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Limites do tolerável e da decência

Como tão bem frisa o Carlos Esperança, a recusa em deixar-se interrogar deixa-nos com um Presidente da República que falta à responsabilidade primeira: o seu juramento. É espantoso – isto é, ainda bem que continuo a espantar-me – haver quem defenda a postura de Cavaco, sequer quem não dê um berro ou murro na mesa de indignação. Esses são os mesmos que encheram a boca com a seriedade e honestidade da Manela, e que sentem qualquer crítica a Cavaco como uma falta de respeito e insolência. São os mesmos que apregoaram o mandamento para se falar verdade aos portugueses e que foram votar na Política de Verdade. São os mesmos que rejubilam com qualquer difamação ou calúnia contra Sócrates, venha de onde vier e como vier. Não há coincidências.

Os limites do tolerável e da decência foram há muito violados em Belém. Há, pelo menos, 18 meses. Pelo menos.

Justamente

As reformas que a partir de 2005 foram iniciadas correspondiam, no espírito, a uma rara unanimidade. O tema das reformas dominou o discurso de Sampaio, tomado aqui como mínimo denominador comum da política nacional, desde o abandono de Guterres. O regime estava, indisfarçavelmente, enterrado num pântano de inércias e vícios adquiridos no período revolucionário, uns, herdados do salazarismo, outros. Trabalhadores, classe média e patrões, todos tinham boas razões para acolherem um Governo reformista. O sarilho era conseguir conciliar interesses aparentemente tão díspares, quiçá contraditórios. Isto, para começo de conversa; ninguém sequer discutindo a viabilidade do intento reformista num país politicamente imaturo, intelectualmente débil e civicamente atrofiado. No estouvado Governo de Santana, ainda banzos com a traição de Barroso, o desânimo era avassalador. Superior à aguda consciência da necessidade e urgência das reformas, na pena dos publicistas ao tempo, só a mais inamovível descrença na capacidade da classe política para as efectuar. Foi este caldo cultural e sociológico que deu a 1ª maioria absoluta ao PS – o povo queria coragem na governação, queria fugir da decadência.

Depois veio um Sócrates que era como os melões, tinha de abrir-se para saber o que valia. Aqueles que desvalorizam o que foi alcançado no campo das reformas, são apenas banais mentirosos. Mas aqueles que desvalorizam o que foi tentado, e que por razões diversas está incompleto ou não passou dos primeiros passos, estão a ser sinceros. Eles não compreendem o alcance de, pela primeira vez, um Governo ser capaz de exigir a fortíssimos grupos de interesses novas e mais justas regras. A novidade é tão grande que mesmo as reformas apenas começadas provocaram alterações simbólicas percepcionadas pela comunidade. E em nenhum outro campo a alteração simbólica é tão importante como no campo da Justiça. Porque não temos problema maior, mais grave e mais difícil.

Este texto de Ricardo Sardo é um de muitos que anuncia esta nova era em que a comunidade começa, finalmente, a exigir da Justiça o cumprimento do ideal democrático e o fim da sua perversão impune. Esta questão diz respeito a todos os portugueses que estejam dispostos a exercer a sua soberania. Pois é disso que se trata, justamente.

Deixem-no andar por aí

Santana tem muito melhor campanha do que António Costa. Os cartazes são particularmente eficazes, tudo neles estando certo do ponto de vista das técnicas de comunicação, por um lado, e da demagogia, pelo outro. Também ganha na oratória e no descaramento, como é sua imagem de marca.

A campanha do PS para Lisboa é algo que reproduz a parte de trás de um acidente automóvel. Para se avaliar rapidamente a confusão estratégica daquela equipa, basta assinalar que existem 5 assinaturas possíveis:

Unir Lisboa
As pessoas são o [coração] de Lisboa
Uma cidade das pessoas
Uma equipa que faz bem
Uma questão de confiança

Este caos na comunicação, e a irrelevância das mensagens escolhidas, é comum em grupos cuja autoridade não está bem hierarquizada e os âmbitos de trabalho não estão bem definidos. Aposto meio jantar em como toda a minha gente alvitrou e quis participar com a sua frase bem esgalhada, pois o apelo a brincar aos publicitários é tão irresistível como o de sermos treinadores de bancada. Já agora, a parolice do coração terá vindo da Roseta? Se não veio, poderia ter vindo; pelo que aproveito para me rebolar no preconceito sexista.

