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Um livro por semana 76

«Do tempo sitiado» de Paulo Ferreira Borges

Paulo Ferreira Borges pertence à família dos poetas (como Vitorino Nemésio) para quem a Geografia vale mais do que a História. Pataias, Caldas da Rainha, Nazaré, Óbidos, Foz do Arelho, Salir do Porto, S. Martinho do Porto, Paredes da Vitória, Peniche, Vale Furado, Ilha da Berlenga, Alcobaça, Praia da Consolação, Leiria, S. Pedro de Muel, Praia da Légua e Santa Catarina – são os lugares dos poemas deste pequeno/grande livro.
De um lado temos a terra, veja-se poema da página 27: «As mães trazem cerejas numa cesta de vime / Nas noites de vésperas, os seus dedos / cheiram a pão-de-ló, a erva-doce, a canela, / a raspa de limão, e nos seus olhos vertiginosos / derrama-se uma cor de fogo escuro, semelhante / à do licor de ginja que dorme na paciência de vidro / das garrafas depois de incorporar as últimas pétalas de sol.» Do outro lado temos o mar, como na página 44: «As traineiras escoavam dos olhos / os seus nomes marejados. Amor de Mãe. / Celacanto. Estrela da Tarde. Nossa Senhora da Nazaré. / Três Irmãos. Xixão. Refrega. / E no rosto penitente de uma / sobrevivente de fainas e virações / incandescia-se de sal um epigrama / ou um lampejo: Olhos de Deus. / Claríssimos tons / na avidez das águas.»
Só um poeta no completo domínio da sua escrita pode assinar este poema: «As mulheres tinham varandas, pequenas cercanias / que se prolongavam dos olhos, da boca, do ventre / onde penteavam os seus longos cabelos pretos / e se punham a pensar, a tecer os filhos, a estender a roupa branca / com uma mola de madeira apertada nos dentes. / Nas varandas mais recônditas / as mulheres labiavam preces, terçavam promessas / intercediam, mediavam, nutriam as lamparinas / de azeite, até ao dia em que os filhos / regressavam das guerras ou de outras tormentas. / As mulheres tinham varandas. E quando morriam / era numa toda envidraçada / que dava para dentro dos seus corações.»

(Editora: Textiverso, Capa: Aguarela de Mário Botas, Patrocínio: Junta de Freguesia de Pataias)

Um livro por semana 79

«Lavagante» de José Cardoso Pires

No dia 1-5-1962 houve em Lisboa uma grande manifestação popular: muita pancadaria, tiros, mortos, feridos, correrias, cacetada brava, o carro da água e o da tinta azul que sujava tudo e marcava os manifestantes. É nesse tempo e nesse espaço que decorre a acção desta narrativa que tem o subtítulo de «encontro desabitado». Cecília («cabelo claro, busto pequeno, pernas e pés sólidos, uma fria altivez») encontra Daniel num café de estudantes e diz-lhe sem mais nem menos «Importa-se de me levar a casa?» acabando por «ficar uma hora dentro do carro a conversar». Os dois falam de si e do mundo: «Estamos em plena Idade Média com astronautas a voar por cima de nós». Nesse dia 1-5-1962 «enquanto Daniel tratava dos feridos e a cidade andava em guerra, Cecília, no seu quarto de mulher só, fumava cigarros atrás de cigarros». Daniel esteve preso 52 dias e foi libertado ao 53º dia com uma carta de Cecília que explica tudo: «Não me podes levar a mal. Perder-te! Vê tu ao que eu cheguei: perder-me para te salvar! Cheira a fado lamechas que tresanda mas que queres?». O PIDE a quem Cecília se entregou em troca da libertação de Daniel é o lavagante, o animal «de tenebrosa memória, paciente e obstinado que, depois de alimentar o safio e de o ver engordar vem, de garras afiadas, devorar o grande prisioneiro que alimentou durante tanto tempo».
Dez anos depois da morte (apenas civil) de José Cardoso Pires a publicação deste inédito surge num duplo registo: descoberta para o leitor actual e homenagem a um grande escritor português.

