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Um livro por semana 57

«Os Narcóticos» (volume 1) de Camilo Castelo Branco

A partir de dois livros de Fernando Palha editados em 1882, Camilo Castelo Branco revisita alguns episódios da História de Portugal. O título «Narcóticos» tem a ver com as tentativas de envenenamento de D. João II, diversas desde 1491 até à morte. Camilo recorda o rei («homicida traiçoeiro, implacável destruidor dos seus parentes, o primeiro que em Portugal queimou hebreus expulsos de Castela, promotor do extermínio de oitenta vítimas ilustres, a veneno e a punhal»), não se mostra surpreendido pela incorrupção do seu cadáver («faltava a ponta do nariz o que não quer dizer nada em matéria de santidade») e avança com uma explicação: «emprega-se o sublimado corrosivo e o cloreto de zinco para embalsamar cadáveres humanos por possuírem essas substâncias as propriedades conservadoras do arsénico.» Camilo aproxima a actualidade europeia (1882) ao passado português (1536) no que respeita ao problema judaico: «O mesmo era matar judeus não processados, como em tempo de D. João II, ou desterrá-los roubados nos bens e nos filhos como em tempo de D. Manuel, ou rebanhá-los em massa e lavá-los daí processionalmente aos suplícios públicos das praças.» Completam o volume a novela «O senhor ministro» e os textos «A viúva do poeta Ovídio», «Silva Pinto e a sua obra», «Ideias de D. João VI» e «Camões e os sapateiros» Na novela, Amália ouve do tio padre esta frase sobre os sonhos de literato do seu herói: «os melhores poetas de Portugal mendigaram mas os que eram pobres tiveram o bom juízo de não casarem – Camões, Bocage, Tolentino, etc.»

(Editora: Bonecos Rebeldes, Capa: Fernando Martins, Revisão: António Bárcia)

Vinte Linhas 288

Marcelo Rebelo de Sousa está comigo nos «atirados ao chão»!

Na aeronave «Luís de Camões» da TAP num voo recente Lisboa-Paris lembrei-me do «Aspirinab». Muito. É fácil perceber porquê. Foi-me oferecido o jornal semanário «Sol» que na sua edição de 4-10-2008 publica um texto de Marcelo Rebelo de Sousa na página 55 no qual o «professor» explica a sua versão dos «levantados» e «atirados» ao chão: «Saramago – Mas há coisas que não entendo. Como pôde mudar em edição posterior a dedicatória feita numa primeira edição. É como apagar alguém de uma fotografia antiga!» Para mim foi muito reconfortante ver que o professor Martelo dos bonecos e o professor da Faculdade de Direito (Marcelo Rebelo de Sousa) concorda comigo na tese de que aquela dedicatória àquelas pessoas do Lavre nunca podia ter sido apagada – com espanhola ou sem espanhola. Porque contém no seu articulado a génese da sua impossível desaparição. Quando eu escrevi que o Nobel tinha feito o mesmo que os fotógrafos de Estaline houve mosquitos por cordas mas a verdade é que o professor Marcelo Rebelo de Sousa lembra os processos de Estaline ao referir expressamente «apagar alguém de uma fotografia antiga». Valeu a pena esperar. Quando reproduzi parcialmente uma carta de um dos «atirados» ao chão houve um comentador do «aspirinab» que viu uma coisa que não estava lá. Quando o senhor em causa afirma «também eu reparei» isso significa que além de mim e de muitas outras pessoas (nomeadamente familiares das pessoas que contaram ao autor as histórias do livro) ele também já tinha reparado. Mas não – o comentador viu nisso o contrário; que ele não teria reparado se eu não lhe tivesse escrito. Mentira. Agora com o Marcelo Rebelo de Sousa é caso para dizer que valeu a pena…

Vinte Linhas 287

A francesinha torceu o pé no domingo de manhã

Num destes domingos de sol inesperado nos arredores de Paris, a francesinha torceu o pé. Bastou perceber que o pai (português) estava a bater à porta do quintal com os tios de Lisboa para, alvoroçada pela surpresa, surpreendida pela ousadia do pai, ter torcido o pé. Afinal o pai (português) estava só a mostrar uma parte dos arredores de Paris onde vive a canalha de Sarkosy (marroquinos, senegaleses, tunisinos, argelinos) e, como estava muito perto, foi mostrar a pequena moradia da filha aos tios de Lisboa.