Depois de ouvir António Costa várias vezes, e de ler o material de campanha, confesso que não faço ideia de qual seja a sua ideia para a cidade. Provavelmente, não tem nenhuma, sendo demasiado realista para esses lirismos. Mas devia ter tido, podia ter feito uma campanha onde o coração não fosse apenas de papel. Vai ter o meu voto, mas só porque Santana merece continuar andando por aí. Por aí longe.

Reino de Pacheco

Um poder como o do PS em Portugal tem tradicionalmente atraído para si “colaborações” ingénuas, ou interessadas, de duas maneiras. Uma é sendo forte, marcando bem o seu traço no chão, de modo a que todos saibam que, ou estão daquele lado, ou ficam de fora. Como se dizia numa história espanhola, quem se mexe não fica na fotografia. E quem não fica na fotografia não tem benesses nem protecção. Por muito que agora se ataque o falar-se de “asfixia democrática” (não é o melhor termo, mas serve), o resultado é mesmo esse: perseguições, marginalizações, punições. Como aconteceu com a TVI, posta na ordem, e como está a acontecer no Público. Como aconteceu na DREN, e nas múltiplas DREN que existem por todo o lado. (De passagem, noto que deixar de falar deste ambiente malsão seria um grande favor que se podia fazer ao PS, pela simples razão… que ele existe mesmo.)

in AS SEREIAS DO PODER

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Porquê e para quê continuar a malhar no Pacheco? Porquê, por duas razões: (i) resiste uma memória do tempo em que gostámos dele, em que a sua excentricidade parecia independência e a sua independência aparecia excêntrica – ou seja, em que ele foi importante para o nosso crescimento crítico; (ii) é o próprio a reclamar para o Abrupto o poder de uma secretaria de Estado, a que se junta a ubiquidade mediática: jornal, revista, rádio e TV – ou seja, o mercado opinativo continua a dar-lhe importância máxima. Para quê, para este singelo objectivo: aproveitar o mal que faz para o bem que há a fazer.

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Caruncho

O que é que está por detrás do comportamento de uns senhores que vieram para aqui?

Jardim exibe, em crescendo, sinais típicos de um psicopata. Linguagem ultrajante contra as mais altas instituições nacionais e seus representantes, violação dos direitos constitucionais de deputados, tiro ao zepelim, apelo à violência popular, ameaças à PSP. O padrão é óbvio, o qual se estende às suas figuras politicamente mais próximas na Madeira. Neste momento, já não estamos apenas dentro dos limites de uma retórica folclórica inconsequente. Jardim quer à viva força instituir um Estado paralelo. E esse intento não é grave, pois para lidar com as ilegalidades existem a Constituição e o edifício jurídico. O que é grave, terrível, é a cobardia do PSD. Pelos vistos, não há nenhum social-democrata capaz de pôr a dignidade de Portugal à frente dos desvarios na Madeira.

Que estranho, e penoso, ver o partido de Sá Carneiro corroído pela cobardia.

Abstencionistas há muitos, seu palerma

2005: 5.713.640

2009: 5.658.495

Votou quantidade quase igual de pessoas, diferença de 55.145 eleitores a menos. É um bom resultado, especialmente se tivermos em conta os seguintes factores:

– Campanha negra contra Sócrates desde 2007, com altíssima intensidade a partir de Outubro de 2008 por via do caso Freeport e sua exploração na comunicação social.

– Oposição ao Governo pelo Presidente da República, em crescendo até mesmo ao dia da votação.

– Campanha do PSD geradora de confusão e desmobilização, tanto pela ausência de propostas como pela estratégia de criação de medo.

– Campanha do BE radicalizada no voto corporativo e de protesto.

– Campanha da CDU tribalizada, sem qualquer novidade ou mensagem relevante.

– Movimentos de promoção da abstenção, a que acrescia grande aumento do desemprego.

– Receio da gripe A, com pico de pânico causado pela notícia da morte de um candidato autárquico no dia anterior à eleição.

