vivas as duas Ernestinas. Perdeu agora uma. A mãe faleceu há dias.

Jorge Carvalheira

Notícia no blogue de José Rentes de Carvalho.

Sobre a obra do autor.

Livros publicados na Holanda.

Primícias

Os viajantes chegaram à fronteira quando a noite caía. E só João interrompeu o mutismo geral para recolher os passaportes, saiu devagar da viatura e dirigiu-se à casa dos guardas. O silêncio tornou-se mais espesso e constrangido, e Gaspar não pôde evitar um sobressalto no peito, fruto só da pouca habituação a estes andamentos, um carabineiro veio espreitar os passageiros que vêm em turismo, dobrou-se para a minúscula janela, cotejou as caras com os retratos e mandou avançar.

Nada é mais contraditório do que os homens. Passámos a fronteira de França, e sendo isto motivo de particular alívio e geral distensão, a tristeza nos peitos é maior. Estes viajantes deixaram de ter razões de insegurança, ninguém aqui virá saber quem são e ao que vêm, indagar dos falsos passaportes, esmiuçar-lhes um dente irregular no selo branco. Há longos anos tem sido esta terra um local de refúgio de portugueses, dos clandestinos da fome, dos refractários duma comprida guerra, não vai deixar de sê-lo agora para os que doutra guerra escapam. E no entanto cresce a melancolia nestes olhos, passámos a vida a pensar que a liberdade é tudo e enganámo-nos, estamos finalmente soltos e preferíamos não estar, temos o mundo todo à mão e o nosso a ficar-nos cada vez mais longe.

João é que não esconde o seu contentamento, quando chega a Baiona. Procura um restaurante aprimorado, esmera a selecção das vitualhas, pede para nós um beaujolais. O jantar é um consolo para o corpo, a gentileza de França faz o resto. Leva-nos ao comboio, falamos de João que fortemente nos envolve nos braços compridos, antes de dobrar ao fundo a esquina da calçada, uma chuva angustiada cai.

Na vida é como no cinema, conclui Gaspar, preso ainda no relance final do carro branco, insistentemente chove quando alguém se vai embora para sempre. Nos filmes entendemos porquê, na vida não.

Jorge Carvalheira

Sorte dum ladrão!

Não é preciso recuar à Lenda Negra, para encontrar o vezo predador dos espanhóis. Basta ver a lufa-lufa das traineiras chuponas. Ou pensar nas sequelas duma agricultura suicida, que abastece meia Europa e nos encurta o caminho para o deserto.
Começaram há quinze anos na raia do Côa, a comprar aos aldeãos os muros rústicos desenhados na paisagem. Alguns eram do tempo de Alcanices. Atiravam-nos ao chão, escolhiam as lascas mais afeiçoadas, e levavam-nas em camiões para forrar as casas deles. À sorrelfa e apalpando o terreno, salariando adelantados, foram alastrando à Lapa, ao Leomil, hoje ninguém sabe onde já vão. E aconselhados pela pequena pobreza, pela muita ignorância ou a desmesurada insensatez, os aldeãos foram trocando a alma por dez reis de mel coado.
Ultimamente tocou a sorte aos zimbros do planalto de Miranda, lá onde forem parte da flora natural. Têm a desgraça, os zimbros, de produzir um óleo usado na cosmética e na farmacologia. Já destroçados em Espanha, são agora uma espécie protegida. De forma que os predadores atravessam a fronteira e vêm dizimar os portugueses. Levam raízes, troncos e ramagens, que é serviço mais completo. E guiados pela pequena pobreza, pela muita ignorância ou a desmesurada insensatez, os aldeãos vendem por cinco euros um produto que em Espanha vale à vontade cem.
E não há nisto um autarca, um magistrado, um polícia, um deputado, um ministro, um regedor, a pôr ordem no desmando! Bem sei que chamam a isto a lei do livre mercado. Mas se não for a miséria a indultá-los a todos, não sou eu quem o fará.

