Arquivo da Categoria: Fernando Venâncio

Ódios velhos

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Chegavam sempre no começo do outono, quando os corvos passavam ao fim da tarde, a grasnar às frialdades que vinham de Além-Douro. Interrompiam-nos a bola no terreiro, saltavam das carripanas escuras, abriam as gaiolas das matilhas. E caíam nos braços dum lavrador lá do povo, inchado por ter amigos na cidade. Soltavam palavrões que eu julgava proibidos, numa língua esquisita de pagãos, e escarravam muito pelo chão.
Manhã cedo faziam-se aos caminhos, de espingarda na ombreira, a açular a canzoada. E não havia brejo em todo o vale inteiro que escapasse à invasão. O cainçar dos podengos ouvia-se nas quebradas, e os ecos da fuzilada faziam ricochete nas encostas do vale, monte cá, monte lá, até ao cair da noite.
Retiravam-se ao terceiro dia, com as grelhas de metal enfeitadas de perdizes a largar nuvens de penas, e rosários de coelhos a pendular nos telhados das carripanas escuras.
Hoje vivemos paredes-meias. Os palavrões já me são familiares, e ao sotaque de pagãos acostumei-me aos poucos. Mas não sei como indultá-los do olhar morto das lebres, enforcadas nas janelas, a mandarem-me corrê-los à pedrada.

Jorge Carvalheira

Dois debates: Galiza e Portugal

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CUMPLICIDADES e CONTRABANDOS: é o sugestivo tema para dois debates sobre as relações culturais entre Portugal e a Galiza. Terão lugar na Biblioteca do Museu República e Resistência, no Espaço Cidade Universitária, Rua Alberto de Sousa nº10-A, Zona B do Rego, Lisboa.

[e não, como noticiámos primeiro, na Estrada de Benfica]

TERÇA, 15 de Maio, 18.15 h

Debate moderado pela Directora do Instituto de Estudos de Literatura Tradicional,
Prof. Ana Paula Guimarães. Debatem

Camiño Noia (Univ. Vigo)
Clodio González Pérez (Conselho da Cultura Galega)
João David Pinto Correia (Univ. Açores)
Paula Godinho (Univ. Lisboa)

QUARTA, 16 de Maio, 16.00 h

Debate moderado pela Coordenadora do Centro de Estudos Galegos,
Prof. Graça Videira Lopes. Debatem:

António Medeiros (ISCTE, Lisboa)
Fernando Venâncio (Univ. Amsterdam)
María del Carmen Espido Bello (Univ. Compostela)
Pilar García Negro (Univ. Corunha)

Semana de Cultura Galega

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PORTUGALIZANDO. SEMANA DE CULTURA GALEGA EM LISBOA

Entre os dias 11 a 19 de Maio, decorrerá em Lisboa a Semana da Cultura Galega Portugalizando. Organizada pela Cátedra de Estudos Galegos da Universidade de Lisboa, o Centro de Estudos Galegos da Universidade Nova de Lisboa, o Instituto de Estudos de Literatura Tradicional da mesma Universidade e a Dirección Xeral de Creación e Difusión Cultural da Consellaría de Cultura da Xunta de Galicia.

Este programa ainda conta com o apoio da Secretaría Xeral de Política Lingüística, da Secretaría Xeral de Emigración, ambas da Xunta da Galiza e da Juventude da Galiza – Centro Galego de Lisboa. Esta semana, agendada em torno do Dia das Letras Galegas (17 de Maio), abarcará diversas vertentes da cultura galega contemporânea.

A iniciativa afigura-se da maior relevância para a divulgação da cultura galega contemporânea, e para o estreitamento das relações culturais entre Lisboa e a Galiza, povo que tanto contribuiu para a identidade da capital portuguesa.

Mais informações aqui e aqui.

Jorge Buescu ataca de novo

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Há sensações assim. Saber que vai sair um livro – e que a gente vai comprá-lo. Porque nunca poderá decepcionar.

Na informação que a editora Gradiva faz regularmente chegar por mail, vejo que, a partir de 22 de Maio, há aí um novo livro de Jorge Buescu. Sim, esse mesmo de O Mistério do Bilhete de Identidade e Outras Histórias e de Da Falsificação de Euros aos Pequenos Mundos. São histórias de encantar: exactamente porque são verdadeiras – ou muito próximo disso.