(Editora: Edições Nelson de Matos, Capa Paulo Condez, Ilustração: Sónia Oliveira, Fixação de texto: Ana Cardoso Pires)

Vinte Linhas 280

O quarto de João Garcia 

O quarto de João Garcia fica aqui no primeiro andar do nº 204 da Rua da Rosa, a mesma rua onde nasceu Camilo Castelo Branco. Escrevo e digo fica porque embora João Garcia já não viva naqueles metros quadrados nem já espere cartas de Margarida ao domingo (naquele tempo havia correio ao domingo…) a verdade é que está tudo na mesma como quando Vitorino Nemésio por aqui passou entre 1919 e 1921, ente a vida militar nas Janelas Verdes e as reportagens no jornal A Pátria. A capelista da Rua da Rosa nº 200 que entra no romance «Mau tempo no canal» na página em que se recorda a criadita que deixou molhar o jornal quando veio da capelista, pois a capelista também continua. Hoje já não vende só jornais, figurinos, cadernos, agulhas e carrinhos de linha mas relógios, bonecos, perfumes, brinquedos, bilhetes-postais e CDs. Isto além de ter uma máquina de fotocópias. Mudou de dono por trespasse e hoje tem ao balcão um simpático senhor indiano que regista as lotarias, as raspadinhas e o euro milhões. Os gatos do tempo de João Garcia, quando o jovem militar açoriano subia do Rossio cheio de cafés onde os boatos escaldavam tanto como a bica, os gatos deram lugar aos cães. O peixe frito que João Garcia via sempre nas portas da Rua da Atalaia desapareceu para sempre.

À noite, quando regresso a casa pelo Elevador da Glória e entro no Bairro Alto por aquele lado, olho sempre para o primeiro andar do nº 204 da Rua da Rosa. Então se está nevoeiro e choveu de mansinho ou se ouvi nesse dia um CD de Hélio Beirão com músicas da viola da terra, fico com a quase certeza que João Garcia continua ali no seu quarto à espera de uma carta de Margarida.

Um livro por semana 81

 

«A ressurreição da água» de Maria Antonieta Preto

Quatro anos depois de «Chovem cabelos na fotografia» Antonieta Preto regressa com «A ressurreição da água». Num espaço e num tempo plenos pelas novidades uniformizadoras (automóvel, TV, Internet, telemóvel, hipermercado) a autora constrói narrativas nas quais os protagonistas se defrontam com problemas essenciais e antigos. A falta de água por exemplo: «Era uma tristeza já a gente olhar para o campo. Lembro-me quando houve as últimas novenas. Pedimos água a cantar, enxurradas de força. Perdemos todas as criações: o nosso campo inteiro. Perdemos também as mulas e as cabras a pastarem. Perdemos as romãs nas romãzeiras. Perdemos as batatas, as favas, os alhos, as cebolas.» A água é a fonte da vida; a terra é o lugar da morte. A autora explica que «Antigamente os mortos não morriam» porque eles «iam vivos para dentro da terra.» Surge aqui uma dualidade: a narrativa e o Mundo: «Tenho os olhos cheios de estórias como os meus olhos estão cheios de mundo. Aquilo que se conta sonha-nos e transforma-nos e dá-nos um mundo dentro de outro mundo. O mundo nunca é verdadeiro sem todos os mundos dentro dele». Entre o Mundo e a Escrita a autora não pára de inventar («Invento todos os dias a vida que existe») criando novas realidades em si («criei um céu no meu quintal») e nos outros: «Às mulheres desta aldeia oiço dizer coisas esquisitas: que os seus homens não querem amá-las.» Contra a secura da terra e a aridez do Mundo só a alegria da água pode salvar e fazer a ressurreição das vidas perdidas: «A vida lá fora é insalubre. A vida lá fora é pantanosa. A vida lá fora é desperdiçada.»

 

(Editora: QuidNovi, Foto: Daniel Mordzinski, Notas: Paulo Barriga, Urbano Tavares Rodrigues, Manuel Silva Ramos, Jorge Listopad e Miguel Real) 

Vinte Linhas 82

Dissertação sobre um nome

O teu primeiro nome tem, dentro de si, a força da Terra e a graça de Deus.

Ele é, sem dúvida, o nome feminino mais divulgado em todo o Ocidente. Tem a sua origem nas profundezas da língua hebraica mas não se ficou pela Bíblia e pelos Quatro Evangelhos. Está presente na Eneida de Virgílio, no teatro de Luigi Pirandello, nos romances de Tolstoi, nos contos de Pushkin e nas óperas de Mozart. Está junto à Terra e o seu som pronunciado resolve as hesitações nas encruzilhadas sombrias dos caminhos quotidianos. Digo o teu nome e tenho, no momento de o dizer, uma direcção e um sentido. Porque sinto, dentro do seu som, a força da Terra e a graça de Deus.