Há trinta anos a avó da francesinha ficou muito surpreendida quando o pai (português) recusou de modo firme a hipótese (para ela óbvia) de passar a ser cidadão francês. Ele, cidadão de um país com fronteiras definidas muito antes da França que, ao tempo, era apenas um amontoado de ducados e condados. Mas para ela não era o genro nem o pai dos seus netos; era o estrangeiro. Há quinze anos a mãe da francesinha acusou o pai (português) de estar a assediar uns pequenos ladrões de bicicletas vizinhos quando ele apenas tentava recuperar as três bicicletas que os pequenos ladrões tinham roubado aos seus três filhos. Mas para ela não era o marido nem o pai dos seus filhos; era o estrangeiro. Neste domingo a francesinha torceu o pé porque se surpreendeu e alvoroçou num domingo de manhã cheio de sol ao ver o pai com os tios de Lisboa a bater ao ferrolho da porta do quintal. Mas para ela não era o pai, aquele em cuja casa os seus filhos ficam todos os dias; era o estrangeiro.

A ligadura que envolve todas estas pequenas histórias tem um nome (chauvinismo) e uma raiz comum: a maldade humana que, como sabemos, é infinita.

Um livro por semana 58

«A história da PIDE» de Irene Flunser Pimentel

Este trabalho é dedicado a Maria Ângela Vidal e Campos e Maria Fernanda de Paiva Tomás, as duas mulheres que, durante mais tempo permaneceram presas pela polícia política. A PIDE foi criada em 1945 no seguimento da actividade da PVDE (fundada em 1933) e deu origem em 1969 à DGS – três nomes para uma mesma sinistra tarefa: destruir a oposição organizada contra o Estado Novo. Este trabalho de 575 páginas desvenda o que foi a PIDE, a sua estrutura e os seus métodos: vigilância, captura, interrogatório, investigação e instrução de processos. Vejamos em breve nota o que no livro consta sobre o Padre Felicidade Alves: «Em 1965 a PIDE informou Salazar de que, na sua homilia proferida na Igreja dos Jerónimos, em 17 de Janeiro, o reverendo José Felicidade Alves defendera a teoria evolucionista, terminando com uma crítica às relações entre o Estado e a Igreja em Portugal. Disse ainda a PIDE que tinha sido feita a gravação integral desta homilia, prometendo que continuaria a gravar as missas desse sacerdote. Diferentemente do caso do bispo do Porto, em que Salazar se envolveu directamente mas em que o papel ambíguo de Cerejeira foi sobretudo de silêncio, o caso do padre Felicidade Alves teve a intervenção deste último, que acabou por emitir sobre ele o decreto de remoção e de suspensão a divinis das funções sacerdotais. No entanto o padre Felicidade Alves contou mais tarde que apenas começou a ser alvo da repressão da PIDE/DGS durante o governo de Marcelo Caetano.»

(Editora: Círculo de Leitores/Temas e Debates, Capa: Rochinha Diogo)

Vinte Linhas 286

Amália Rodrigues – saiu a 1ª das fotobiografias do século XX

Para quem esteve no serviço militar no fim dos anos 60, Amália Rodrigues (1920-1999) ficou nesse tempo conhecida por dois factos: o disco «Natal 1970» do Movimento Nacional Feminino no qual aparece ao lado dos Parodiantes de Lisboa (Patilhas e Ventoinha) e de Cecília Supico Pinto a dizer que «gostava de descascar batatas» para os nossos soldados em África e os célebres versos que mandou com um ramo de flores a Salazar quando este caiu da cadeira em 1968 – «Ponha-se-me bom depressa / Meu querido presidente / Depressa, que essa cabeça / Não merece estar doente».

Mas existe um outro lado da questão: segundo um informador da PVDE, Amália em 1939 fazia parte de uma denominada Organização Comunista do Fado na qual «a cantadeira Amália Rodrigues que fala inglês francês e espanhol, é quem, no Retiro da Severa, fala aos estrangeiros». Segundo esse relatório «Amália e o embarcadiço poliglota Alfredo Simões» desempenhariam um papel importante «pela sua cultura de línguas» …

Além do texto que revisita e situa historicamente várias biografias anteriores, algumas fotografias raras e mesmo inéditas (entre as quais uma de Amália com quinze anos na Marcha de Alcântara ao lado de sua irmã Celeste no ano de 1935) dão a este livro um novo motivo de grande interesse quando parecia que tudo afinal já estava dito e escrito sobre o tema Amália Rodrigues.