Vem agora O Fim do Mundo Está Próximo? E é anunciado assim:

«O que é que poderá estar por detrás do funcionamento de um chuveiro, de uma vitória no euromilhões, do sexo ou do fim do mundo? Neste novo e brilhante livro de Jorge Buescu, um dos divulgadores de ciência mais interessantes e bem sucedidos do nosso país, o leitor descobrirá, com a ajuda da matemática, que afinal coisas que pareciam distintas partilham relações profundas e que o conhecimento humano não está dividido em compartimentos estanques. A matemática tem afinal inúmeros segredos para revelar e é isso que a transforma numa ciência tão fascinante.»

Está a ver: por 13 €, vai ter duzentas e vinte páginas de boas vibrações.

«Eu tenho um sósia…»

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Gerrit Komrij, poeta holandês
residente em Portugal

DIAFANIA

Eu tenho um sósia que me põe maluco
Querendo ser em tudo a mim igual.
Possui o mesmo sósia, e então apanha
Com um grande susto ao ver-me, e mais ao tal.

Assim me assusto eu ao ver-nos ambos.
Ele nada me oferece. É um ladrão.
Não pára de sugar ecos em mim
E nada meu sobra em tal multidão.

De início, havia ainda um certo laço.
Vivíamos em paz, aos dois, aos quatro.
Agora, aonde eu olhe, vejo o meu vulto
E a quantos fantasmas já dou resguardo.

Quando eu morrer, um ser desfigurado
Há-de achar-se estendido no caixão.
E o corpo transparente abrigará
Não um cadáver, mas coisa de um milhão.

GERRIT KOMRIJ
Contrabando
Assírio & Alvim, 2005
Trad. fv

O vento, ainda

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Ao voltares as páginas do livro, ainda escutas o gemido da folhagem
quando o vento lambia o seu esplendor.

João Pedro Mésseder, Abrasivas, Porto, Deriva, 2005

O livro de Mésseder está editado, além de no original português, em galego normativo. O texto acima sai ortografado assim:

Ao voltares as páxinas do libro, ainda escoitas o xemido da follaxe
cando o vento lambía o seu esplendor.

Dá-se um bombom (que digo eu, uma tarte de Santiago inteira) a quem nos explicar como esta frase, com a sua sintaxe, a sua morfologia e o seu léxico, pertence a duas línguas diferentes. E esqueça a ortografia, sim, bom amigo. As ortografias nunca criaram línguas.

Claro: a frase é escolhida. Mas poderiam dar-se dezenas. Como poderiam dar-se vários contra-exemplos. Óptimo. O convite mantém-se. Expliquem-me, pois, a frase acima.

Para lá desta questão menor (e, concedo, bizantina): o livro de João Pedro Mésseder é belíssimo.

What’s in a name?

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O acesso aos cafundós do Aspirina – acesso que não é só feito de alegrias – permitiu-me achar um recente comentário a um «post» já de Setembro de 2006. Tratava este (pode ver) uma questão anódina, um fait-divers sobre Vasco Pulido Valente. Mas a discussão derivou para o nome do historiador, e é ainda a esse propósito que Francisco M. Pulido Valente Pena agora escreve:

«Quanto às “tristes” cenas e outros tantos “tristes” comentários acerca do “verdadeiro” apelido do meu Primo Vasco Valente Corrêa Guedes, gostaria que, e não me tendo sido solicitado qq pedido pelo próprio, deixassem o Grande Historiador sossegado pois estes Srs. que aparentemente se “preocupam” com o verdadeiro apelido do Grande Historiador, pelos vistos não têm mais nada que fazer ou em que pensar senão nesse pouco (a meu ver) importante facto dele, o Grande Historiador e meu Primo utilizar os apelidos do nosso Avô Materno, Prof. Dr. Francisco Pulido Valente, verdadeiro Democrata mas não comunista como alguns insistem. Vão mais além nas vossas considerações e, deixem-se de mexeriquices que mais parecem, essas sim, conversas de mulheres.»

Aquando da saída do «post», comentara «jcfrancisco»:

«A propósito… Para quando a decifração do facto de esse senhor se chamar Vasco Correia Guedes e não Pulido Valente? Será que não é prioritário?»