O teu segundo nome tem, dentro de si, a força da Água e da Natureza. Vem de uma origem duvidosa, envolta na neblina da lenda. Terá sido a primeira mulher, a que saiu do mar e deixou os homens da praia, entre atónitos e cheios de júbilo, aquela a quem chamaram mar yam – gota do mar. Como se essa mulher quisesse mostrar que só há vida na água porque vivemos com a água e morremos quando estamos dezassete dias longe da água. O mistério da vida e os milagres da existência têm uma raiz nessa mulher que saiu do mar e a quem os homens chamaram mar yam – gota do mar.

O teu nome, feito de dois nomes, é uma bandeira feliz, um estandarte de alegria, uma luz que não se apaga. O teu nome, feito de dois nomes, é o lugar ideal para ouvir o som da voz da terra e o murmúrio do mar, o apelo a ficar e o convite a todas as viagens.

O teu nome, feito de dois nomes, tem a dimensão sem medida dos sonhos e a música sem fim de todas as orquestras. O teu nome, feito de dois nomes, Ana Maria.

Vinte Linhas 275

Esta Lisboa que eu amo…

Cheguei a meio da tarde disposto a estrear condignamente a nova esplanada do Jardim de São Pedro de Alcântara bebendo um café e comendo um pastel de nata. Parece-me mais um miradouro do que um jardim mas isso é outra história. Nem reparei nos ocupantes das outras mesas. Mas, de súbito, uma voz levanta-se e ouve-se por sobre as outras. O seu registo, o seu timbre, a sua altura, tocam fundo dentro de mim e comovem-me. É Simone de Oliveira que conversa animadamente com três pessoas, dois jovens e um senhor de meia-idade. Jornalista desempregado que hoje sou, palpita-me que os três formam uma equipa de reportagem. Um deles exibe um computador portátil, o outro toma notas num bloco, o terceiro fala. O que me comove é ter descoberto o mesmo tom de uma canção que dava nome a uma revista que eu vi no Teatro Monumental. Já passaram quarenta anos e «Esta Lisboa que eu amo» continua hoje no meu ouvido e no meu coração. Eram as chamadas Revistas do Vasco Morgado com o Paulo Renato e o Carlos José Teixeira. Eu era um jovem, foi há quarenta anos e parece que foi ontem. A voz de Simone de Oliveira mantém aquele particular timbre e, mesmo sem cantar, falando apenas, vem lembrar-me as palavras da canção «Esta Lisboa que eu amo». Tenho 57 anos, vivo em Lisboa desde os 15 e, por isso, já passei mais anos em Lisboa do que na minha terra. Na esplanada do Jardim de São Pedro de Alcântara também eu me atrevo a proclamar o meu amor pela cidade de Lisboa. Olho em frente e vejo o Castelo, olho à direita e vejo o Tejo, sinto à esquerda o bulício das Avenidas Novas e atrevo-me a dizer baixinho como quem faz uma oração sem fórmula nem liturgia – Esta é a Lisboa que eu amo!

Vinte Linhas 278

«Uma onda muito acima da ficção» no mais recente livro de José Mário Silva

Quando nos anos 80 Ernesto Rodrigues traduziu os «contos de um minuto» de Istvan Örkeni a recepção ao livro foi positiva mas a expressão contos de um minuto não ganhou popularidade em Portugal. «Efeito borboleta e outras histórias» de José Mário Silva (Editora Oficina do Livro) é um conjunto de histórias muito breves cujo ponto de partida é a definição de efeito borboleta: «se uma borboleta bater as asas, algures na Amazónia, pode provocar um tornado no Texas». Aqui se percebe que o amor é difícil: «Meu amor, Esta é provavelmente a última carta que te escrevo. Os meus netos venderão os móveis, deitarão fora o espelho e lerão, talvez com a indiferença de quem nada compreende, estas centenas de cartas que nunca te enviei.» Aqui se percebe que a morte é inevitável: «São sete da tarde. Alberto está na sua área, agitando o braço em semicírculo enquanto espera que algum automobilista se decida a estacionar. Depois de pedir ajuda a uma velhinha num 2CV preto vem a resposta com três notas de 50 euros – Meu filho, toma lá isto mas olha que nunca mais te quero ver nesta vida que levas, ouviste? – mas olhando melhor Alberto descobre uma gadanha no banco traseiro do 2CV. Aqui se aprende que nem sempre a literatura nos salva: «Quando A. M. Sousa publicou o seu primeiro romance aos 31 anos em 2014, a literatura portuguesa levou, nas palavras do crítico José Maurício Palhavã, um choque eléctrico fulminante. Ninguém esperava aquilo. Depois deu-se o previsível colapso. Cenas lamentáveis num talk show. O internamento numa clínica psiquiátrica. A longa travessia do deserto. O culto do silêncio. A vida austera num quarto sem nada. A pose do eremita.» Aqui se descobre o espanto de quem quer escrever um conto e leva com um tsunami em directo no ecran da televisão: «Alguém ligou a TV. Era domingo, manhã radiosa. E no outro lado do mundo uma onda erguia-se muito acima da ficção.»