Jorge Carvalheira

Solstício

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do site espacos.blogs.sapo.pt

A estrada serpenteia pela encosta e a aldeia é surpreendente, assim arejada e branca, no cimo da subida. Tem casitas das antigas, onde só dobrado entrava um homem. E vivendas do minério, feitas no tempo da guerra, de cantaria rude. E as casas da emigração, airosas como caixotes de marçano, e tão omnipresentes como os deuses.
A gente é pouca, mas ainda assim compõe a procissão que já vai a sair para o arrabalde, a caminho do monte. Vê-se um pombal em ruínas, hortas com almendras desgarradas, campos que já deram pão. E fraguedos e matos.
Há milhares de anos que é assim. Coloca-se a vestal num côncavo da pedra, a olhar por cima do rochedo. Ao longe o sol mergulha sobre um monte. E a multidão assiste, com ramos de oliveira na cabeça, e capelas de flores na mão. O celebrante veio da cidade, a cumprir o ritual. É ele o mais pagão de todos, e tem cabelos compridos, como os cristos. Entoa poemas da Bretanha, escuta as gaitas de foles que vieram de Miranda, os bombos de pele de cabra, e pede compostura à multidão. Há uns noviços que vêm de moto-quatro, e tratam o sol por tu, e não ligam patavina.
Alinhado com a vestal e o rochedo, no monte para lá do vale, o sol morre lentamente, no solstício do verão.
– Agora só para o ano! – alvitra um homem careca, ali ao lado.
– E daí, quem sabe lá! – arrisco, numa descrença.
E olhando as vinhas do vale, não sei o que me é mais comovente. Se o sol que foi dormir atrás do monte, e amanhã se vai embora, se os homens debaixo dele.

Jorge Carvalheira

Favores activos

PÚBLICO, 13 Jun Edição Porto

Pinto da Costa foi acusado de corrupção activa desportiva no caso dos alegados favores sexuais aos árbitros Jacinto Paixão, Manuel Quadrado e José Chilrito, que estão acusados de corrupção passiva.

Tudo bem, à superfície! Mas no caso de os papéis estarem invertidos, mantinha-se a acusação?
E o jornalista continuava a escrever?

Jorge Carvalheira

Linha vermelha

– Nem mais um soldado para as colónias!
– O povo libertou o grande educador da classe operária!
– Em frente pela destruição da escola capitalista!
– Passagens administrativas já!
– O proletariado revolucionário fuzilará a linha negra!

Nenhuma destas consignas está no editorial do PÚBLICO de hoje, 15 de Junho. Mas bem podia lá estar.
Mutatis mutandis, claro. E até suspeito de que os trinta dinheiros saem da mesma bolsa.

Jorge Carvalheira

10 de Junho e cortesias

Passo o dia em Montesinho, onde dormita um Portugal cansado. Não há contrabandistas no rio Pingadeiro, nem já se passa nele a raia a salto, que a fronteira é uma porta escancarada. Vim ver o Parque Natural, desobrigar-me, talvez, de multidões. E embora seja isto uma lonjura, daqui mando cortesias à tribuna do 10 de Junho, que as distâncias de agora não são nada.
A primeira, segundo a ordem canónica, a Sua Excelência o Presidente da República. Quando falou do passado, o seu discurso trouxe-me lembranças caras, que eu já tinha por perdidas. Era uma redacção da 4ª classe, puseram-me a lê-la na festa da paróquia, haverá cinquenta anos. E o tema era a Gesta Lusa. Eu tinha sobre o assunto uma ideia muito vaga, e mais ainda seria a do povo todo que me ouvia. Mas a professora garantira-me sucesso, e assim foi. Falei dos nossos heróis, que na altura tinham marca registada, falei do orgulho nas conquistas do mar, arrisquei mesmo que Deus nos estava agradecido por causa da fé cristã, e acabei a enaltecer o comprimento da Pátria, que chegava de Lisboa à Sibéria, ou coisa assim.
No final não se calavam os aplausos, foi um dia triunfal. Para dizer tudo, foi a minha bebedeira de glória. Falo da euforia dela, porque a ressaca só chegaria mais tarde. Voltei agora a vivê-la, a bebedeira de glória, a euforia.
A segunda cortesia é a João Benard da Costa, se ma aceita. Com o jeito que ele tem, acendeu bóias na rota sobre as águas. Sempre ajudam quem quiser a atravessar o canal. Melhor só terá feito Jesus Cristo, quando acautelou a Pedro, a gritar que se afundava:
– Vê bem onde estão as pedras, minha besta!

Jorge Carvalheira

Dia da Raça

Falam-nos dum passado de marinheiros audazes, em que nos fomos ao mar,
a descobrir novos mundos que demos ao mundo velho.