(Edição: Círculo de Leitores, Texto: Cristina Faria, Pesquisa: Margarida Belém, Genealogia: Lourenço Matos, Design: Rochinha Diogo, Direcção: Joaquim Vieira)

Um livro por semana 60

«Portugal no Mercure de France» de Philéas Lebesgue

Com tradução e coordenação de Madalena Carretero Cruz e Liberto Cruz, este volume de 707 páginas regista as intervenções do grande lusófilo Philéas Lebesgue que, entre 1896 e 1951, escreveu na revista Mercure de France sobre livros e autores portugueses. A revista incluía rubricas tão diversas como História, Arqueologia, Literatura, Museus, Questões Coloniais, Militares e Marítimas, Medicina, Teatro e Viagens. Philéas Lebesgue, que colaborou com mais de 1.600 artigos em 232 revistas europeias, tinha um conhecimento profundo da nossa literatura e podia garantir: «Uma literatura que possui mestres do estilo e do pensamento como Raul Brandão e Teixeira Gomes, romancistas jovens e vigorosos do valor de Aquilino Ribeiro, ensaístas e filósofos como António Sérgio e Raul Proença, historiadores como Jaime Cortesão, pode marchar de par com não importa qualquer outra no mundo.» Conhecia também o Povo e podia afirmar que «Se Portugal pôde ficar um povo culto, mau grado o número considerável de iletrados, deve-o ao seu admirável folclore lírico sobre o qual os novos poetas quiseram enxertar a sua inspiração.» No regicídio de Fevereiro de 1908 escreveu: «Portugal é tão pequeno, tão à parte, que não nos convencemos das repercussões europeias accionadas pelas suas próprias convulsões.» Fiquemos por fim com a sua ideia de saudade: «A saudade portuguesa é ao mesmo tempo desejo e recordação, aspiração e queixume. Está tão voltada para o passado como para o futuro.»

(Edição: Roma Editora, prefácio: Jean-Michel Massa, Capa: Albuquerque & Bate)

Vinte Linhas 285

«Uma memória de Pereiros» de Joaquim do Nascimento

São 14 crónicas de revisitação («Nasci nos Pereiros e ali vivi até aos doze anos») e daí o subtítulo – «Quotidianos de uma aldeia do Alto Douro – 1930-1980». A geografia sentimental é vasta: «A fonte da aldeia, a azenha ou lagar do azeite e o forno, tal como a igreja, as capelas, o cemitério, as tabernas, ou sotos quando vendiam tecidos, a escola do Combro e as salas de aula que precederam esta, se alguém ainda as conseguir identificar, os velhos caminhos, o rio e os seus açudes e pontes, o moinho da tia Elisa, a caminho de Valongo mas ainda do lado de cá do rio, tudo isto constitui a memória colectiva do povo dos Pereiros». Tudo começa na paisagem («As árvores da minha terra são os sobreiros, embora uma ou outra oliveira de tronco carcomido pelos anos possa figurar em segundo lugar») e acaba no povoamento: «Nos Pereiros, ao pedreiro, ao carpinteiro, ao ferreiro, ao ferrador, ao sapateiro chamava-se artista». Fiquemos pela crónica sobre a carreira: «Mais do que o seu percurso entre a Meda e o Pinhão, a carreira era para nós a velha camioneta que vinha todos os dias e nos ligava pela EN 222 à Vila, ao Comboio e ao Mundo. A carreira da Meda ou a carreira da Viúva passava todas as manhãs, pelas oito e trinta minutos a caminho do Pinhão e regressava às quatro e meia da tarde. Mostrar-se na Avenida para ver passar a carreira constituía a actividade social mais importante da gente da Vila e não vestir a melhor roupa para solenizar esse momento podia desqualificar um cidadão. Nesse curto intervalo desfilavam pela Avenida funcionários, artistas, comerciantes, desocupados, donas de casa virtuosas e meninas casadoiras, bisbilhotando quem tinha chegado e imaginando o destino de quem seguia, assim alimentando o seu imaginário de moradores desta pequena Vila do interior, onde nada se passava desde os tempos do senhor Marquês de Pombal e da criação da Real Companhia Velha».

(Editora: Padrões Culturais, Capa: Mário Andrade, Apoio: Associação Amigos de Pereiros)

Um livro por semana 87

«Breve tratado das artes da cópula» de Al-Sayed Al-Makhzoumi

Natural do Iémen, o autor foi um médico que tratou tanto homens como mulheres de Espanha até ao Noroeste da Índia, de Samarcanda até os países da Arábia e ao seu país natal. Dessa experiência de 65 anos de actividade clínica nasceu em 1725 o manuscrito deste actual clássico do erotismo. Vejamos um excerto sobre o beijo: «Na troca de carícias entre o homem e a mulher não há nada mais doce do que beijarem-se nos lábios e na boca. Os lábios e a boca dos homens e das mulheres são muito sensíveis ao toque entre ambos e muito prazer e excitação serão colhidos se isso for feito com bastante sofisticação e habilidade. As mulheres parecem ter bocas muito mais sensíveis do que os homens e retiram muito mais prazer do beijo. Isso pode explicar porque é que as mulheres gostam de demorar-se no beijo sem qualquer desejo aparente de cópula a não ser passado algum tempo depois, enquanto os homens tentam rapidamente e sentem um desejo urgente de copular após alguns poucos beijos preliminares. Realmente o beijo não os satisfaz no mesmo grau mas incentiva-os a outros desejos mais urgentes. As virgens, em especial, retiram do beijo toda a satisfação por que anseiam, pois nenhuma outra parte do corpo é estimulada. Contudo uma mulher experiente deseja ardentemente a cópula depois de estar satisfeita com os beijos. O beijo (Al Qqlab) começa com o toque entre os lábios do homem e da mulher. Os seus narizes devem encaixar-se perfeitamente de modo que os lábios se sobreponham em todo o seu comprimento. É altura de darem início aos movimentos dos lábios do homem sobre os da mulher e uma pequena quantidade de saliva pode ser passada pela língua dele para humedecer o contacto entre os lábios, que ficarão mais sensíveis, convertendo esse contacto num momento de maior prazer.»

