Vinte linhas 81

A última aguardente do Tio Nascimento

Bebo devagar um cálice de aguardente branca e muito leve, puríssima e macia, tal como saiu do alambique no passado mês de Setembro. É uma aguardente que não pesa no estômago e que torna as digestões mais suaves. Mas não a posso gastar muito depressa porque esta aguardente é uma memória viva do meu Tio Nascimento e da sua Atalaia do Ruivo, paisagem perfeita entre sol e pó, entre pedras e pinheiros, entre água e vento. Lugar mágico onde a terra quase se junta ao céu numa espécie de oração sem palavras. Dois dias antes de morrer com o coração cansado e incapaz de trabalhar mais, este homem que foi, em novo, ceifar todas as searas do Alentejo e das regiões espanholas fronteiriças, estava possuído de um vigor inesperado e obrigou os filhos e as noras a trabalharem ainda mais para irem entregar o bagaço e o folhelho da uva a um certo alambique para os lados da Serra das Corgas. Depois foi fazer uma festa ao burro e enxotar as galinhas antes de olhar as cabras. Entretanto morreu na grande cidade um dia antes de fazer a grande intervenção cirúrgica que lhe poderia ter prolongado a vida caso corresse bem. Mas não correu. Hoje este gesto de beber um cálice de aguardente tem para mim o valor de um regresso. Esta bebida guardou a paisagem povoada pelo Tio Nascimento entre o seu lugar de sempre, a sua casa dos ventos onde se vê ao longe um bocado de Espanha e, mais perto, a terra das cerejeiras em flor. Essa paisagem povoada onde o corpo do Tio Nascimento descansa no cemitério da Sobreira Formosa mas onde o espírito circula no sabor macio e puro, leve e branco desta aguardente que não pesa no estômago. Porque incorpora a memória destilada de um homem cheio de humanidade.

10 thoughts on “Vinte linhas 81”

  1. Este sim. Texto belíssimo. São estes posts que atestam que estamos perante um escritor. Fiquei comovida. As lágrimas fizeram um ameaço. A Terra, o Homem, o Trabalho nos campos. Coisas ou histórias simples, de gente simples, de vidas simples. Que escapam muitas vezes aos olhares distraídos. É preciso que alguém não olhe apenas, mas veja e depois as descreva. Com palavras que nos transmitam uma lição feita de verdade e de poesia. Assim. Com a simplicidade que as coisas (aparentemente) singelas exigem e merecem.

  2. A narrativa está linda, linda, linda, mas isso é o menos. O pior é a diabetes que vais ofendendo com cálices de branquinhas “macias e puras”. Assim, sem querer ser muito pessimista, atrevo-me a pensar que não irás ter muito tempo para afagares burros e enxotares galinhas, como fazia o tio Nascimento, e contares mais histórias de perto da raia como esta.

    Mais vale um gosto que três vinténs, também aceito. Mas não te esqueças da vitamina B 3.

  3. Aqui vai a citação; «A Geografia, para nós, vale tanto como a História e não é debalde que as nossas recordações escritas inserem uns cinquenta por cento de sismos e enchentes» in A Terceira Atlântida de Fernanda Durão Ferreira

  4. e nessa aí afinal não é prevalece, mas equivalem-se

    estava mais à procura de como o chorus marca os fluxos

    obrigado, em qualquer caso

  5. Olá, José do Carmo:
    Já você viu quantas gotas há num cálice dessa bebida preciosa ?
    Gota-agota, meu Caro amigo, vai durar-lhe ainda um século.
    O seu tio merece.
    Jnascimento

  6. A citação é de Vitorino Nemésio mas foi colhida num livro de Fernanda Durão Ferreira, apenas isso. Não tenho o original à mão mas serve para o efeito.

  7. deixa-me dizer-te que estás muito enganado, os mortos só se citam ipsis verbis ou muito próximo disso, visto e conferido por estes que as chamas hão-de lamber

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