A isto respondi eu na altura:

«Caro jcfrancisco. É já a segunda vez que te vejo afirmar, ou insinuar, que Vasco Pulido Valente se chama, na realidade, Vasco Correia Guedes. Deixa-me ser sincero: o facto de essa questão te preocupar é, para mim, mil vezes mais interessante do que estar informado do nome autêntico do grande historiador.
Todavia, sem descentrar o meu verdadeiro interesse, apreciaria saber:
– terá VPV razões (razões públicas, de imagem) para usurpar um nome, e concretamente esse?
– a patronímico Correia Guedes (que nada me diz, mas eu sou em questões de sociedade um cavernícula) é algo que, patentemente, apeteceria escamotear?
Aqui tens duas perguntas altamente… prioritárias.»

Estas perguntas estão, ainda hoje, por responder. A minha precisão de resposta é muita? Nem por isso. Mas as obsessões alheias fascinam-me.

E, entretanto, a questão – vê-se agora – ainda mexe.

«SEMPRE ABRIL» na TV Galega

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Até às 23.00 de Lisboa, a TVG, televisão galega, aí no seu cabo, transmite um programa sobre o 25 de Abril e José Afonso. Estão lá os irmãos Salomé, João Afonso, Júlio Pereira, Dulce Pontes – e suponho que mais virão.

21.43 h.
A estreia absoluta de «Grândola Vila Morena», em 1972, deu-se no Burgo das Nacións, em Santiago de Compostela. Foi aí que José Afonso se deu conta da força do número. O concerto foi apresentado por Emilio Pérez Touriño… em 2007 o presidente da Galiza.

Percurso

O Público de hoje traz um excelente texto de Rui Bebiano, «O concurso e a responsabilidade dos historiadores». Trata-se, percebe-se, do concurso «Grandes Portugueses» da RTP.

De assinalar é, não só o texto em si, mas ainda a circunstância de ter aparecido primeiro no diário As Beiras e seguidamente num dos blogues de Bebiano, onde eu o tinha lido já.

À atenção dos observadores de circuitos nos media, ficam a apreciação, mais a interpretação, deste percurso: Imprensa Regional, Blogosfera, Jornal de Qualidade.

Um lençol português

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Texto sobre Miniaturas (Colibri, 2001) de Paulo Kellerman,
aparecido no «Expresso» de 16 de Junho de 2001.

Três livrinhos discretos, quase clandestinos, revelam um ficcionista desenvolto e cruel

Numa vida, o que não falta são desencontros. As oportunidades abundam, nisso a vida parece um paraíso, mas não tardamos a acordar, de encontro a mais uma parede, guardando agora debaixo do braço, ou sabe-se lá onde, esse novo peso, mais uma frustração. E, isso, em hipótese favorável. Porque, de um desencontro, pode bem simplesmente morrer-se.

Parece trivial. Até ao momento em que alguém achou forma de no-lo narrar com uma tremenda verdade e desarmante desprendimento. É o que consegue Paulo Kellerman (1974, Leiria). As suas histórias não podiam ser mais convincentes de que nascemos com o estranho dom de enganar-nos. E de que disso se definha. E, em casos graves, não se aguenta vivo. Não servir tanta tristeza para cansar-nos, e antes nos faça pedir por mais, é o mérito do artista e prova do nosso bom gosto.

De enganos está cheio o volume Pequenas Nuvens Solitárias Perdidas no Imenso Azul do Céu (Sem Editora, 2001). Enganos como o de Jorge, que ama desesperadamente a vizinha enfermeira, que nunca saberá a tempo que ele se chamava Jorge. Na sua última manhã, o rapaz tomará um café no exacto sítio onde o pai, ali empregado, servira a mãe, e de onde a levara para que Jorge fosse feito. Agora, na última tarde, um atraso irá, pelos melhores motivos, impedir a enfermeira de salvar o moço do suicídio.

Ou, então, o caso do homem que vive, e sabendo-o, o último despertar com aquela mulher, e da mulher que se prepara para não regressar à vida com aquele homem, e da casa a que, sabemo-lo só nós, logo à tarde ninguém regressará. Ou o caso do lençol de «As sirenes que tocam», que está sendo feito em Portugal por uma moça que o imagina cobrindo, um dia, orgasmos americanos (nada de assombroso, segundo um jornal em epígrafe «Dez por cento dos lençóis comprados nos EUA são portugueses»), o exacto lençol que vai tapar um corpo, sim, americano, mas esfacelado.