Do mar trouxemos por junto uma epopeia de mitos, feita de deusas carnudas,
e uns tantos heróis pintados, e adamastores de papel.

Arrenego um tal passado. Que ou não somos, agora, o que já fomos, ou
nunca fomos o que nos dizem que somos.

Levaram-nos, é o mais certo, a fingir o que não fomos. Se assim for,
nunca seremos o que nos dizem que somos.

Jorge Carvalheira

Peripécia com cadela e bispo

Peço desculpas ao Aspirina inteiro, pela vastidão da postagem. Mas encontrei esta história ali num disco velho. E hoje é o dia de eu me divertir.

Nesse tempo o Largo João de Almeida era para nós um sítio onde paravam táxis. Só muito mais tarde havíamos de saber que, por trás do topónimo, se escondia um herói de bigodes, um guerreiro do império que passara o melhor da vida a espingardear bacongos nas matas dos Dembos, e a enxotar os cuamatos das savanas da Huíla.
Ninguém levava as glórias nacionais mais a sério que nós, que resistíamos com tenacidade às provas de fogo das aulas de história. Apenas se sentava, o velho mestre surdo, logo chamava em seu auxílio um lente
– tu! traz o compêndio!
E lá ficava a ler páginas e páginas do livro do Matoso. Às vezes morria um rei, achava-se no mar uma ilha deserta, casava-se a princesa, havia um terramoto. Um dia alguém matou o Miguel de Vasconcelos, amigo da duquesa. E logo a voz do mestre, com aquela autoridade que nasce do saber
– sublinhai!
E era na perturbação desses momentos que eu esticava o olho à carta de marear do adversário, e lhe dava o tiro de misericórdia no último submarino.

Jorge Carvalheira

Continuar a lerPeripécia com cadela e bispo

Rendimento mínimo

Nestes prados da quinta dos cavalos não há cavalos nenhuns. Só João vai caminhando pela berma da estrada e o viajante pára ao lado dele. Não sendo velho é uma figura antiga, delida pelo tempo, ou pela vida. E há nele a servitude primitiva que este viajante já julgava extinta.
De manhã tirou-se de cuidados e foi à vila ao médico espanhol, à boleia dum vizinho. Em breve se despachou e agora não há transportes, não tem remédio senão voltar a pé. Tem a mãe à espera em casa, já muito velha, e ainda mais achacada do que ele. Há mais irmãos mas desgarraram todos, depois que voltaram de Angola. Foram para lá quando eram pequenos, cresceram nos colonatos do Cunene. Havia o gado, e aquelas terras grandes… Agora o que lhe vale é o rendimento mínimo.
Quando o carro estaca no largo, João ainda não se convenceu de que o viajante parou na estrada e o trouxe para casa. O que lhe vale é o rendimento mínimo. E ao vê-lo assim, a afastar-se cabisbaixo, fica a pensar o viajante que deu boleia a um símbolo de alguma coisa maior.

Jorge Carvalheira

Tudo pela Pátria

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Manuel Passos é homem para sessenta. – Mais um pouco! – concede ele, a silvar a dentadura. Há trinta anos regressou de Angola e deixou passar o tempo. Logo que o génio lhe deu algum sossego, arranjou a caixa dos apretrechos. E quando está de maré vem abancar no Rossio, os olhos cheios de paisagens africanas. Toma o lugar do cliente, encosta-se à parede da farmácia, e fica-se a olhar os restos do império, que ainda passam.
Traz no braço dois obuses tatuados, pequeno espólio do serviço militar.
GAC 2 – Tudo pela Pátria – 1968
E ao mesmo tempo que vai puxando o lustro, olha de lado um africano enorme, que lá vai, de braço dado, com a sua matrona branca.
– Cada um com o seu é que estaria bem! Branco a branco, preto a preto! Mas cada um sabe da sua vida!
A matrona e o africano pararam no passeio, a quezilar com um patrício inconformado.
– A cabeça é o ponto fraco deles, vê-se na porrada e nos estudos. Não são dados a inventar, ficam-se pelo que ouviram. E nunca se atiram de cabeça!
As lembranças que me sobraram da guerra desmentem-lhe a teoria. Mas alimento a conversa e tomo notas.
– Isso é para quê, diga lá?!
– Para nada! É tudo pela Pátria!
O Passos põe-se a olhar os canhões que traz no braço. E sorri-me, displicente, já andava esquecido deles.

Jorge Carvalheira