Sobre «Os males da existência» de António Sousa Homem

«Toda a literatura é uma homenagem à literatura» – este pode ser o ponto de partida para a abordagem deste livro (Editora Bertrand) que recolhe as crónicas assinadas por António Sousa Homem na Revista Notícias Sábado. Na crónica «O romance de uma vida» o autor explica que o seu pai «tinha pelo romance um desprezo discreto» porque tinha lido os nove volumes de «The life and opinions of Tristram Shandy, Gentleman» de Lawrence Sterne. Sendo António Sousa Homem «um botânico amador e um coleccionador de hibiscos» nunca poderia escrever um romance porque lhe falta o «temperamento trágico». Estas crónicas são (também) uma homenagem a esse antepassado remoto. Tristram Shandy tinha o pai Walter, a mãe, o tio Toby, o criado Trim, o Dr. Slop e o reverendo Yorick. Aqui temos o velho Dr. Homem, o pai, a sobrinha Maria Luísa, a empregada D. Elaine, a tia Benedita, o tio Alberto. Não vale a pena perder tempo a escrever um romance quando se pode desdobrar esse romance em capítulos semanais – as crónicas. O autor viveu numa casa com um retrato de D. Miguel na parede, teve um avô que simpatizava com o Dr. Brito Camacho e tem uma sobrinha que vota no Bloco de Esquerda. Retrata-se («Eu sou um velho minhoto«) e retrata o mundo: «O mundo pertence aos bravos que fintam a histórias e triunfam episodicamente; simplesmente, não sabem que a vida é apenas um episódio». O seu mundo começa na província: «A nossa pobre província era apenas pobre e insatisfeita; simplesmente, não o sabia e também não sabia como era ignorante, preguiçosa e emproada.» Chega de citações para recomendar um bom romance que não se anuncia como tal mas que, mesmo assim, não deixa de o ser.

«O cavaleiro da Ilha do Corvo» de Joaquim Fernandes

O ponto de partida deste livro (editado pelo Círculo de Leitores) é o episódio do desaparecimento dos restos da estátua do cavaleiro da Ilha do Corvo que o rei D. Manuel I mandou arrumar nos roupeiros da sua antecâmara em Almeirim no ano de 1519. E uma pergunta do rei venturoso: «Que teria a sua minúscula ilha de especial para albergar tão misterioso aviso em forma de estátua equestre?»
Dois jovens investigadores (Michael, americano e Lúcia, portuguesa) lutam contra uma seita (Os Cristoforos) para descobrirem a verdade sobre o cavaleiro da Ilha do Corvo: «A História está traçada desde há muito. Os livros já escritos vão continuar a ser lei e assim deverá continuar.»
Há perseguições nas estradas de Sintra, agressões a um cientista belga, mortes misteriosas de pessoas que tentaram ajudar os dois jovens investigadores, o suicídio de um responsável da Torre do Tombo no Padrão dos Descobrimentos e tudo isto acontece para que nada mude: «Impedir que os «povos sem Cristo» tomassem na História o lugar de pioneiros na descoberta do Novo Mundo. Preservar a todo o custo a imagem de Cristóvão Colombo como primeiro descobridor da América. Defender a ideia da primazia absoluta das viagens marítimas portuguesas no Atlântico. Uma das pistas mais curiosas é a descoberta de moedas cartaginesas na Ilha do Corvo no século XVIII. Como a data das moedas é entre 330 e 320 anos antes de Cristo, o mesmo é dizer século IV antes da era cristã, é mais um argumento a favor da ideia de que as ilhas portuguesas do Oceano Atlântico não foram descobertas pelos Portugueses mas apenas redescobertas.