Quem realça a perda da maioria absoluta, e os 500.000 votos a menos no PS, está só interessado em continuar a mentir aos outros ou a si próprio. A maioria de 2005 não por acaso foi a primeira para o PS. Foi preciso um ciclo desastroso do PSD para tal acontecer, foi preciso um Durão traidor e um Santana igual a si próprio. Tendo em conta o desgaste e ataques a que Sócrates esteve sujeito, também o choque social das políticas reformistas, o que deve ser matéria de reflexão está nos resultados dos improváveis vencedores.

Assim, não admira que o CDS tenha captado muitos eleitores que encontraram na simplicidade pragmática e conservadorismo do discurso de Portas um porto de abrigo face à dificuldade em dar sentido às mensagens contraditórias, caóticas e decadentes de Ferreira Leite.

Tal como não admira que o PS, e Sócrates, tenham ganhado com inequívoco mandato governativo – apesar de terem tido tudo e todos contra eles. É que há, pelo menos, 2 milhões de portugueses que não se deixam enganar. Que escolheram a coragem de governar.

Aqueles que não querem governar, e cujo programa e prática parlamentar não passa de um permanente boicote à governação, são os piores abstencionistas. Temos de os suportar, mas são insuportáveis.

Ainda vais a tempo, Bento

Contra a Fiorentina, em Alvalade, Miguel Veloso marcou um belíssimo golo. E que fez logo a seguir, o animal? Correu para os adeptos, mas com esta variante às celebrações usuais: desatou a chamar nomes e a fazer ameaças de ir bater em alguém. Para o Veloso, os adeptos existiam para o servir. Como lhe tinham feito críticas no passado (mas quem?), ele agora vingava-se (mas contra quem?). O seu golo, portanto, tinha sido um acto de generosidade a contragosto, ocasião para um desforço com destinatário colectivo.

Esta atitude é o espelho de uma cultura instituída por Paulo Bento, o qual optou sempre por uma posição corporativa contra os adeptos. Têm sido vários os momentos em que faz declarações de oposição à oposição dos sócios e simpatizantes, como ainda há dias no jogo com o Herta. Como se a existência do clube e da equipa de futebol fosse um favor que nos fazem. E, para o desconchavo ser completo, a malta nas bancadas nem precisava de ver bom futebol. Bastava que os jogadores conseguissem passar a bola uns aos outros até chegarem perto da baliza contrária. E depois que chutassem para o espaço que existe entre o guarda-redes e um dos limites da baliza. Não era preciso mais nem é pedir muito. Ora, quando Bento se insurge contra o desgosto de quem ama, está a anular o vínculo sagrado que faz do futebol algo que não se confunde com o trabalho nem com o espectáculo, apesar de implicar trabalho e se realizar como espectáculo: o sortilégio.

Por mais ideias que tente passar aos jogadores, o treinador não joga. O treinador não defende, não chuta, não marca. O treinador assiste ao jogo como qualquer outro adepto. A única diferença está no poder dado ao treinador para fazer substituições. Fraco consolo, como se sabe. Assim, resta ao treinador que ambicione ganhar campeonatos, e troféus, descobrir como se tornar num xamã. Aprender a dominar as energias naturais para obter resultados sobrenaturais, sem visível intervenção física, material, corporal. Tal e qual como faz qualquer adepto, seja no estádio ou em casa, quando respeita superstições e utiliza amuletos e preces. Por isso, a haver uma reacção corporativa da parte de um bom treinador, ela deverá ser sempre a favor dos colegas xamãs, não dos demónios e titãs que se confrontam sem saberem que a sorte é apenas um destino que se ignora.

Ainda vais a tempo, Bento, tens é de começar por sacrificar esse discurso contra o espírito do clubismo.

Uma Presidência escavacada

Mentiroso ou burro. Cavaco Silva entra, inevitavelmente, numa destas duas categorias após a declaração do dia 29 de Setembro de 2009, recebida com unânime perplexidade e tristeza. Uma declaração que começou logo por ofender os portugueses ao ser destinada à comunicação social, e acabou por nos deixar assustados com as dúvidas, umas antigas e outras novas, que ficaram a envolver o carácter e capacidades mentais do Presidente da República.

