Se lhe disserem que o marujo aí acima esté em Alcácer-Quibir, você não acredita, pois não? Os mitos pátrios imaginam, à viva força, uma aldeola no deserto. Pois enganam-se, mais uma vez, os mitos. O leitor está a ver-me frente a um dos centros comerciais de… pois, de Alcácer-Quibir.
Agora, uma explicação. O lugar da batalha não é aí, mas 16 km a nordeste. Mais exactamente, aqui:
Como vê, uma planície de cultivo. Era, de resto, o que Sebastião, o Tal, procurava. Marrocos era – e é – um celeiro. E Portugal, em 1578, tinha fome.
Este visitante escreveu no livrinho Quem inventou Marrocos o apontamento que segue:
Quarta, 14 de Março de 2001.
A cidade de El Ksar El Kebir, ‘o palácio grande’, ignora quanto é famosa. Provavelmente nenhum habitante sabe que o nome da terra, corrompido em Alcácer-Quibir, foi servir de pesadelo a um povo do outro lado do mar. É certo que a batalha não foi exactamente ali onde é a cidade. Os exércitos defrontaram-se 16 km mais a norte, em campo aberto. Estranha coisa: a persistente imaginação lusitana, e o filme de Oliveira, colocam-na no deserto, quando o deserto dista centos de quilómetros daqui. Toda a metade norte de Marrocos é verde, bem mais verde do que o nosso, esse sim desértico, Alentejo.
O sítio exacto da grande refrega é, já vou avisado, difícil de achar. Sei que há um monumento, que fica junto a um velho apeadeiro de comboio. Vou-me valendo das indicações de Amadeu Lopes Sabino, num artigo há anos no DN, mas, ainda em plena cidade, a posição do sol diz-me que vou mal. Um polícia sinaleiro apercebe-se e vem ter comigo. Estamos em Marrocos… Tivesse eu saído do carro, e ele acolhia-me com um braço pelos ombros. «Monsieur», digo, «je cherche la gare de El Makhazen.» «La guerre?» «Non, monsieur, la gare.» «Mais oui, la guerre, la bataille.» O parvo, afinal, sou eu. Solícito, ele indica-me o «feu-rouge» onde devo virar à esquerda.
Como é que uma estação de caminho de ferro o informou da minha exacta busca, havia eu de compreendê-lo quando chegasse ao sítio: ninguém procuraria, naquele lugarejo, senão exactamente isso. Mas já então eu dera voltas inúteis, já encontrara também, tal como Sabino relata que lhe sucedeu, quem gritasse «Sébastien, Sébastien!» apontando o infinito, e, mais que tudo, já eu me apercebera de que o depósito da gasolina estava, talvez, nas últimas gotas. Quem anda atrás da História não repara em ninharias.
E foi assim que, junto ao minúsculo monumento à Batalha dos Três Reis, a designação marroquina do recontro onde os três deixaram a vida (mas certezas só há dos dois monarcas locais), nesse lugar anódino onde as nossas esperanças de grandeza se finaram, foi assim que eu, em vez de curvar a extenuada cerviz e meditar no destino, só soube perguntar onde era a bomba de gasolina. Riram. Não havia tal. Fi medina, ‘na cidade’, gritaram-me alvoroçados. E eu pensei que, se em algum lugar do mundo tivesse de ser infeliz, antes aqui.
Um camponês de idade incerta disponibilizou-se a acompanhar-me. Aceitei logo. Por aqueles ermos, ninguém falava senão marroquino, e a suprema desgraça seria ver-me no descampado sem gasolina e sem idioma. Pelo caminho, pediu-me dinheiro para certo ferimento no tornozelo. Vi a coisa muito cicatrizada. Mas nós tínhamos por ali, lembrei-me, ainda alguma dívida.
Cheguei a Alcácer-Quibir já o carro soluçava.