(lido aos microfones da RDP Antena Um Açores em 18-7-2008 às 12 horas tempo de Lisboa)

Vinte Linhas 272

«A cunhada do Pintor» no Museu do Prado

O Museu do Prado encheu-se de retratos antigos na exposição «El retrato del Renacimiento». Um dos mais famosos é o retrato feminino de Bernardino Lucinio. O dito quadro, também conhecido por «A cunhada do Pintor», dá-nos a beleza em esplendor de uma mulher com um livro na mão. Este pormenor (com um livro na mão) lembra-me uma mulher que à hora a que escrevo, algures entre as estações de Nuevos Ministérios e de Barajas Terminal 4, deve estar a fechar a porta da sua livraria em Lisboa. Isto porque em Lisboa os relógios marcam menos uma hora. Mais ao lado está o retrato de Katharina Fürleger de Dürer e um Tintoretto com a imagem de Verónica Franco, a mais bela mulher que viveu em Veneza entre 1546 e 1591. E também Rubens com Brígida Spínola Dória sem esquecer Franz Pourbus com a bela Margarida Gonzaga. Em todos estes quadros há o projecto alcançado de vencer o tempo. Quase quinhentos anos depois de terem sido pintados, permanece nestes óleos uma beleza que não morre. Morreram os modelos mas o produto do trabalho dos artistas chega intacto até nós. No meu caso sem necessidade de pagar – os porteiros do Museu do Prado aceitaram a carteira profissional e, com um sorriso, entregaram-me um bilhete a zeros. Não são como os do Jardim Botânico que me obrigaram a pagar 2 euros. Quis juntar Arte e Natureza no mesmo dia. Além de uma temperatura agradável lá descobri uma rua dedicada ao nosso Avelar Brotero. Quando saí do Jardim Botânico a caminho da estação de Atocha ainda trazia no olhar o esplendor da beleza das mulheres da Renascença misturado com a memória da beleza de uma mulher que, a essa mesma hora, pegava num livro e fechava a porta da sua livraria em Lisboa.

Vinte linhas 81

A última aguardente do Tio Nascimento

Bebo devagar um cálice de aguardente branca e muito leve, puríssima e macia, tal como saiu do alambique no passado mês de Setembro. É uma aguardente que não pesa no estômago e que torna as digestões mais suaves. Mas não a posso gastar muito depressa porque esta aguardente é uma memória viva do meu Tio Nascimento e da sua Atalaia do Ruivo, paisagem perfeita entre sol e pó, entre pedras e pinheiros, entre água e vento. Lugar mágico onde a terra quase se junta ao céu numa espécie de oração sem palavras. Dois dias antes de morrer com o coração cansado e incapaz de trabalhar mais, este homem que foi, em novo, ceifar todas as searas do Alentejo e das regiões espanholas fronteiriças, estava possuído de um vigor inesperado e obrigou os filhos e as noras a trabalharem ainda mais para irem entregar o bagaço e o folhelho da uva a um certo alambique para os lados da Serra das Corgas. Depois foi fazer uma festa ao burro e enxotar as galinhas antes de olhar as cabras. Entretanto morreu na grande cidade um dia antes de fazer a grande intervenção cirúrgica que lhe poderia ter prolongado a vida caso corresse bem. Mas não correu. Hoje este gesto de beber um cálice de aguardente tem para mim o valor de um regresso. Esta bebida guardou a paisagem povoada pelo Tio Nascimento entre o seu lugar de sempre, a sua casa dos ventos onde se vê ao longe um bocado de Espanha e, mais perto, a terra das cerejeiras em flor. Essa paisagem povoada onde o corpo do Tio Nascimento descansa no cemitério da Sobreira Formosa mas onde o espírito circula no sabor macio e puro, leve e branco desta aguardente que não pesa no estômago. Porque incorpora a memória destilada de um homem cheio de humanidade.

