Segunda, 28 de Maio, 10.07 da matina. Este exemplar pagador de impostos, e vosso humilde escriba, recebe ordem para encostar o seu magnífico bólide numa rotunda de Cascais, mesmo no raio da rotunda. O agente é carrancudo, e, logo que se apanha com os documentos da viatura, dispara “O senhor sabe porque é que foi mandado parar?…”. O meu intrigado e resignado “Não…” demorou menos de 1 segundo, mas nesse intervalo tive tempo de rever o trajecto por uma rua sem trânsito, sem semáforos, sem traços contínuos, de sentido único, e percorrida dentro do limite de velocidade. Também tomei consciência da inovação metodológica: a pergunta a suscitar a autoavaliação, o Estado a promover a responsabilidade, o agente a ser agente de pedagogia. Fiquei dividido entre a elevação da abordagem e a suspeita de me estar prestes a descobrir inusitado vilão rodoviário.
“Onde está o documento da inspecção?…”. Também gostaria eu de saber, eu que nem sabia da obrigação de andar com ele. “Que documento é esse?…”, larguei enquanto fazia o número de procurar várias vezes na carteira. Olhava para o chão do carro, bancos, portas, à espera de dar com gavetas imaginárias a abarrotar desses documentos. “É um assim verde!”, e mostrava-me o papel do seguro numa mão e a impaciência de quem manda na outra. “Pois, não tenho. Mas tenho ali o selo…”. Marquei pontos, havia uma prova a meu favor que o obrigou a um movimento defensivo. “Sim, isso eu sei que também consigo ver, mas falta o documento!”. E faltar o parvo papel correspondia a 30 euros a menos no meu parco papel, fui informado. Entretanto, uma voz terceira invadiu o nosso colóquio. Transmitia referências precisas de um automóvel, marca, cor, e sentia-se urgência na voz. O agente dava passos incertos, dobrava a minha papelada, mirava a entrada da rotunda. Comecei a ficar concentrado no acto seguinte, antecipando o pagamento por Multibanco nos próximos segundos.
Aproximou-se da janela, abaixou-se e, quase íntimo, perguntou “Vinha a falar ao telemóvel?…”. Desta vez ultrapassei o segundo antes de responder. Talvez um segundo e meio, mais coisa menos coisa. Até deu para catrapiscar os meus dois telemóveis ali em frente às mudanças. Que pergunta incrível. Era uma pergunta que nos catapultava num lance epistemológico. Tanto eu como ele estávamos obrigados a mudar de papéis. Agora, era eu o agente da autoridade, com poder de aplicar a lei. Ele, um civil que está perdido, a pedir informações. As possibilidades eram variadas, feéricas. Era-me dada a possibilidade de ser infractor, denunciador, fiscalizador e juiz em causa própria. E tudo isto antes da 11 da manhã. Apetecia-me, então, prolongar esse estatuto. Usar o cargo para resolver problemas bem mais importantes, como os relativos às questões existenciais. Por exemplo, responder às perguntas “Ando a falhar a minha vocação?” e “Sou verdadeiro com os que amo?”, procedendo depois à passagem das respectivas multas em caso de transgressão. Ou dizer que iria pensar, que responderia depois do almoço, lá mais para a tarde, se não chovesse. Enfim, a pergunta era pessoal. Que tinha aquele gajo a ver com as minhas chamadas telefónicas?