(Editora: Padrões Culturais, Tradução: Carlos Adalto Souza, Capa: Mário Andrade, Prefácio: Isabel Afonso)

Vinte Linhas 284

Dinis Machado – «Sou do Sporting porque apertei a mão ao Jesus Correia!»

Neste dia triste da morte (civil) do escritor Dinis Machado gostaria de o lembrar não pelos livros mas por uma história povoada de ternura que ele me contou há muitos anos quando fomos à Escola Veiga Beirão falar de livros. Nascido no Beco do Carrasco, o Dinis fez a escola primária na Rua da Rosa e andou sempre aqui pelo Bairro Alto. Seu pai, o senhor Oliveira Machado, dono do restaurante «Farta Brutos», ex-árbitro de futebol e jornalista desportivo, levou o Dinis um dia à rua Jardim do Regedor para lhe mostrar a sala de taças do Sport Lisboa e Benfica. No fim da visita guiada o pai convidou o filho a inscrever-se como sócio do Benfica mas ele respondeu: «Pai, sou do Sporting porque apertei a mão ao Jesus Correia!» O porteiro teve uma frase definitiva: «Não há nada a fazer senhor Machado. Não nasceu para ser do Benfica, vai ser leão toda a vida!»

Nesse tempo não havia empresários nem sociedades anónimas desportivas, havia relatos da rádio, jornais desportivos três vezes por semana, rebuçados com bonecos da bola para fazer colecção. Havia menos fotografias mas mais tempo para as paixões. As emoções com as escolhas do nosso clube, essas são para toda a vida e até para além da vida. Morreu o Jesus Correia que apertou a mão ao Dinis Machado, morre o Dinis Machado que me chamava «poeta Lacerda» quando me telefonava para por a escrita em dia. Um dia fiz anos e ele ofereceu-me um soneto dos muitos que escreveu, sabia de cor mas nunca publicou. Eu queria oferecer-lhe um soneto em resposta mas já não vou a tempo. Eu, o «poeta Lacerda», alcunha que nunca saberei como nasceu no imenso sentido de humor do inesquecível Dinis Machado.

Um livro por semana 61

«Lisboa na rua» de Júlio César Machado

Além do clássico «Lisboa na rua» este volume inclui um divertido apêndice intitulado «O que havia de poetas por aquela época, é coisa incalculável» que conclui deste modo: «O destempero, a pieguice, a lamúria, produziram um efeito tão agradável que a chochice rimada tomou o lugar ao juízo, à arte e à moral.» «Lisboa na rua» é, como o título indica, uma radiografia feita de modo certeiro pelo nosso querido Machado: «Os rapazes finos de hoje passam dias sem ver o pai nem a mãe; ao princípio habituam as irmãs a ajudá-los a mentir, mais tarde nem isso. Os irmãos emprestam-se mutuamente dinheiro a juros; os pais especulam com as filhas em casamentos de perfeita lotaria social; as filhas habituam-se a enganá-los, vendo que eles as enganam e assim chegam mais facilmente a enganar os maridos. Tem tomado tudo uns jeitos de patuscada e de aventura. Não se vê por todos os lados senão um luxo frágil, egoísta, viajeiro.» A literatura do tempo (1874) também não escapa: «É raro por aí o rapazito literato que não seja condecorado com a Ordem de S. Tiago – e Camilo Castelo Branco não tem a Ordem de S. Tiago. Não são menos lidos os seus livros nem o seu nome é menos considerado. Talvez ele faça falta a S. Tiago mas S. Tiago de certeza não lhe faz falta a ele.» Nascido no Oeste, o autor escreve sobre Lisboa e a Província: «O rapaz de Lisboa saiu do colégio e não pensa senão em ter cavalos, beber muito, fazer desordens e ser ilustre no Chiado; o da Província ao ficar senhor de bens, trata logo de ver quais são os deveres que a sua riqueza lhe impõe. É acanhado mas por baixo do acanhamento há força, essa força é a superioridade da Província sobre Lisboa.»

