Tudo pela Pátria

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Manuel Passos é homem para sessenta. – Mais um pouco! – concede ele, a silvar a dentadura. Há trinta anos regressou de Angola e deixou passar o tempo. Logo que o génio lhe deu algum sossego, arranjou a caixa dos apretrechos. E quando está de maré vem abancar no Rossio, os olhos cheios de paisagens africanas. Toma o lugar do cliente, encosta-se à parede da farmácia, e fica-se a olhar os restos do império, que ainda passam.
Traz no braço dois obuses tatuados, pequeno espólio do serviço militar.
GAC 2 – Tudo pela Pátria – 1968
E ao mesmo tempo que vai puxando o lustro, olha de lado um africano enorme, que lá vai, de braço dado, com a sua matrona branca.
– Cada um com o seu é que estaria bem! Branco a branco, preto a preto! Mas cada um sabe da sua vida!
A matrona e o africano pararam no passeio, a quezilar com um patrício inconformado.
– A cabeça é o ponto fraco deles, vê-se na porrada e nos estudos. Não são dados a inventar, ficam-se pelo que ouviram. E nunca se atiram de cabeça!
As lembranças que me sobraram da guerra desmentem-lhe a teoria. Mas alimento a conversa e tomo notas.
– Isso é para quê, diga lá?!
– Para nada! É tudo pela Pátria!
O Passos põe-se a olhar os canhões que traz no braço. E sorri-me, displicente, já andava esquecido deles.

Jorge Carvalheira

12 thoughts on “Tudo pela Pátria”

  1. Muitíssimo Melhor!
    É verdade. Desde o engraxador ao político, passando pelo idiota que nem sabe o que é ser racista, uma grande maioria ainda diz: “Branco a branco, preto a preto”.
    As suas, são as lembranças da guerra, as minhas, as de uma vida.
    E dolorosamente lhe digo que em situações que aqui não ficaria “bonito” referir, o engraxador até é benevolente.
    Mas a Instituição estava criada, as ordens emanadas pelo homem há pouco eleito pelos portugueses (bebo uma taça de vinagre a isso, que foi o sabor que me ficou depois de ver e ouvir tanta pantominice: amargor) e o resto, bem, o resto a natureza humana sabia completá-lo na perfeição.
    Não vale a pena “chover no molhado” como diz o povo. No entanto é obrigatório tentar aprender com os erros passados. Embora…

  2. Indeciso sobre que amostra deva mandar ao laboratório para descobrir qual a “moral” desta história.

    No entanto, desconfio que o virus implicado nesta infecção é o mesmo que encontrámos noutras criticas do género que costumas varrer para o canto desta sala e que defendem o princípio de que todos os engraxadores são racistas e todos os chico espertos que não vêem grande utilidade nestas tuas arrancadas serôdias contra fascismo dos malmequeres são engraxadores.

    Estes teus mini-estudos estão sempre cobertos de névoas. É por isso que nunca ninguém se atreve a desancar-te com medo de ferir-te injustamente na cabeça. Que não mereces, porque também és escravo das palavras permitidas.

  3. Meu caro Watson
    Esta história não tem ‘moral’ nenhuma. Nem defende qualquer dos ‘princípios’ que enuncias. Não é nenhuma ‘arrancada’, embora fizesse falta, nem é um ‘estudo’ de nada.
    A sua única ‘utilidade’, com vantagem tua, é estar à tua frente. Ou tu gostas, ou não gostas.
    O resto não to posso explicar. Para lá dos poucos casos, que concedo, em que o pé me foge para a chinela, a única coisa que me ocupa aqui é a literatura. E essa nunca trata de fazer afirmações. Sugere, quando muito, deixa no ar, se o consegue.
    Se te apetece desabafar, desanca meio mundo e diz o que pensas, a ideia é mesmo essa. Mas não me peças que traga para aqui a lista das compras.

    Dos ‘malmequeres’, confesso-te que gostei.

  4. A questão, aguda, é essa, Aragem!
    Quem não aprende com os erros passados, passa a vida a repeti-los. E boas vidinhas se têm feito disso!

  5. Leio, e releio, e vejo que, afinal, quase tudo (não tudo, o Mundo é grande) está aqui:

    Esta história não tem ‘moral’ nenhuma. A sua única ‘utilidade’, com vantagem tua, é estar à tua frente. Ou tu gostas, ou não gostas.

    O resto não to posso explicar. Para lá dos poucos casos, que concedo, em que o pé me foge para a chinela, a única coisa que me ocupa aqui é a literatura. E essa nunca trata de fazer afirmações. Sugere, quando muito, deixa no ar, se o consegue.

  6. Na minha modesta opinião, essa tem barbas.

    E na minha ainda mais modesta opinião, este «Radical» quer ter graça.

    Pois não desista.

  7. Entendamo-nos, radical!
    O facto de não se ocupar de afirmações, não reduz a literatura a inócuos jogos de alcova.
    Porque ela sugere, deixa no ar, se o consegue.
    É que, não o conseguindo, não chega a ser literatura.
    No melhor dos casos é uma boa intenção. No pior é mercadoria, é um ruído. De que o ar anda cheio, compreensivelmente.

  8. JC,
    Poucos aprendem com os erros passados. Porque não querem, não lhes convem ou simplesmente porque lhes é mais cómodo ser o infeliz a quem tudo amargosamente aconteceu. Isto num contexto generalizado é muito comum aos portugueses.
    Se alargarmos o olhar, verificamos, que por força desse modo de ser, nos encontramos, como povo, no que há de “melhor”, na linha da frente.
    Nada mais expressivo que o debate de ontem à noite acerca da OTA. É preciso ter pachorra…
    Não chegamos a lado nenhum.
    Produziriamos, decerto, muito mais a engaxar sapatos e lendo a prosa do Jorge Carvalheira.

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