Este é um daqueles filmes que importa ver pelas piores razões. Aparentemente, trata-se de uma celebração do desejo feminino enquanto concreto intangível. Para tal, exibe-se a mulher a masturbar-se e ainda, num paroxismo do onanismo como anulação da alteridade, a mulher a ter relações sexuais com outra mulher ou mulheres. Para o homem ficam os papéis do inquisidor, primeiro, do contemplativo, depois, e da vítima, por fim. O homem é um ser, afinal, menor, residual, à mercê do Eterno Feminino ou acidente da sua demanda, culpado da hubris que já tinha castigado Psique. E deixa-se ver na sua miséria, de homem vazio.
Num segundo nível, este filme é autobiográfico, logo catártico. Contas acertadas com o destino. O artista sempre a transformar o seu mundo em arte. A arte como hiper-realismo jurídico.
Num terceiro nível, este filme é cartesiano. Todas as personagens são extensões da voz do protagonista, sendo este o alter-ego do argumentista, o próprio realizador. Trata-se de uma res cogitans que subsume todas as falas na mesmidade da mensagem monolítica. Ao lado, paralelo, a res extensa do suposto objecto temático. Mas é mentira, não há contacto entre paralelas, e os cartesianos têm horror ao salto para o outro lado. Não se filma o desejo feminino, antes a sua paródia. Estamos, apenas, perante um pretexto para mostrar corpos desejáveis, e desejáveis por serem jovens. É, pungente de tão patética e de tão pretensiosa, a visão de um velho homem que nunca amou seres femininos. Por isso, nada tem a dizer sobre eles.
Num quarto nível, este filme é uma merda. Mas é um filme, e por isso deve ser visto.
“exibe-se (…) a mulher a ter relações sexuais com outra mulher ou mulheres”
“este filme é uma merda.”
É impressão minha ou estes dois enunciados são claramente cintraditórios …
casanova
Concordo, serão contraditórios (para uma imensa maioria). Mas convém que desenvolvas um salutar gosto pelo cinema, sem o qual também não terás um saudável gosto pela realidade.
É que, bem vês, as coisas andam todas ligadas. E a realidade não se cansa de imitar o cinema.
Valupi, nunca sei se é hubrys se hibrys, mas ultimamente andava nesta última…
“Este é um daqueles filmes que importa ver pelas piores razões.”
Obrigada pelo estímulo.
hubris, ou hybris… parece… eu também pensava que as razões apontadas seriam suficientes para um filme ser um bom filme. :p
Py e susana
‘Húbris’, em língua camoniana segundo o Houaiss. Escrevi ‘hubrys’ de memória, mas é formulação pouco usada e pode mesmo estar errada.
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Rita Lima
De nada.
Valupi:
Sem dúvida o casanova poderia alimentar mais o gosto pelo cinema.
Agora há uma coisa que te posso garantir é que não deves levar os comentários dele muito a sério.
Caro Luis
Sei bem. Daí o meu repto cinéfilo.
Fez bem o sofista Valupi em não ter deixado passar este vergonhoso hino ao safismo. A esfrega entre duas mulheres é contra a natureza humana e prejudica os interesses dos rapazes que não têm feitio para serem maricas! Palmas ao homem, por tanto e por isso.
Anonymous
Apoiado. Sábias palavras.
Um filme é sempre bom mas a forma como o descreves tira o apetite de o ver…
Sabias que o bater de asas de uma borboleta em Nova Iorque pode provocar um tufão em Pequim?
Ui. É incrível como falas tão pouco do filme.
sininho
Tiro o apetite a quem? A quem nunca o iria ver? Quem gosta de cinema não troca a sua experiência, o seu gosto, pelo de um palhacito qualquer (como este vosso humilde criado).
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Primo
E até poderia ter escrito menos, teria dito o mesmo; talvez fosse ainda melhor para o que aqui interessa transmitir. Poderia ter deixado só as duas últimas frases.
A tese é: se alguém que não iria ver o filme passar a ter curiosidade para tal, o cinema terá ganho. Por contraposição, eventuais textos laudatórios sobre um filme poderão causar experiências de desilusão nessa dinâmica das expectativas. Aí, o cinema (ou outra arte qualquer) perde, pois o ingénuo que acreditou no escriba vai sentir-se defraudado.
Não devemos entregar o nosso gosto ao primeiro que se lê (nem ao último, nem a ninguém).
Valupi,
Parecendo que não, és afinal um terapeuta. Explico.
Acabas de tirar-me esse peso, que carrego desde que o mundo é mundo, de sentir-me culpado ao ter, aqui e ali, de dizer (comparativamente, é certo) que certo romance é uma merda. É que, sei agora, estou simplesmente a convidar a ler…
Isto está tudo muito, mas mesmo muito pré-determinado.
“Trata-se de uma res cogitans que subsume todas as falas na mesmidade da mensagem monolítica. Ao lado, paralelo, a res extensa do suposto objecto temático.”
Que imenso vazio…
Fernando,
Exactamente. Aliás, é preferível que nos digam mal da obra, qualquer. Será profiláctico ou catalisador.
Contudo, as melhores condições para se aceder à arte são as da amnésia. Tudo esquecer de referências e opiniões, e receber a obra como se transportasse a alvorada da Criação. E depois, sem misericórdia, julgá-la no tribunal da experiência. Só posteriormente ir acudir aos sobreviventes do massacre subjectivo ou deixar oferendas aos pés dos novos deuses.
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Vero
Concordo (e muito) contigo.
Tens razão, voto na amnésia. Como em tudo, na vida, o ideal é olhar o futuro sem aprioris.
Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo…/…contente quase e bebedor tranquilo…
Não era mau, se o mundo fosse a cabeça do Pessoa!
(do Ricardo Reis, o Pessoa é outro fulano)