São episódios de intensa proximidade, os que povoam os contos de Paulo Kellerman. Daí a crueza dos desenlaces, impossível de prever numa escrita tranquila e quase inocente. Há aqui uma arte do decoro e, no fim, a ciência de um curto golpe. Há um quotidiano frustrante, comum a recentes narrativas, mas severo, quase brutal. Estamos a milhas do aveludado de Pedro Paixão.

Em colectânea anterior, Sete (Sem Editora, 2000), já os desacertos reinavam, já as situações terminais afluíam, com o assinalável virtuosismo de «Sexo», cadeia de dez histórias e um epílogo, por onde vemos passarem Silvestre, o taxista que não resiste a violar a virgem que traz, ébria, de uma despedida de solteira, ou Simão, que reencontra prostituta uma colega da escola, e se descobrirá, «embriagado de dor e desespero», seropositivo.

Reconhecimento público, obteve-o Paulo Kellerman (ligado, informa-se-nos, à rádio e a jornais) com Miniaturas, prémio «Manuel Teixeira Gomes», de Portimão. São 56 histórias curtíssimas, esguias de mais para o desenvolver de uma trama, mas, como uma boa piada, tirando forças da exiguidade. E, se é certo haverem-nas algo insulsas – outras, e não poucas, magnificamente engendradas, têm o certeiro e o assustador de um açoite, com o arguto expediente de usar termos que, por instantes, críamos metafóricos, e logo descobrimos arrepiantemente literais.

O jovem Paulo Kellerman mostra uma desenvoltura de temas e de processos que nos convencem e entusiasmam. E que só espantarão a quem pensasse que a ficção portuguesa já deu o que tinha a dar.

fv

Um fim-de-semana tranquilo

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Se tudo correr bem, muitos espectadores da SIC, sobretudo entre os mais tardios, vão entrar esta noite num fim-de-semana particularmente tranquilo. Razão? Digamo-lo já: Santiago vai mostrar-se a Laura.

Imagino um leitor – você aí, por exemplo – a perguntar-se sobre a transcendência disso: de Laura ir ver Santiago a descoberto. O seu mundo dispensou-os até hoje, e não se vê bem por que ele, o seu mundo, seria, por isso, menos perfeito. Na melhor hipótese, você está fantasiando algum filme soft porno, em que aparecem coisas, ou pessoas, a serem mostradas.

Pois engana-se. Trata-se de uma série que não atenta contra nenhum princípio moral, seja cristão seja burguês – e a diferença poderia ser especiosa. Baste-lhe saber que ali entra um padre, e nada modernaço, que resiste (até hoje eficazmente) contra as propensões da carne. Da carne. Você percebeu, não se faça sonso.

Pois bem. Se a série Vingança lhe é desconhecida, tenho a respeitar as suas prioridades – mas não as lamento menos. Você, verdadeiramente, não sabe o que perde.

Eu não vou aqui, claro, explicitar a sua perda. O seu tempo é precioso, já vi, e o meu, acredite, não o é menos. Mas convém-lhe, talvez, saber que, se você der amanhã, no centro comercial, ou na simples rua, com rostos desafogados, isso pode ter a ver com a descontracção que o primeiro-ministro acaba de comunicar a um País até hoje tão tenso. Mas pode também, e com maior probabilidade, dever-se a terem-se Santiago e Laura finalmente encontrado esta noite, ela que o julgava há dez anos morto.

A sério (e já se vinha falando muito a sério): aí está uma série televisiva portuguesa, numa só palavra, magnífica. Como diz? Há nela coisas inverosímeis? Decerto. Mas tem você visto séries brasileiras? E não se seguram elas por uma inverosimilhança a potes? E não são elas, sem favor, em questão de séries (bom, tirando CSI Miami), as melhores do mundo?

Um bom serão.

A porta para nenhures

Aqui fica a fotografia completa da Sininho. As suas explicações seguem.

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O Fernando foi malandro porque cortou a segunda fotografia… mas são duas Rifanhas, no “conversé”, à porta de uma porta que já não é porta para lado algum. É que, a casa que está por detrás foi toda demolida (e Fernando, a prova que foste malandro, é que isso não se vê com a fotografia cortadinha…). Essa mesma fotografia (inteira) tem em primeiro plano, um candeeiro de rua, de modelo tradicional mas com uma lâmpada branca, daquelas bem brancas e fluorescentes, fruto da modernização. Para reflectir: para quando os postes eléctricos no Sahara?