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Um português em Alcácer-Quibir

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Se lhe disserem que o marujo aí acima esté em Alcácer-Quibir, você não acredita, pois não? Os mitos pátrios imaginam, à viva força, uma aldeola no deserto. Pois enganam-se, mais uma vez, os mitos. O leitor está a ver-me frente a um dos centros comerciais de… pois, de Alcácer-Quibir.

Agora, uma explicação. O lugar da batalha não é aí, mas 16 km a nordeste. Mais exactamente, aqui:

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Como vê, uma planície de cultivo. Era, de resto, o que Sebastião, o Tal, procurava. Marrocos era – e é – um celeiro. E Portugal, em 1578, tinha fome.

Este visitante escreveu no livrinho Quem inventou Marrocos o apontamento que segue:

Quarta, 14 de Março de 2001.

A cidade de El Ksar El Kebir, ‘o palácio grande’, ignora quanto é famosa. Provavelmente nenhum habitante sabe que o nome da terra, corrompido em Alcácer-Quibir, foi servir de pesadelo a um povo do outro lado do mar. É certo que a batalha não foi exactamente ali onde é a cidade. Os exércitos defrontaram-se 16 km mais a norte, em campo aberto. Estranha coisa: a persistente imaginação lusitana, e o filme de Oliveira, colocam-na no deserto, quando o deserto dista centos de quilómetros daqui. Toda a metade norte de Marrocos é verde, bem mais verde do que o nosso, esse sim desértico, Alentejo.

O sítio exacto da grande refrega é, já vou avisado, difícil de achar. Sei que há um monumento, que fica junto a um velho apeadeiro de comboio. Vou-me valendo das indicações de Amadeu Lopes Sabino, num artigo há anos no DN, mas, ainda em plena cidade, a posição do sol diz-me que vou mal. Um polícia sinaleiro apercebe-se e vem ter comigo. Estamos em Marrocos… Tivesse eu saído do carro, e ele acolhia-me com um braço pelos ombros. «Monsieur», digo, «je cherche la gare de El Makhazen.» «La guerre?» «Non, monsieur, la gare.» «Mais oui, la guerre, la bataille.» O parvo, afinal, sou eu. Solícito, ele indica-me o «feu-rouge» onde devo virar à esquerda.

Como é que uma estação de caminho de ferro o informou da minha exacta busca, havia eu de compreendê-lo quando chegasse ao sítio: ninguém procuraria, naquele lugarejo, senão exactamente isso. Mas já então eu dera voltas inúteis, já encontrara também, tal como Sabino relata que lhe sucedeu, quem gritasse «Sébastien, Sébastien!» apontando o infinito, e, mais que tudo, já eu me apercebera de que o depósito da gasolina estava, talvez, nas últimas gotas. Quem anda atrás da História não repara em ninharias.

E foi assim que, junto ao minúsculo monumento à Batalha dos Três Reis, a designação marroquina do recontro onde os três deixaram a vida (mas certezas só há dos dois monarcas locais), nesse lugar anódino onde as nossas esperanças de grandeza se finaram, foi assim que eu, em vez de curvar a extenuada cerviz e meditar no destino, só soube perguntar onde era a bomba de gasolina. Riram. Não havia tal. Fi medina, ‘na cidade’, gritaram-me alvoroçados. E eu pensei que, se em algum lugar do mundo tivesse de ser infeliz, antes aqui.

Um camponês de idade incerta disponibilizou-se a acompanhar-me. Aceitei logo. Por aqueles ermos, ninguém falava senão marroquino, e a suprema desgraça seria ver-me no descampado sem gasolina e sem idioma. Pelo caminho, pediu-me dinheiro para certo ferimento no tornozelo. Vi a coisa muito cicatrizada. Mas nós tínhamos por ali, lembrei-me, ainda alguma dívida.

Cheguei a Alcácer-Quibir já o carro soluçava.

Les beaux esprits se rencontrent

É um chavão, e logo gaulês. Mas é também – pelo menos no caso da «Sininho» e do «Py» – uma grande verdade. Quando escrevi o post aí abaixo (esse com a foto do deserto em Marrocos), estava longe de imaginar que não estava sozinho, por aqui, e que estava até muito bem acompanhado.

Pois acontece isto: tanto a Sininho como o Py enviaram-nos fotos daquele país magnífico. E próximo. Segundo rezam os ditos, Rabat é a capital mais próxima de Lisboa. Não é, Madrid ganha-lhe por uns quilometrozecos. Mas quem repara nisso?… E faz muito bem.