(Editora: Frenesi, Ilustrações: Manuel Macedo, Assistência editorial: Telma Rodrigues)

Vinte Linhas 283

EUA – Lobo Antunes, Gregory Rabassa e o esplendor da ignorância

António Lobo Antunes esteve no Ateneu de Boston a conversar com o seu tradutor sobre «Que fazer quando tudo arde?» – «What can I do when everything´s on fire?» na versão americana. Instado sobre «que americanos lerão este livro» por João Céu e Silva, o tradutor Gregory Rabassa respondeu: «Os inteligentes sim, porque é difícil no estilo, nas ideias e no tema e os livros que se vendem cá são de quarta categoria. Os bons escritores estrangeiros raramente têm boa fama nos EUA.»

Agora que estamos a ferro e fogo com as eleições americanas vale a pena recordar as palavras de Jorge Luís Borges quando em 1978, recém regressado dos EUA, falou aos jornalistas em Buenos Aires: «Quase não se lê nos Estados Unidos. Aqui entra-se numa livraria e acham-se livros publicados há vinte, cinquenta anos. Lá, nos Estados Unidos os livros são, de facto, periódicos. Um best-seller é um livro do qual lá se vendem milhões de exemplares, porém ninguém o leva a sério, nem pressupõe que seja bom. Depois há o assunto da pornografia, os filmes pornográficos, a televisão. Aqui temos o hábito da biblioteca. Nos estados Unidos já não existe esse hábito. Fala-se de um livro de quatro anos atrás e ninguém se lembra dele…Falei com um senhor que ensinava História de Espanha; isto passou-se na Universidade de Michigan. Ele tinha chegado ao período das invasões napoleónicas. E naturalmente falou de Báilen, Wellington, o «dois de Maio», Saragoza, etc. Contudo ele notava no diálogo com os alunos que algo não ia bem. Perguntou-lhes o que se passava e responderam-lhe que ele estava a mencionar um nome que eles não podiam identificar. Esse nome era o de Napoleão.»

Um livro por semana 82

«Estórias de coisas» de José-Alberto Marques

José-Alberto Marques (Torres Novas, 1939) foi, a par de Mário Cesariny, Herberto Hélder e Natália Correia, um dos poetas revelados pela Contraponto. Este seu livro de 1971 foi apreendido pela PIDE. Deve ter sido pelo poema: Os presos «os presos penso eu que um chefe de cadeia divide / os presos em várias categorias: a) assassinos; b) ladrões; c) burlões; d) políticos; e) .. f).. g).. / não gosto de cadeias. já uma vez estive preso por / recitar poemas à noite e foi curioso porque / 6 meses antes eu era o delegado do procurador da / república interinamente e os guardas conheciam-me / muito bem. paguei 500$00 fui com o Rodrigues / não tenho a certeza mas creio que o chefe não / inutilizou os selos todos / não gostava de ser preso outra vez / já não recito poemas à noite / agora vou fazer um pedido aos nosso governantes: / acabem com os presos da alínea d)». Pode ter sido por As cidades: «as cidades conhecem-se pelo mercado / se os faxinas compram arroz / o tenente e o capitão estiveram na Índia e em Timor». Ou então Os polícias: «os polícias são assim homens com uma farda e não são militares / estão sempre à esquina e sempre longe dos acontecimentos / a propósito ontem soube /que ganhavam à volta de 2000$00 / e têm família quase todos». Há um registo lírico em As chuvas: «a chuva digamos que é água lágrimas brancas») ou em As árvores («um dia eu disse: as árvores são mulheres vestidas de ramos / ou disse: as mulheres são árvores coberta de cabelos») ou As janelas: «as janelas abertas são muito importantes / a gente vê passar as procissões, os carros / tenho recordações de janelas que só eu sei / as janelas fazem-me lembrar olhos e traições».

Esta edição coloca ao dispor dos leitores actuais um livro proibido em 1971 com, segundo ao autor do posfácio, «uma das mais altas realizações da lírica do nosso tempo.»

(Editora: Bonecos Rebeldes, Capa: Fernando Martins, Posfácio: Zetho Cunha Gonçalves)

Um livro por semana 80

«Uma extensa mancha de sonhos» de Graça Pires

O título deste livro de poemas é uma homenagem a «El Ingenioso Hidalgo Don Quixote de la Mancha», a obra-prima de Cervantes. Graça Pires, vinte anos depois de ter recebido com «Poemas» o Prémio Revelação de Poesia da A.P.E., ergue do silêncio o desenho da voz de Dulcineia, a heroína do romance de Cervantes.

