Um lençol português

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Texto sobre Miniaturas (Colibri, 2001) de Paulo Kellerman,
aparecido no «Expresso» de 16 de Junho de 2001.

Três livrinhos discretos, quase clandestinos, revelam um ficcionista desenvolto e cruel

Numa vida, o que não falta são desencontros. As oportunidades abundam, nisso a vida parece um paraíso, mas não tardamos a acordar, de encontro a mais uma parede, guardando agora debaixo do braço, ou sabe-se lá onde, esse novo peso, mais uma frustração. E, isso, em hipótese favorável. Porque, de um desencontro, pode bem simplesmente morrer-se.

Parece trivial. Até ao momento em que alguém achou forma de no-lo narrar com uma tremenda verdade e desarmante desprendimento. É o que consegue Paulo Kellerman (1974, Leiria). As suas histórias não podiam ser mais convincentes de que nascemos com o estranho dom de enganar-nos. E de que disso se definha. E, em casos graves, não se aguenta vivo. Não servir tanta tristeza para cansar-nos, e antes nos faça pedir por mais, é o mérito do artista e prova do nosso bom gosto.

De enganos está cheio o volume Pequenas Nuvens Solitárias Perdidas no Imenso Azul do Céu (Sem Editora, 2001). Enganos como o de Jorge, que ama desesperadamente a vizinha enfermeira, que nunca saberá a tempo que ele se chamava Jorge. Na sua última manhã, o rapaz tomará um café no exacto sítio onde o pai, ali empregado, servira a mãe, e de onde a levara para que Jorge fosse feito. Agora, na última tarde, um atraso irá, pelos melhores motivos, impedir a enfermeira de salvar o moço do suicídio.

Ou, então, o caso do homem que vive, e sabendo-o, o último despertar com aquela mulher, e da mulher que se prepara para não regressar à vida com aquele homem, e da casa a que, sabemo-lo só nós, logo à tarde ninguém regressará. Ou o caso do lençol de «As sirenes que tocam», que está sendo feito em Portugal por uma moça que o imagina cobrindo, um dia, orgasmos americanos (nada de assombroso, segundo um jornal em epígrafe «Dez por cento dos lençóis comprados nos EUA são portugueses»), o exacto lençol que vai tapar um corpo, sim, americano, mas esfacelado.

São episódios de intensa proximidade, os que povoam os contos de Paulo Kellerman. Daí a crueza dos desenlaces, impossível de prever numa escrita tranquila e quase inocente. Há aqui uma arte do decoro e, no fim, a ciência de um curto golpe. Há um quotidiano frustrante, comum a recentes narrativas, mas severo, quase brutal. Estamos a milhas do aveludado de Pedro Paixão.

Em colectânea anterior, Sete (Sem Editora, 2000), já os desacertos reinavam, já as situações terminais afluíam, com o assinalável virtuosismo de «Sexo», cadeia de dez histórias e um epílogo, por onde vemos passarem Silvestre, o taxista que não resiste a violar a virgem que traz, ébria, de uma despedida de solteira, ou Simão, que reencontra prostituta uma colega da escola, e se descobrirá, «embriagado de dor e desespero», seropositivo.

Reconhecimento público, obteve-o Paulo Kellerman (ligado, informa-se-nos, à rádio e a jornais) com Miniaturas, prémio «Manuel Teixeira Gomes», de Portimão. São 56 histórias curtíssimas, esguias de mais para o desenvolver de uma trama, mas, como uma boa piada, tirando forças da exiguidade. E, se é certo haverem-nas algo insulsas – outras, e não poucas, magnificamente engendradas, têm o certeiro e o assustador de um açoite, com o arguto expediente de usar termos que, por instantes, críamos metafóricos, e logo descobrimos arrepiantemente literais.

O jovem Paulo Kellerman mostra uma desenvoltura de temas e de processos que nos convencem e entusiasmam. E que só espantarão a quem pensasse que a ficção portuguesa já deu o que tinha a dar.

fv

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