Ora, o Py andou por Alcácer Quibir e foi ao local da batalha (que fica 16 km a nordeste da cidade de tão famoso e agoirento nome). Tirou lá esta foto, que comenta nos termos que seguem.

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Quando vi este post do Fernando, lembrei-me de uma coisa. O ano passado voltei a Alcácer-Quibir, lá fui a cheirar, até que voltei ao sítio da batalha. Fui fazer uma mijinha e fotografar. Fiquei de descobrir mais tarde o que estava na placa com as três coroas. Já que na batalha morreram os três reis, na versão mais corrente, e estão lá três coroas, pensei que podiam ser os três reis, mas os dois de baixo têm a estrela do Islão e o de cima tem um tracinho vertical e não iam pôr D. Sebastião por cima dos deles, logo será Allah? Não faço ideia do que está escrito na placa e infelizmente não fotografei de mais perto.

Os meus meios técnicos permitem chegar a isto. Já haverá quem possa ler?

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Entretanto a Sininho andou fotografando material culinário. Isto, por exemplo.

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E informa que as suas melhores fotos – «as do deserto» – não estão digitalizadas. Esta está, e tanto que, no jornal de cima, em letras vermelhas, pode ler-se, bem grande, «Les pays arabes e[xigent?] paix et réformes».

A reprodução, aqui, é… degueulasse.

Não se pode chamar madeirense a um clube da São Miguel

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Não bastava ao Sporting Clube de Portugal ter um director de jornal que aparece sempre de braços cruzados e se assumiu como director de comunicação pouco tempo antes de serem divulgados em praça pública os ordenados dos jogadores da equipa «A».

Agora surge uma notícia errada chamando madeirense ao Marítimo Sport Clube de Ponta Delgada. É ver o site «www.sporting.pt» para ler o texto do enviado especial do site e do jornal à Academia em Barroca de Alva no dia 25-3-2007 para ver como designam como madeirense a equipa açoriana. Na página 10 do jornal de 27-3-2007 o erro surge repetido e percebe-se porquê: nem o redactor nem ninguém leu o texto errado que assim passou do site para o jornal.

Ora a Calheta é uma freguesia muito especial em Ponta Delgada e diz muito aos sportinguistas. Ali nasceu Mário Jorge, jogador leonino e internacional que nunca esquece de referir o facto de ter nascido na Calheta. Esta confusão de atribuir um bilhete de identidade diferente ao clube micaelense tem a ver com uma questão que é transversal à sociedade portuguesa actual: os jovens nunca perguntam – nem quando sabem nem quando não sabem. Bastaria ter estado atento à maneira de falar das pessoas do banco dos suplentes pata perceber que eram dos Açores.

Eu próprio vi jogar essa simpática agremiação desportiva no dia 18-3-2001 em Alcochete num jogo cujo árbitro foi Luís Rato, o treinador Rui Palhares e o delegado António Atanásio. O resultado foi 19-0 e marcaram os golos: Bruno Severino (1), Miguel Veloso (1), Emídio Rafael (1), Zezinando (2), Bruno Filipe (3), João Moutinho (1), Bruno Soares (4), Vítor Farinha (3), Amílcar Pinto (1) e Ricardo Dias (2). Qual madeirense qual carapuça…

Dissertação sobre uma pequena baleia azul

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João Camilo

Pego num livro de João Camilo. O título é bonito, apelativo e revelador – Nunca mais se apagam as imagens. A editora tem um nome curioso – «Fenda». Descubro então um marcador assinalando um poema que começa assim:

Os poemas deles falam de poetas e de pintores
das cidades que outra arte tornou inesquecíveis.
Com títulos ingleses e palavras estrangeiras
tentam escapar ao tédio e adoram o bezerro já idolatrado.
Literatura que celebra a literatura, arte que comemora a arte
não nos resta como projecto de futuro senão a aventura alheia?

Para além do poema e das suas perguntas pertinentes, fiquei a pensar no marcador. Trata-se de uma sorridente baleia que atira para o ar a água azul que acompanha a sua respiração. Mas é tudo artesanato. A minha filha Ana Maria tinha ao tempo o saudável hábito de não deitar nada fora e por isso, em vez de comprar marcadores na Papelaria Fernandes, fazia ela própria os marcadores com aquilo que sobejava dos seus trabalhos de estudante de arquitectura.