Começa a voz nas bocas do Mundo: «quase um peregrino / quase um nómada / quase um louco / Um homem deambulando / no rumo dos animais bravios / que povoavam sua mente. / Uma vasta mancha de sonhos / me perturbou para sempre».

Continua a voz no encontro impossível: «Foi secreto e breve o nosso encontro / Nenhum registo o mencionou / Vieste, lembro / como quem vem por uma noite: / ansioso e clandestino».

Conclui a voz na morte de D. Quixote: «Numa aldeia da Mancha / um homem recuperou a razão / e começou a morrer».

O gentil-homem camponês só morre quando o abade e o barbeiro queimam os seus livros de aventuras de cavalaria – o mesmo é dizer, a sua «extensa mancha de sonhos», que é, não por acaso, o título deste excelente livro de poemas.

(Editora: Labirinto, Capa: estúdio gráfico da Editora)

Um livro por semana 83

«Primeira antologia de micro-ficção portuguesa» de Rui Costa e André Sebastião

Como refere Henrique Fialho no prefácio «sob a capa de poema, poema em prosa, aforismo ou o que quer que seja, a micro-narrativa vai marcando presença na literatura portuguesa». Esta antologia inclui textos de 22 autores, alguns no registo do humor como Fernando Gomes: «Gostava de tinto e bebia verde. Adorava Cesário Verde e lia Guimarães Rosa. Apaixonou-se por Rosa e casou com Violeta. O daltonismo tem destas coisas. Até jura que tem sangue azul.» Ou então Rafael Miranda: «Os taxistas perguntam sempre se não tenho mais pequeno; as mulheres se não tenho maior.» Henrique Fialho tem uma história sobre jornais: «O jornalista barricou-se na primeira página do jornal onde trabalhava. Não queria nada para si, reivindicava apenas um pouco de jornalismo na capa.» Rui Almeida tem uma história sobre livros: «A colectânea de contos de Natal encontrava-se em excelente estado, o que era pouco habitual naquela banca de alfarrabista com livros a um euro (…) Ao fim da tarde, no autocarro, a caminho de casa tirou a colectânea da pasta, afagou a capa com estrelas em relevo, consultou o índice e logo constatou que as seis folhas relativas ao conto do escritor que tanto estimava haviam sido cuidadosamente retiradas.» Um dos mais insólitos é «Azul» de Rute Mota: «Quando sai, de manhã, ele fica a dormir. Ao fim da tarde, não é raro encontrá-lo a um canto do sofá, a cama ainda por fazer. Com as amigas mostrava-se de um indecoro insinuante, roçando a inconveniência. Com os amigos, tornava-se uma presença castradora, corpo de silêncio ou de insónia, subindo de debaixo do sofá ou da cama. Enquanto ela se lava, toda a atenção dele se concentra no fascínio do jorro tombando, no nível da água subindo. Ele sabe: só depois ela lhe servirá o prato e lhe poderá tocar o pulso com a humidade do focinho. (Num gato diz-se azul a cor que em tudo o resto se diz cinzenta)»

(Editora: Exodus, Prefácio: Henrique Fialho)

Vinte Linhas 282

Jacinto Baptista e António Valdemar também estão no falso centenário

Quando alguns comentadores tentam aqui no Blog vender a ideia de que o falso centenário do Sport Lisboa e Benfica é um assunto «menor» vem a propósito recordar o livro «Repórteres e reportagens de primeira página» de Jacinto Baptista e António Valdemar. Este trabalho, patrocinado pelo «Conselho de Imprensa», divide-se em dois volumes: 1901-1910 e 1910-1926. Na página 41 lá aparece «O primeiro Sporting-Benfica em 1907» e, pasme-se! dois reputados especialistas em História, dois homens que muito admiro (o primeiro com quem aprendi em 1978 tudo o que sei sobre jornalismo cultural e o segundo, felizmente ainda vivo, com quem muito aprendi sobre História da Arte) estes dois brilhantes jornalistas «emendaram» as fontes acrescentando um parêntesis recto (!) e as palavras «e Benfica» ao texto dos jornais «Diário de Notícias» e «O Século» do dia 2 de Dezembro de 1907. Na página 41 lá está a citação: «Realizaram-se ontem, no campo do Carcavelos, os desafios entre o Sporting Club de Portugal e o Sport Lisboa [e Benfica] e entre o Clube Internacional de Foot-ball e o Carcavelos Clube». Todos sabemos que não se emendam fontes em citação. As fontes são o que são; se a notícia refere «Sport Lisboa» é porque o Sport Lisboa e Benfica só viria a nascer em 13 de Setembro de 1908. Eu por acaso tenho o «D.N.» de 2-12-1907 em fotocópia mas não era preciso – o parêntesis recto diz tudo… Outra coisa menos intelectual mas igualmente grosseira foi uma reportagem de «A Bola» em 1 de Dezembro de 2007 sobre o «centenário do derby». O presidente do Sporting, desconhecedor da história do seu clube, esteve lá com o presidente do Benfica e tirou retratos. Só faltou mesmo o garrafão.

