A última aguardente do Tio Nascimento
Bebo devagar um cálice de aguardente branca e muito leve, puríssima e macia, tal como saiu do alambique no passado mês de Setembro. É uma aguardente que não pesa no estômago e que torna as digestões mais suaves. Mas não a posso gastar muito depressa porque esta aguardente é uma memória viva do meu Tio Nascimento e da sua Atalaia do Ruivo, paisagem perfeita entre sol e pó, entre pedras e pinheiros, entre água e vento. Lugar mágico onde a terra quase se junta ao céu numa espécie de oração sem palavras. Dois dias antes de morrer com o coração cansado e incapaz de trabalhar mais, este homem que foi, em novo, ceifar todas as searas do Alentejo e das regiões espanholas fronteiriças, estava possuído de um vigor inesperado e obrigou os filhos e as noras a trabalharem ainda mais para irem entregar o bagaço e o folhelho da uva a um certo alambique para os lados da Serra das Corgas. Depois foi fazer uma festa ao burro e enxotar as galinhas antes de olhar as cabras. Entretanto morreu na grande cidade um dia antes de fazer a grande intervenção cirúrgica que lhe poderia ter prolongado a vida caso corresse bem. Mas não correu. Hoje este gesto de beber um cálice de aguardente tem para mim o valor de um regresso. Esta bebida guardou a paisagem povoada pelo Tio Nascimento entre o seu lugar de sempre, a sua casa dos ventos onde se vê ao longe um bocado de Espanha e, mais perto, a terra das cerejeiras em flor. Essa paisagem povoada onde o corpo do Tio Nascimento descansa no cemitério da Sobreira Formosa mas onde o espírito circula no sabor macio e puro, leve e branco desta aguardente que não pesa no estômago. Porque incorpora a memória destilada de um homem cheio de humanidade.
Este sim. Texto belíssimo. São estes posts que atestam que estamos perante um escritor. Fiquei comovida. As lágrimas fizeram um ameaço. A Terra, o Homem, o Trabalho nos campos. Coisas ou histórias simples, de gente simples, de vidas simples. Que escapam muitas vezes aos olhares distraídos. É preciso que alguém não olhe apenas, mas veja e depois as descreva. Com palavras que nos transmitam uma lição feita de verdade e de poesia. Assim. Com a simplicidade que as coisas (aparentemente) singelas exigem e merecem.
A narrativa está linda, linda, linda, mas isso é o menos. O pior é a diabetes que vais ofendendo com cálices de branquinhas “macias e puras”. Assim, sem querer ser muito pessimista, atrevo-me a pensar que não irás ter muito tempo para afagares burros e enxotares galinhas, como fazia o tio Nascimento, e contares mais histórias de perto da raia como esta.
Mais vale um gosto que três vinténs, também aceito. Mas não te esqueças da vitamina B 3.
isso está bonito, jcfrancisco, palavra de cavalo.
acho graça a isto:
http://sol.sapo.pt/PaginaInicial/Politica/Interior.aspx?content_id=102674
consegues arranjar-me a citação do Nemésio onde ele diz que a Geografia prevalece sobre a História?
Aqui vai a citação; «A Geografia, para nós, vale tanto como a História e não é debalde que as nossas recordações escritas inserem uns cinquenta por cento de sismos e enchentes» in A Terceira Atlântida de Fernanda Durão Ferreira
mas então não era do Nemésio?
e nessa aí afinal não é prevalece, mas equivalem-se
estava mais à procura de como o chorus marca os fluxos
obrigado, em qualquer caso
Olá, José do Carmo:
Já você viu quantas gotas há num cálice dessa bebida preciosa ?
Gota-agota, meu Caro amigo, vai durar-lhe ainda um século.
O seu tio merece.
Jnascimento
A citação é de Vitorino Nemésio mas foi colhida num livro de Fernanda Durão Ferreira, apenas isso. Não tenho o original à mão mas serve para o efeito.
deixa-me dizer-te que estás muito enganado, os mortos só se citam ipsis verbis ou muito próximo disso, visto e conferido por estes que as chamas hão-de lamber