Vinte Linhas 79

Viagem com Ana Maria

De repente falámos de Veneza e as carruagens do Metropolitano sofreram nos meus olhos uma metamorfose, as estações ficaram inundadas e os seus nomes passaram a ser gritados em italiano pelo marinheiro fazendo sinal com o braço ao capitão para que a demora em cada paragem seja curta. Estamos num vaporetto prestes a chegar à Praça de São Marcos inundada de pombos e de japoneses com máquinas fotográficas da última geração. Á esquerda o grande areal do Lido com as mesmas pequenas casas de madeira usadas nas filmagens de «Morte em Veneza». Todos os anos as pintam no princípio da época balnear. E porque são muito caras há quem viva em Veneza e as alugue para usar de manhã subalugando a amigos à tarde. Vejo nos teus olhos a imensidão do Mar Adriático sem ondas e apenas sacudido ao de leve pela passagem de um petroleiro a caminho do Sul. Vem de Trieste, do outro lado do Golfo. Oiço na tua voz as sílabas perdidas de todas as minhas viagens. Um voo nocturno para Milão, uma viagem de autocarro até Bolonha, uma viagem de comboio até Veneza. No bulício da estação de comboios de Santa Lúcia descubro a tua voz límpida, terna e alta como num passeio da Rua do Ouro em 1969. Ao fundo está não a Ponte de Rialto mas o Cais das Colunas e os cacilheiros lentos cruzando um rio triste onde chegam aerogramas amarelos com notícias de emboscadas e de feridos evacuados de helicóptero. Os aerogramas estão todos amarrotados nos bolsos dos casacos dos passageiros. Tenho de novo dezoito anos na tua voz porque a memória não mente. Entre a emoção e a verdade a memória escolhe sempre a emoção que é, também, todos o sabemos, uma forma de verdade.

Balada da casa da Ericeira

A casa que não é minha
Mas onde me sinto bem
Os galos de manhãzinha
Não deixam dormir ninguém

O vento traz a frescura
Que bate à porta do Verão
Uma varanda segura
Longe da maior confusão

A janela dá para o mar
O pinheiro serve de espelho
Que reflecte a luz do lugar
No moinho branco e velho

Caldeirada de paciência
Faz refeição de alegria
Entre a arte e a ciência
Esplendor de gastronomia
Continuar a lerBalada da casa da Ericeira

Vinte Linhas 270

Os 14 dias de Barbara Hepworth

No dia em que eu nasci o filho de Barbara Hepworth alistou-se na RAF. No dia em que eu fiz dois anos o filho de Barbara Hepworth desapareceu com o avião que pilotava nos céus da Tailândia, ao serviço da RAF. Isto é apenas uma curiosidade de datas mas um dos pontos mais interessante na vida desta escultora (1903-1975) famosa pelas suas esculturas respirando formas de grande pureza e ligando de modo feliz Natureza e Arte, é a história dos 14 dias. Chamo eu história dos 14 dias a esta história. Vejamos. Corria o ano de 1926 quando a então jovem artista se deslocou de Florença a Carrara para aprender «in loco» a trabalhar o mármore e a deslocar grandes pesos. Casada há pouco tempo com o pintor John Skeaping, o dinheiro não abundava («cheguei a Florença com apenas 9 libras no bolso» – recordou mais tarde) e por isso alugou um pequeno estúdio. Nele mostrou ao público os seus primeiros trabalhos de escultura e nele esperou 14 dias mas ninguém apareceu. Mesmo no fim do dia apareceu um senhor, cujo nome era Eumorfopoulos e que, depois de lhe adquirir seis peças, se tornou seu amigo. A amizade entre os dois só terminou com a morte do senhor Eumorfopoulos durante a segunda guerra mundial.
Todos nós precisamos destes exemplos. Mesmo numa escala muito modesta («pequenos e médios comerciantes, pequenos e médios industrias, pequenos e médios escritores» – diz uma amigo meu, com piada) esta perspectiva de estar 14 dias à espera de um visitante numa exposição de escultura em 1926 e mesmo assim nunca desistir é um exemplo meritório. Os 14 dias de Barbara Hepworth podem ser lidos assim: o poema, o conto, o romance, a peça de teatro, o óleo, a escultura podem esperar 14 dias que aparecerá sempre um senhor Eumorfopoulos disposto a compara seis peças e ao mesmo tempo ajudando à sua divulgação pela Europa e pelo Mundo.