Um livro por semana 84

«Poemas da guerra» de José Niza

De 1969 a 1971 o autor integrou um batalhão militar em Angola. Ao chegar deparou-se com «O Carnaval em Zau Évua»: «Aqui o Carnaval é todo o ano/desde o içar da bandeira/ao cair do pano/trezentos soldados/mascarados/suam bem suados/bagas de suor de un confetti/amarelo verde e encarnado/que não é daqui/um clarim toca/várias vezes ao dia/Pavlov descobriu/que os reflexos condicionados/também serviam para os soldados/ eu vou estando/e não esqueço/adeus/até ao meu regresso». À sua volta uma onda de boatos: «Dói-me um dente / coitado tem um grande abcesso / ouvi dizer que era um tumor na cabeça / parece que já chamaram a família / a que horas é o funeral?» O alferes miliciano médico decide uma estratégia («Rir/é uma palavra capicua/que dá sorte/rir de tudo/até da morte») que envolve a música de J.S. Bach: «Amigo/séculos nos separam/e a tua música nos une/o tempo? /o que é o tempo/se a tua música vai existir/para além da tua vida/e da minha morte». Por fim despede-se de África já conhecida de viagens anteriores em 1958, 1960 e 1963: «Minha África Inútil/ sonho transformado em pesadelo/daqui te escrevo/ao pôr-do-sol/olhando este mar verde/sinfonia de capim em si bemol/daqui te escrevo/com a mágoa de te deixar assim/sozinha pobre sem futuro».

Lido em 2008 «Poemas da guerra» é um testemunho poético feito por alguém que viveu dois anos bem do lado de dentro dum certo tempo português: dos 12 mortos da «sua» guerra nenhum morreu em combate.

(Editora: O MIRANTE, Prefácio: Francisco Pinto Balsemão, Capa: José Nuno Niza)

Um livro por semana 62

«Diário da peste de Londres» de Daniel Defoe

Em 1665 terão morrido de peste mais de cem mil pessoas em Londres. Este livro reproduz o que Henry Foe, tio de Daniel Defoe, terá escrito durante esse tempo terrível. Regista-se o aparecimento de bruxos: «Todo este comércio se generalizou a tal ponto que era proverbial encontrarem-se dependuradas das portas tabuletas e letreiros assim concebidos: «Aqui mora um adivinho», «Aqui habita um astrólogo», «Aqui fazem-se horóscopos» e outras coisas do género.» O autor refere o que passou na sua casa: «Só tinha em casa uma velha governanta, uma criada, dois aprendizes e eu; e quando a peste principiou a crescer em volta de nós, sombrios eram os pensamentos que eu ruminava sobre a atitude que devia tomar e a maneira como agir». O medo dos habitantes de Londres levava-os ao desespero: «Havia mães que no delírio matavam os filhos e pessoas que morriam de dor ou muito simplesmente de medo ou de pânico sem qualquer infecção; e outras a quem o medo imbecilizava ou tornava insensíveis, quando as não lançava no desespero ou na demência ou ainda numa loucura atrabiliária». Um outro aspecto tem a ver com as actividades comerciais: «nenhum navio entrava ou saía do porto como antigamente e os marítimos, sem emprego, haviam caído na mais negra miséria. Com eles contavam-se os carpinteiros navais, calafates, cordoeiros, tanoeiros, veleiros, serralheiros de âncoras, poleeiros, escultores de madeira, armeiros e abastecedores de bordo.»

(Edição: Bonecos Rebeldes, Tradução: João Gaspar Simões, Capa: Fernando Martins, Revisão: António Bárcia)