Digo ao tempo, pois presumo que o marcador foi feito em 1996; ainda não era conhecido em Lisboa o Café Peter que só apareceu com a EXPO 98. Esta ideia de manter, poupar e reutilizar tem muito a ver com aquilo que ela aprendeu com a avó Olímpia. A minha mãe tinha uma máquina de costura e já na minha infância fazia muitas vezes para mim camisas novas com camisas velhas do meu pai e calções novos com calças velhas do meu avô que, por ser carpinteiro, as tinha mais poupadas.

Hoje a Ana veste ao meu neto Thomas em Londres jardineiras feitas pela costureira D. Armanda a partir de calças velhas do meu filho Filipe ou da minha filha Marta. Não me canso de olhar este marcador com a pequena baleia azul.

José do Carmo Francisco

Chama-se a isto saudade?

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Marrocos. Entre Merzouga e Zagora

Dou a volta costumeira pelo Abrupto. E, de repente, na excelente série fotográfica «Espaços onde se pode respirar», esta foto, feita por MARTA PINHO. No blog de JPP, pode ampliá-la.

Marrocos é em grande parte – já o escrevi alhures – bem mais verde do que o nosso (o meu) Alentejo. E Alcácer-Quibir, amigos compatriotas, fica no meio duma planície verdejante, onde crescem frutos e legumes. Qual deserto, senhor cineasta Oliveira! Mas, é verdade: lá muito longe, para Sul, a coisa põe-se realmente assim.

Há-de haver, por ali, pegadas minhas. E eu partiria, esta tarde ainda, para lá. Mas – aí está – as prioridades…

Cinco Violinos, do século XXI

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Embora Eusébio tenha sido roubado ao Sporting, e a Moçambique, é um herói de todo o português amante de futebol. O Pantera Negra, tanto excitou confrades benfiquistas como adeptos da Nação. Nessa lógica, é bondosa a analogia com os Cinco Violinos para um grupinho dentro do grupo que a Selecção vai manter durante os próximos 10 anos: Cristiano, Quaresma, Moutinho, Nani e Sabrosa (este, pela idade, a ceder futuramente o lugar ao Yannick, mantendo o conceito — e até o tornando potencialmente melhor) são criações leoninas. Será que alguma vez irão jogar ao mesmo tempo, sem carência de pontas-de-lança? Seria uma festa. Como ontem houve no Alvalade XXI.

Tavares da Silva — jogador de futebol, árbitro, jornalista e Seleccionador Nacional — foi quem cunhou a expressão Cinco Violinos. É uma belíssima metáfora, emanação de um outro tempo e de uma outra educação. Como curiosidade, é com ele à frente de Portugal que se regista a primeira vitória contra a Espanha, também com 4 golos marcados (tal como agora na primeira vitória oficial sobre a Bélgica). Esperemos que estas coincidências, muito afastadas, se afastem ainda mais, pois foi com ele que Portugal enfardou dez golos sem resposta da Inglaterra; e esta calamidade a acontecer no Jamor…

O futebol é importante pela importância que tem na colagem dos indivíduos à sua identidade colectiva, e por mais nada de relevante para a cultura. Só que a cultura depende da colagem dos indivíduos à sua identidade colectiva, por mais razões do que aquelas que cabem neste texto. Vai daí, temos de compreender a paixão pelo futebol, se queremos compreender a cultura. E até fazer nascer cultura onde só reina a animalidade.

Que toquem os violinos.

O doutor da mula ruça existiu mesmo em 1534

Quando por brincadeira as pessoas se referem ao primeiro-ministro de Portugal como doutor da mula ruça, estão (sem o saber) a utilizar uma dupla ironia. Primeiro o senhor é mesmo pigarço; depois não está registado na Ordem dos Engenheiros.

Pois a graça disto tudo está em que, no ano de 1534, um tal António Lopes exercia medicina, em Évora onde era muito conhecido, mas não tinha diploma. Tinha estudado em Alcalá de Henares e, por falta de verba para pagar o «canudo», saiu de lá sem o respectivo diploma. Vai daí escreveu ao rei Dom João III e pediu-lhe que o mandasse analisar pelos médicos da corte de modo a poder exercer a sua actividade sem qualquer contestação. Em 23 de Maio de 1534, o livro da Chancelaria de D. João III refere:

«Dom Joham 3º a quantos esta minha carta virem faço saber que o doutor António Lopes, físico de Évora, me apresentou ua carta do doutor Diogo Lopes, meu físico moor, de que o theor de verbo é o seguinte: O doutor Diogo Lopes, comendador da Ordem de Christo e físico moor del Rey Nosso senhor em seus regnos e senhorios, faço saber a quantos esta minha carta de doutorado virem como por António Lopes, físico da mula ruça, morador em esta Évora, me foy apresentado hum allvará dellRey nosso senhor, por sua alteza assygnado e passado per sua chancelaria do qual o trellado he o seguinte: Eu ell Rey faço saber a vós Doutor Diogo Lopes seu fisico moor, que António Lopes, físico da mula ruça, morador en esta cidade, me dice por sua petiçam que elle estudou nove ou dez annos no estudo de Alcala de Henares.»