Vinte Linhas 269

As raposas de Charles Gounod

Quem apanha à meia-noite e cinquenta o último comboio de London Bridge para Lewisham já sabe que lá se forma uma enorme bicha nos táxis. É em Lewisham que termina o DLR, o metro das docas de Londres, pequenino e rápido, guiado por um computador. Seguindo para Blackheath Park encontra-se quase sempre uma raposa que se atravessa no caminho e foge dos máximos do automóvel. Os serviços de recolha de lixo já pediram os moradores para colocarem os sacos com fraldas em cima dos contentores e não ao lado dos mesmos. Chamo-lhe as raposas de Charles Gounod porque o célebre compositor francês viveu aqui durante cinco anos fugindo às confusões da guerra entre a França e a Prússia. Aqui, em concreto em Morden Road, que faz esquina com Blackheath Park no marco de correio da Royal Mail. Entre 1870 e 1875 Gounod andou por aqui ensaiar os maiores grupos corais de Londres. Demorava-se pela Charing Cross Road que ao tempo já era uma rua de livrarias e apanhava o comboio na estação dessa rua em direcção a Dartford. Saía em Blackheath Station e apanhava uma carruagem de aluguer até à sua Morden Road, entre o Paragon e Blackheath Park. Gosto de saber que o meu neto passa todas as terças feiras de manhã à porta da casa que foi de Charles Gounod a caminho da biblioteca municipal onde aprende a cantar e a mexer nos livros com respeito. Ele é pequenino e ainda não sabe que dentro de cada livro, dentro de cada história, poema ou peça de teatro, há muitas lágrimas e muito sangue pisado. Dentro de pouco tempo espero ouvi-lo cantarolar a «Ave Maria» de Gounod, maravilhosa variação a partir de um tema de «O cravo bem temperado» de Bach. Que por acaso era protestante.

MARGARIDA REBELO PINTO NÃO É DESTE PAIS

Não sei se o título desta pequena crónica é verdade para alguém. Para mim é
quase. Tirando o impiedoso retrato que Mário Ventura Henriques fez da
criatura num dos seus livros, pouco conheço desta figura da chamada
literatura «light». Mas li no sábado pp. no Diário de Notícias o aviso de
que MRB vai lançar um livro com o título igual ao livro de Joaquim Pessoa
«Português Suave». Nem a autora nem a editora nem a entidade que lhe
atribuíu o «ISBN» perceberam que já existe em Portugal um livro com o mesmo
título. Essa editora chama-se Moraes, a colecção «Círculo de Poesia» O
desenho da capa é do José Escada. Sei do que falo; tenho dois livros nessa
colecção. Talvez a explicação esteja na expressão literatura light. Se a
coca cola light é coca cola quase sem coca cola, então literatura light é
literatura quase sem literatura. Decididamente MRP não é deste país. Do
país de Joaquim Pessoa, do país de Ruy Belo e de Jorge de Sena, do país de
Sophia e Vitorino Nemésio, do país de Pedro Tamen e de João Rui de Sousa,
do país de Cristovam Pavia e João Miguel Fernandes Jorge, do país de
Joaquim Manuel Magalhães e Alexandre O´Neil, do país de David
Mourão-Ferreira e Alexandre Vargas, do país de Fiama Hasse Pais Brandão.
Não, não é deste país, do nosso país.

Vinte Linhas 268

Uma Vespa de 1955 em Brighton

Primeiro ouvia-se uma música suave numa praceta. O som brasileiro de João Gilberto em Brighton com saxofone tenor, contrabaixo, fliscorne, viola baixo e voz. Gente do mundo comia a ementa internacional – pizzas, saladas, massas, lasanhas. A moça abandona o grupo e pede, num chapéu, uns trocos para a banda. Acabados de chegar, contribuímos seguindo o princípio de Fausto Bordalo Dias – aos músicos dá-se sempre. Mais à frente, na praia de seixos grandes como ovos, um carrossel antigo e parado faz-se ouvir em músicas do meu tempo de menino ao domingo à tarde antes das transmissões desportivas dos anos 50 e 60: as eternas marchas de John Philiph de Sousa como «American Patrol», «Washington Post» ou «Stars and Stripes for Ever». Na galeria de pintores locais, entre «provas de artista» e «gravuras» com e sem «passepartout», uma colecção de caderninhos de apontamentos tem na capa a célebre «Vespa» de 1955. Com esse caderno vem toda a memória de uma música de liberdade. Por toda a Europa, a partir de Itália, a gente nova que não podia ter um automóvel, comprava uma «Vespa» a prestações. Mesmo com o contratempo das chuvas no Inverno, havia uma música de liberdade nessas «Vespas» do meu tempo de menino. Tu nasceste em 1955, como a famosa «Vespa» e sabes bem o que quer dizer «cinturinha de vespa». Fazia as delícias das modistas e das costureiras. Poupavam-se os saiotes para «armar» saias e vestidos. Entre o pó e o sol das tardes de Verão, os vestidos de tafetá brilhavam como relâmpagos no arraial. E não havia fotógrafos para registar o momento. Apenas o coração. Como vês trouxe de Brighton muito mais do que uma «Vespa» e uma rapariga de perfil em cinturinha de vespa…