Vinte Linhas 281

O centenário do Benfica passou quase despercebido

No passado dia 13 de Setembro aconteceu uma coisa só possível em Portugal. O Sport Lisboa e Benfica atingiu os cem anos de vida mas não houve quaisquer celebrações. Nem na TV nem nos jornais ditos desportivos que são três nem na rádio ouvi qualquer referência à efeméride. Só mesmo em Portugal é que é possível um clube festejar o centenário quatro anos antes da data. Sabemos todos, que o Sport Lisboa e Benfica festejou o centenário em Fevereiro de 2004 perante a silenciosa conivência dos jornais desportivos diários. Os mesmos jornais para quem é mais importante o joelho do jogador Mantorras do que a falência da SAD do Farense, o clube mais representativo do Algarve. A verdade em história só existe com documentos e o primeiro documento a referir-se ao Sport Lisboa e Benfica tem data de 13 de Setembro de 1908. Faz agora cem anos. Em 1904 foi fundado o Sport Lisboa cujo emblema tinha uma águia e uma bola; em 1906 foi fundado o Grupo Sport Benfica cujo emblema tinha a bola e a roda da bicicleta. O novo clube, nascido em 13 de Setembro de 1908, juntou no seu emblema a águia e a bola do Sport Lisboa e a roda da bicicleta do Grupo Sport Benfica. Esta monstruosa manipulação da história só não teve eco na página 9 do «Diário de Notícias» do passado dia 13 que, discretamente embora, chama a tenção para o facto ter sido em 1908 que surgiu o nome do Sport Lisboa e Benfica. Antes não havia nem esse nome nem esse emblema nem esses estatutos. Por isso não faz sentido festejar um centenário aos 96 anos. Mas num país com uma imprensa desportiva completamente narcotizada pelo medo das direcções de alguns clubes tudo é possível. Até o centenário do Benfica passar quase despercebido.

Um livro por semana 63

«Pranto por Vila Viçosa» de Rui Caeiro

Vila Viçosa é a personagem deste livro: «Na minha terra, doce, amarga e viçosa, na minha terra, digo, sobre a minha terra foi escrito este livro. A duzentos quilómetros dela.»
Numa viagem ao passado («estou diante do puro passado, realidade primeira, esteio de todos os meus presentes») o autor começa por recordar as classes sociais: «Na minha terra havia os burgueses, os pobres e os pobrezinhos. Não se podiam ver uns aos outros.»
O mundo dos homens nem sempre coincidia com o das mulheres («as mulheres iam à igreja, os homens à taberna») embora fosse sobre as mulheres que recaíam as tarefas de prover à subsistência: «Se havia pão, faziam açorda de poejos; se não havia pão, mera sopa de poejos.» Vila Viçosa é paisagem («o vento, o sol, a chuva, o calor, o frio, eram mais amáveis») mas também povoamento: «Na minha terra há muita gente. Mas eu cá aconselhava-os a todos a, na medida do possível, passarem mais despercebidos.»
Tudo começa numa casa: «Na minha terra há uma casa que não me pertence, eu é que pertenço a ela. Foi vendida a casa dos meus avós e – ó Álvaro de Campos – o que eu sou hoje é também terem vendido aquela casa…»
A memória do autor envolve não apenas o seu mundo («Na minha terra nasceu gente ilustre. Públia Hortênsia de Castro, Florbela Espanca, Henrique Pousão, Bento de Jesus Caraça.») mas o mundo à sua volta: «Havia um homem que chorava, sabe-se lá por quê e havia um garoto que saudava despreocupado o ar fresco da manhã, a praça vazia, a dor de um homem. Ao mesmo tempo que ia passeando a sua meninice e, não tendo mais remédio nem alternativa, olhava e aprendia.»

(Posfácio: Vítor Silva Tavares, Depositária: Livraria Letra Livre)

Um livro por semana 68

«Gramática Histórica» de Liberto Cruz

Trata-se de uma reedição revista e aumentada do livro original de 1971, uma edição semi-clandestina impressa no Funchal e assinada com o pseudónimo de Álvaro Neto. Dois aspectos tornam este livro exemplar: a publicação de «poemas concretos» como «Dolor Dollar», «Grelha Vocálica» ou «Homenagem a Winfredo Bonifácio» e de poemas dentro da nossa antiga linha do «escárnio e mal dizer». Como por exemplo este poema:
«governo permanente / povo doente / coragem ausente / ditadura vigente / castração evidente / nação indolente»
Ou então este: «Um gajo sem cunhas pediu uma Bolsa. / Nicles, claro! / Dizem que ficou com uma grande cachola. / Que artolas!»
Ou ainda este: «Em Portugal haver mocidade portuguesa / é um pleonasmo a evitar»
E ainda este: «A região é pobre. /O país não precisa de partidos. /O nosso povo é frugal.»
Sem esquecer este: «É um grande prazer estar entre esta gente calma, paciente, ordeira, resignada, crente, esta gente bem portuguesa.»
E por fim este poema síntese: «Um verdadeiro português contenta-se com um quarto de pão e uma sardinha assada.»
Vejamos também uma divertida incursão no tempo actual; no poema «S» português:
«Sertório / Sebastião / Saldanha /Sidónio / Salazar / Spínola / Sá-Carneiro / Soares / Sampaio / Santana / Sócrates». Para quem não conhece a edição de 1971 aqui está uma verdadeira descoberta; muito para além do título – está aqui um certo tempo português.

(Editora: Roma Editora, Prefácios: Haroldo de Campos e João Fernandes, Capa: J. Rogeiro)