Fui descobrir esta curiosidade num livro de Orlando Neves, intitulado «Dicionário da origem das frases feitas». A edição é da Lello & Irmão Editores – Porto.

José do Carmo Francisco

O Povo Certo

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Recebi gordas lágrimas neste sábado, 17 de Março. Foram oferta do Fernando Mendes, na comemoração da milionésima emissão d’O Preço Certo. No final duma rapsódia de edições anteriores, homenagem que antecedeu o epílogo do concurso, a qual foi embrulhada no enjoativo Tudo o que eu te dou do enjoativo Abrunhosa, os que enchiam o Coliseu do Porto prolongaram a salada de imagens com uma juliana de vozes. Continuaram a capella, e a câmara foi para cima do rosto do Fernando. Aquele rosto que, mesmo quando descontraído, parece sempre contorcido, atingiu uma nova capacidade plástica e enfiou-se todo por debaixo das pálpebras, tentando conter a solidão derretida. Nesses longos segundos em que ficou perdido e esmagado pela apoteótica alegria do povo, eu imaginei uma Nação a fazer as pazes com a sua gente.

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Serão chuva, serão gente…

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Enviou-nos o José do Carmo Francisco esta peça, de amiga sua.
Com gosto a publicamos. À peça, e a ela.

De início pensei que não tinha ouvido bem. Fiquei atenta ao episódio seguinte da novela Tu e Eu, que passa na TVI. Tony Carreira a cantar, no genérico musical da telenovela “… serão tu e eu…”. Não podia ser. Mas era.

Confirmei. Mas não me conformei. Como tenho a mania de querer endireitar o Mundo, comecei por ligar para a produtora da novela. “A pessoa responsável pela selecção das músicas está de férias”. Tempos depois, continuava de férias.

Falei para a SPA. Contei a história. Sugeri falar com Tony Carreira. “Os artistas, por vezes, aceitam mal as críticas…”, foram alertando. Fiquei a saber que a canção já tem uns anitos. Que foi gravada várias vezes pelo cantor e que faz parte do trabalho discográfico de outros artistas (sempre com o “…serão tu e eu…” pelo meio).

A minha teimosia levou-me a contactar a TVI. “O Dr. José Eduardo Moniz está fora, mas volta daqui a dois dias”. Que (eu) tinha razão, mas ela (a secretária) “nem via telenovelas”. Passados dias voltei a ligar. A mesma secretária informa: ” O Dr. José Eduardo Moniz já está ao corrente de tudo”.

A novela passa todas as noites e tem repetição no dia seguinte. Quantos meses vai isto durar? Que providências foram tomadas para que este pesadelo linguístico deixe de atormentar os ouvidos dos portugueses (que não são surdos), como eu?

Nada me move contra Tony Carreira. Apenas me assiste o direito de contestar o malfadado verso, que envergonha a Língua Portuguesa! Muito mais, quando no concerto efectuado no Campo Pequeno se ouviram milhares de vozes, que esgotaram a praça, a cantar o “… serão tu e eu…”, sem o menor conhecimento e respeito pela Língua que é a nossa. Tony Carreira precisou de uma palavra de duas sílabas para “encaixar” na música. “…seremos tu e eu…” tinha três sílabas. Porque não optou, então, por “…serás tu e eu…”, que tem as mesmas duas sílabas?

Um músico amigo disse-me: “Deixa-te disso, eles (?) não ligam a essas coisas!)”. Uma amiga escritora ironizou: “ Não te canses, que não merece a pena…”. Dou a mão à palmatória. Ambos tinham razão. Mas eu também tenho. Por isso, continuo à espera.

Soledade Martinho Costa

Serei eu um sádico?

Porque é que li, leio e vou continuar a ler em jornais coisas sobre o CDS? Porque é que destino a isso uma parte, pequena é certo, mas mesmo assim preciosa (julgo eu) do meu tempo?

