
A «Visão» chega-me no dorso dum muar, o mesmo doce animal que me traz os víveres. Eis porque só hoje li a crónica «O fantasma do iberismo», de António Mega Ferreira, de 16 de Novembro.
Eu leria sempre o Mega, mas o tema gritava-me da página. O pretexto: certa indignação colectiva (que metia acção judicial) contra o iberismo de que o ministro Mário Lino se confessara professante. O cronista goza (e tem direito ao prazer, mas não a este) com o atraso do desagravo: o ministro declarara-se em Abril, e já se estava agora no mês que era.
Ignoro quem seja esse actual «grupo de indignados». Mas convém lembrar que este blogue foi o primeiro âmbito português em que se deu o brado. Fizemo-lo aqui, três dias após a confissão de Lino, pormenorizando-lhe os termos segundo o «Faro de Vigo»:
«Soy profundamente “iberista”, convencido de que España y Portugal tienen por delante un futuro en común porque su historia es también común y su lengua, similar. Soy iberista confeso. Tenemos una historia común, una lengua común y una lengua común. Hay unidad histórica y cultural e Iberia es una realidad que persigue tanto el Gobierno español como el portugués». E acrescentávamos, nós, que haveria por ali alguma «lengua» a mais e, quem sabe, alguma «cultura» a menos.
Mega Ferreira, como Sócrates, oferece larga cobertura ao ministro. Começa por reescrever-lhe generosamente a charla. «O ministro disse» – diz-nos o cronista em Novembro – «que a Ibéria é uma ‘nova realidade’ e que Portugal e Espanha têm tudo a ganhar em entenderem-se no quadro de uma estratégia comum de afirmação no espaço europeu e no contexto internacional».
E concretizará, já só por sua conta, adiante: «Na lógica do mundo globalizado, fatalmente hão-de sobreviver (ou viver melhor) as alianças estratégicas que acrescentem dimensão aos diversos particularismos nacionais».
Um iberismo assim entendido é já outra coisa do que o novíssimo, ou mesmo o tradicional. Não é a fusão de Estados, que uma percentagem pouco exigente de portugueses aceitaria em troca de uma ‘hoja de pago’ viçosa. Também não é a sonhada associação de «povos ibéricos», de estatuto igualitário.
É uma proposta que soa séria, essa das «alianças estratégicas que acrescentem dimensão aos diversos particularismos nacionais», com que, creio também, todos lucraríamos.
Só que a Espanha de Mega Ferreira é uma miragem. E com miragens não convém fazer alianças.
Quando o cronista afirma, tranquilizador, que «nem a Espanha de hoje é a dos ‘castelhanos’», causa-nos arrepios. Porque tudo indica que ela o é. Mesmo comandado às claras por um galego como Rajoy (e às escuras por outros indivíduos, o que é de ciência comum), o PP é um partido profundamente «castelhano», centralista até à medula, defensor duma Espanha governada ‘desde la Meseta’. O partido de Zapatero não o é menos. Mas habita nela alguma maior inteligência. O PSOE chega a falar numa ‘España plural’, e em ocasiões de desbunda lírica mesmo numa ‘Nación de Naciones’. Mas, podendo (e pôde), redigiu um novo Estatut catalão, e foi esse o adoptado nas Cortes de Madrid.
Quem estiver precisado de ainda mais calafrios leia esta inacreditável entrevista com Pío Moa numa estranhíssima (mas, aqui, oh tão útil) Alameda Digital.
Esta é a Espanha real, aquela de que convém manter-nos afastados. É por isso que a tirada de Mega Ferreira – «o iberismo contemporâneo parte da constatação da multipolaridade ibérica» – soa como de um mundo estranho, espectral.
Ao sensato Mega falta, quem o diria, só algum cepticismo.