Memória justificativa do livro «The Busby Years»

(a Francisco José Viegas, autor de «Morte no Estádio»)

A morte será também um fuso horário
Um meridiano de silêncio e de escuridão
Entre a água do rio e a madeira do bosque
Todos trazemos uma bagagem de mortos
Este livro evoca os jogadores do M. United
Perdidos num desastre aéreo em Munique

Há a nossa memória de Pavão nas Antas
No jogo treze e no minuto treze a morrer
Em Coimbra, Néne perdido num desastre
Quando o mini não desfez a curva grande
Em Lisboa Toni Kakinda a forte esperança
Da equipa de Caneira e de Simão Sabrosa
Antes Pepe em Belém de vinte e três anos
Com a mãe a trocar bicarbonato por potassa

Nunca se fala nos jornalistas também mortos
Os enviados especiais a esse lugar de morte
De onde já não é possível escrever notícias
Morreram todos assim no seu fato completo
Caneta de tinta permanente e bloco de notas
Cachimbo e todos eles de chapéu à Borsalino
Mas tirando as suas famílias e alguns colegas
Pouca gente recordará hoje os seus nomes
Continuar a lerMemória justificativa do livro «The Busby Years»

Vinte Linhas 267

Para ganhar não pode (de modo nenhum…) valer tudo

Fui jornalista profissional entre Janeiro de 1997 e Novembro de 2006. Durante esses dez anos de trabalho devo ter visto centenas de jogos ao vivo. Basta perceber que durante muito tempo «fiz» os juniores no sábado à tarde, os juvenis (ou iniciados) no domingo de manhã e o Lourinhanense (ou a equipa «B» do Sporting) no domingo à tarde. Pois vi tudo mas não tinha ainda visto tudo. Não vi mas falei com o meu amigo Sandro Baguinho que é jornalista e me explicou melhor uma coisa que não tem explicação. A situação insólita e quase inacreditável aconteceu no passado dia 10 de Junho no Seixal. O jogo era um Benfica-Sporting decisivo para a atribuição do título de campeão nacional de iniciados. Ao Sporting bastava um empate. Sendo a categoria denominada «Sub 14» percebe-se a idade dos miúdos envolvidos no jogo. Este começou de feição para os «leões» que marcaram logo aos 6 minutos por João Carlos. Mas no início da segunda parte (os jogos demoram 70 minutos) logo aos 40 minutos aconteceu um caso. Perante um jogador benfiquista estendido no relvado um jovem «leão» atirou a bola para fora para permitir a entrada da equipa médica dos «encarnados». No reatamento, para espanto de todos (ou de quase todos) o jogador do Benfica atira a bola para a grande área «leonina» e um avançado faz o golo em vez de devolver a bola ao adversário. Faltavam 30 minutos para o fim do jogo e as coisas ficaram complicadas. O SCP foi campeão. Que «pedagogia» permite atitudes destas num miúdo de 14 anos? Que escola se anda a formar ali no Seixal? Será que o miúdo não percebeu que nem todos podem ser Cristianos Ronaldos ou Moutinhos e que de cem jogadores sai um «muito bom» e de vez em quando? Bolas…

Segunda balada para Luciana

Se aqui entra zangado
Com notícias de jornais
Já sabe que deste lado
O café tem algo mais

Uma força, um perfume
Trazido das plantações
Um calor feito de lume
Com lenha de emoções

Porque o café é diferente
Das bebidas do mercado
Mata o frio com o quente
E o corpo fica encantado

Só me apetece cantar
E entrar no pé de dança
Com a idade a recuar
Quase chego a criança
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