Será porque a política portuguesa me interessa até esse ponto? Será porque intuo que, um dia, ainda o CDS vai ser decisivo no trem de vida nacional?

Poderá haver, ainda assim, outras motivações, menos nobres (ah!…), para isso, como o fascínio pelo lado ficcional dos eventos, ou por essa pessoa soturna, matreira, mas levianamente suicidal que é Paulo Portas, ou mais rasteiramente por uma bela bulha pública, aqui, por casualidade, política. Ou, muito mas muito mais chãmente, porque vem excitar-me o lado sádico, que anda pouco desenvolvido.

Não sei. Repito a confissão: não sei. Mas qualquer coisa me diz que, se eu (e você) não olhasse, eles resolviam a coisa como damas e cavalheiros. Assim, dão espectáculo. E nós, por mil e um motivos, temos um grande fraco por coisas que mexem.

O teu retrato

Ele próprio, o autor, diz que é uma convenção, isso do Dia da Poesia.
É, pois claro. Todos os dias são-no da poesia também.

Mas sejamos, por uma vez, placidamente, chãmente convencionais.
E assinalemos a coisa. A Poesia, digo.

O TEU RETRATO

O cabelo é uma onda feita em espuma
Na areia da praia da Vieira de Leiria
A fronte é uma eira dentro da bruma
Entre a Senhora do Monte e a Abadia

Os olhos são candeias sempre acesas
Nas casas onde a nossa vida recomeça
São poemas colocados sobre as mesas
Um teatro que em cada dia é uma peça

A tua boca tem o calor de uma lareira
Com brasas que não morrem noite fora
Um fogo a arder sem queimar madeira
Uma luz que se prolonga e se demora

A tua voz é alta, pode ir até ao infinito
Com palavras que não ficam sozinhas
O meu poema é um espaço tão restrito
Abrevia o teu retrato em poucas linhas

José do Carmo Francisco

Les Anges exterminateurs_Jean-Claude Brisseau

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Este é um daqueles filmes que importa ver pelas piores razões. Aparentemente, trata-se de uma celebração do desejo feminino enquanto concreto intangível. Para tal, exibe-se a mulher a masturbar-se e ainda, num paroxismo do onanismo como anulação da alteridade, a mulher a ter relações sexuais com outra mulher ou mulheres. Para o homem ficam os papéis do inquisidor, primeiro, do contemplativo, depois, e da vítima, por fim. O homem é um ser, afinal, menor, residual, à mercê do Eterno Feminino ou acidente da sua demanda, culpado da hubris que já tinha castigado Psique. E deixa-se ver na sua miséria, de homem vazio.

Num segundo nível, este filme é autobiográfico, logo catártico. Contas acertadas com o destino. O artista sempre a transformar o seu mundo em arte. A arte como hiper-realismo jurídico.

Num terceiro nível, este filme é cartesiano. Todas as personagens são extensões da voz do protagonista, sendo este o alter-ego do argumentista, o próprio realizador. Trata-se de uma res cogitans que subsume todas as falas na mesmidade da mensagem monolítica. Ao lado, paralelo, a res extensa do suposto objecto temático. Mas é mentira, não há contacto entre paralelas, e os cartesianos têm horror ao salto para o outro lado. Não se filma o desejo feminino, antes a sua paródia. Estamos, apenas, perante um pretexto para mostrar corpos desejáveis, e desejáveis por serem jovens. É, pungente de tão patética e de tão pretensiosa, a visão de um velho homem que nunca amou seres femininos. Por isso, nada tem a dizer sobre eles.

Num quarto nível, este filme é uma merda. Mas é um filme, e por isso deve ser visto.

Vai uma anedOTA?

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O método é do mais arbitrário, do mais tendencioso, enfim, do mais revoltantemente foleiro. Mas pode ajudar a encher logo o serão.

Acaba, de resto, inspirado num gracioso artigo (mas brincando, brincando…) ontem no «Público», que se intitulava «Uma ‘brincalh’OTA’», e que ensinava onde se constroem bons aeroportos.

E, depois, a estes achados costumam estar associadas umas elevadas somas publicitárias – ou estou a dizer alguma inconveniência?

Pois bem: aqui se lança este inocente jogo de sociedade. Eu entraria modestamente com:

PalhOTA
CambalhOTA
PorcalhOTA

Dinis Machado, o poeta obscuro

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No dia 13 de Fevereiro de 1994, Dinis Machado ofereceu-me um poema manuscrito intitulado «II Soneto para Cesário», com uma dedicatória: «oferta e celebração a José do Carmo Francisco no dia do seu 43º aniversário». Segundo me explicou mais tarde, sabia os seus poemas de cor, mas nunca os publicou, porque entendia que não valia a pena.