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Cineterapia

la notte antonioni
La notte_Michelangelo Antonioni

Onde está o amor? Está esquecido. Vagueia numa cidade cercada de ruínas, de violência. O amor está no hospital. Morre desenganado ou é puro desespero. O amor está na rua e na multidão. É um amor indiferente, oco. Dividido. Cheio de luz.

Começava a década de 60.

O milionário quer comprar o intelectual na moda. O casal que não se ama, nem se odeia, assiste com prazer ao espectáculo erótico-circense do casal de pretos. A filha dos milionários é bela, transparente e lê Hermann Broch. Chove na festa, as máscaras são trocadas por máscaras. Perto da piscina, beija-se a estátua de Baco.

Naquela hora em que a noite acaba e o dia ainda não começa, ela lê a carta onde o escritor inventou o amor. Ele já não se lembrava de que o amor é um sono acariciado pela escuridão.

Depois, a câmara abandona-os. Nada mais têm que nos interesse. Eles são a natureza das coisas. Nós, o cinema.

Cu-incidências

Alguns dos que em Portugal exigiram segundo referendo ao aborto, e cujas repetições continuariam a exigir, até que o Inferno gelasse, enquanto não ganhassem, são também os que mais protestam contra o segundo referendo ao Tratado de Lisboa na Irlanda. Nos dois casos, para defenderem posições opostas, invocam sempre a democracia.

Como é larga, e lassa, a democracia destes democratas.

Marcelo do catano

A intempestiva pseudo-demissão de Lima poderá ter resultado do que disse Marcelo na noite anterior, quando exigiu uma radical mudança de estratégia na Casa Civil? É a melhor explicação para a sequência absurda que liga o adiamento para depois das eleições de nova jogada nesse tabuleiro e um movimento brusco que levou à perda da rainha. Mas a ter sido assim, seria condizente com o desnorte que a Presidência sempre exibiu desde o caso dos Açores, publicamente, e desde Abril de 2008, secretamente. Tal cenário também estaria de acordo com as sequentes manobras de Sol e Expresso, no fim-de-semana eleitoral, a recuperarem a conspiração das escutas, a baralharem o caso Lima e a prepararem um cenário passível de se adequar a diferentes resultados eleitorais.

Vendo-os ao longe, não os ouvindo, podemos cair num preconceito positivo: imaginar que os maiores responsáveis pela política nacional, governantes e dirigentes, sejam igualmente responsáveis maiores perante a comunidade e si próprios. Tal crença não resiste a uma 4ª Classe bem feita, mas no ricochete não devemos enfiar a cabeça no pólo oposto, assim deixando o cinismo e a decadência vencerem. Pelo que Cavaco tem direito a ter dúvidas e a enganar-se com cada vez maior frequência, sim senhor. Felizmente, também tem amigos como o senador Marcelo, o qual se esforça para salvar o que ainda restar para salvamento. Quando pediu um puxão de orelhas para a fonte do Público, ficou clara a sua reprovação pelo berbicacho onde Belém se tinha metido. Havia até um consolo sobranceiro na admoestação, como se ele tivesse anteriormente avisado para não irem por aí e agora estivesse a cobrar com juros o despeito de não lhe terem acatado o conselho. Esta possibilidade de um conjunto de humanos demasiado humanos andarem a brincar aos Estados é tão verosímil como a que pretendeu fazer de Sócrates o imbecil que chegava ao SIS e encomendava uma dúzia de microfones no Palácio de Belém.

Ontem, Marcelo e Vitorino tiveram mais uma ronda de negociações. O assustado rosto de Marcelo era a bandeira branca, o sinal da rendição completa. Ele só pedia uma coisa: deixem que o meu General conserve alguma dignidade. Nada de algemas nem de julgamentos. Passemos directamente para a prisão domiciliária, com ocasionais passeios no jardim. Marcelo garantia a Vitorino que Cavaco se iria portar bem. Bastava que todos fingíssemos acreditar naquela estouvada explicação do ultimato à portuguesa, e que não mais tocássemos na rocambolesca tramóia das escutas e vigilâncias.

Lá está, Agosto é um mês muito propício a acidentes com cadeiras.