A edição especial de O que diz Molero vai ser apresentada no próximo dia 21 de Março, dia da Primavera e do 77º aniversário de Dinis Machado. Ao que sei (telefonaram-me), a Bertrand vai fazer uma festa no Tivoli nesse dia.

Como o Dinis espalhou alguns poemas no articulado do «Molero», penso que uma boa homenagem a ele (e a todos nós) será divulgar o tal soneto do poeta obscuro Dinis Machado. Espero que gostem:

Se te encontrasse, agora, na paisagem
Nocturna dos fantasmas da cidade
Contava-te dos nossos pobres versos
No teu rasto de sombra e claridade.

Contava-te do frio que há em medir
A distância entre as mãos e as estrelas
Com lágrimas de pedra nos sapatos
E um cansaço impossível de escondê-las.

Contava-te – sei lá – desta rotina
De embalarmos a morte nas paredes
De tecermos o destino nas valetas.

De uma história de luas e de esquinas
Com retratos e flores da madrugada
A boiarem na água das sarjetas.

José do Carmo Francisco

“É um prazer lembrarem-se do meu nome.”

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Foi assim que o novo Camões respondeu aos jornalistas aquando da notícia do Prémio. Há que reconhecer todos os prémios como justos, inquestionáveis. Como este. Porque consistem nessa operação que Lobo Antunes sintetizou com raro a-propósito. Alguém se lembra de um nome. É só isto. Mas isso tem o reverso. Aquilo de alguém se esquecer de todos os outros nomes. Levando a supor que um prémio é ocasião de dor, desprazer. Para quem foi esquecido. Eis porque me parece grave a resposta de Lobo Antunes, por ser obscena. Por ele se mostrar tão nu.

SMSteca

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Poderá ainda não ter acontecido a todos, nem a todos vir a acontecer. Mas já somos muitos, e já somos milhões, aqueles que ao trocar de telemóvel descobrem, desconsolados, que nos fogem preciosas mensagens escritas; algumas com anos de resistência às sucessivas vagas de limpeza mnésica. E que depois, numa dessas necessidades do acaso, ao voltarmos às carcaças dos telemóveis antigos, alma reencartada, insuflada de sopro eléctrico, encontramos, deslumbrados, mensagens que perdemos perdidas. Então, é como se elas tivessem acabado de chegar. E cresce um desejo insano de lhes responder. Mas pode não haver saldo nessas recordações, nem sabermos onde o carregar.

Álvaro Carvalheiro ou os limites da terra e da água

Há nas fotografias de Álvaro Carvalheiro (Torres Novas, 1938), em exposição no Centro Comercial Fonte Nova de Lisboa, a insistente presença do Homem em diálogo com a Natureza. Desde 1999 que acompanho com interesse e emoção o seu percurso de poeta da imagem. Autor de poemas. Que outra coisa não são as suas fotografias destinadas a ligar de novo aquilo que o tempo separou. E todo o poema é esse projecto de religação.

Nas fotografias de Álvaro Carvalheiro, o Homem defronta o Mundo e as suas mais inquietas perguntas em três Cabos (o Cabo Carvoeiro, o Cabo de São Vicente e Cabo da Roca) e numa praia – a mítica Praia da Consolação. A praia para onde ia todos os anos o poeta Ruy Belo. As silhuetas que enterram os pés na areia ou que fazem a pontuação humana junto aos limites da água e da terra são vírgulas, reticências e pontos de interrogação em forma de gente. A vida e a morte, a alegria e a tristeza, a luz e a sombra, a memória e o esquecimento – são estas as quatro linhas de força que empurram para a ribalta os protagonistas das fotografias de Álvaro Carvalheiro. É um mundo envolto em harmonia, em paz, em bem-estar.

A objectiva do fotógrafo captou não apenas um registo mecânico, mas a carga subjectiva dum ser humano nas perguntas mais essenciais: quem somos, donde vimos, para onde vamos? Não por acaso entre terra e água, em silhueta porque somos pó da terra, mas é a água que nos dá a vida.

Raúl Brandão dizia que a ternura é húmida. Álvaro Carvalheiro vem dar razão ao nosso escritor de há cem anos. Porque as suas fotografias respiram a humidade da ternura com que a sua objectiva aborda e regista o homem entre a terra e a água.

José do Carmo Francisco

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