Todos os artigos de Isabel Moreira

O branqueamento televisivo dos “dias da troica”

Nos últimos dias, através da reportagem da SIC – “os dias da troica” – assistimos a um relato não objetivo dos factos cuja interpretação é feita essencialmente por Paulo Portas e Maria Luís Albuquerque.

A lista de convidados que não aceitaram (como PM, Cavaco, Vítor Gaspar ou Sócrates – que não esteve em funções neste período) tenta justificar a parcialidade chocante da reportagem, quando na verdade só a reforçam. A lista podia ter sido feita pelo Governo.

Como é possível fazer-se uma reportagem que pretende descrever os últimos anos sem ouvir uma única pessoa da oposição?

A reportagem é um gigantesco branqueamento dos últimos 3 anos, porque cada momento ou facto é descodificado pela MF ou Portas, sem qualquer contraditório.

No final da reportagem fica a narrativa do Governo: alegadas avaliações ameaçadas pelo TC; suavização do episódio da TSU; a inevitabilidade de um rumo traçado à conta de uma herança que é caracterizada sem contraditório; o papel que se “descobre” fundamental por parte de Cavaco; a demissão irrevogável de Portas explicada pelo próprio de forma risível para quem tenha cérebro; a suavização de todas as tensões na coligação; para dar alguns exemplos.

Isto não é jornalismo. É serviço, mal mascarado, prestado por uma televisão ao Governo.

É caso para um sobressalto cívico. Estamos em democracia, a qual exige imparcialidade e independência do jornalismo.

Gostava, francamente, de saber que avaliação faz o senhor Ministro Poiares Ministro da reportagem.

Do ataque reles

Foi notícia o que não é notícia, mas argúcia na busca de pretextos para denegrir pessoas, pelo caminho passando um atestado médico à liberdade de expressão. Vou ser rápida. Há anos que venho defendendo que a liberdade de expressão está sujeita a uma silenciosa e insidiosa estratégia de ataque. Não se pode dizer nada que permita a um idiota fazer do nosso verbo um veneno calunioso. É insuportável.

Há dias surgiu a notícia de que “ a universidade política da JSD ficou marcada por brincadeira de Teresa Leal Coelho”. Isto porque a deputada, quando apresentou o seu colega de bancada e amigo, Professor Paulo Mota Pinto, após explicar o seu notável percurso profissional e académico, disse que o Professor só tinha uma “mancha” no seu CV: ter sido juiz do TC. Naturalmente no ambiente em causa, toda a gente se riu, como eu teria rido, de uma piada irónica que não consubstancia qualquer ataque ao TC.

Pelo contrário, precisamente por estarmos a viver um ambiente, que alguns alimentam, de verdadeiro ataque ao TC, a piada de Teresa Leal Coelho, quando se dirige a um colega que admira e que foi juiz daquele tribunal, é uma ironia que realça a dignidade do órgão de soberania que defende o cumprimento da CRP. É o tipo de postura descontraída banal naquele e em qualquer ambiente, mas especialmente naquele.

Calha que não estava ninguém a filmar. É por isso que não há imagens na TV da graça inteligente de Teresa Leal Coelho. Mas de repente lá se liga uma câmara e pede “explicações” à “pensava-que-te-safavas”.

Podem alguns dizer que isto não tem importância. Mas tem. Muita. Todos temos de falar com os limites comuns da liberdade expressão e não com um aparelho eletrónico na cabeça que vá dizendo “ironia” ou “humor” ou “metáfora” em cores berrantes, não porque as pessoas sejam acéfalas, mas porque lhes pode dar jeito fingir que o são para fazer de uma palavra livre, normal e inteligente, uma inversão para o “caso do dia”.

Merecemos mais.

 

1º de maio – continuar e repetir os gritos passados

Num debate com um deputado do PSD, na introdução ao que eu queria dizer acerca do arraso que este Governo tem feito ao espírito, à história e à lei do mundo do trabalho, recordei o dia 1 de maio.

Fui imediatamente interrompida, porque não estamos, ouvi, no século XIX. O mundo mudou, a competitividade é outra, a globalização obriga a não sermos fósseis.

Pois. No dia 1 de maio de 1886, houve a famosa manifestação em Chicago, na qual mulheres e homens corajosos exigiam coisas fósseis e nada discutidas atualmente como o direito a uma jornada de trabalho digna: 8 horas. Como é sabido, as manifestações sucederam-se com mortos e feridos que exigiam isto: uma jornada de trabalho.

A exigência correu mundo e o dia foi consagrado em vários países como feriado nacional, entre nós proibido durante o fascismo e celebrado com o seu derrube, momento que para o líder parlamentar do PSD tem a importância histórica da saída (limpa ou suja) da troica.

Falar do mundo do trabalho passa por conhecer a sua história e nela o sentido que a palavra trabalhador carrega.

Ser trabalhador é passar de servo a pessoa. Uma pessoa com dignidade, uma pessoa que não se limita a executar sem regras o que for, mas que tem direitos e não benesses, que tem espaço para uma vida pessoal, que tem salário digno, que não se descarta, que não é produto de uma exploração de classe, mas participante de pleno direito da construção social, contribuindo para ela com o seu próprio destino, os seus projetos pessoais, o seu descanso.

Ser trabalhador resulta de uma revolta ética contra o esmagamento de tantos num mundo em industrialização com peças humanas na engrenagem. Adultos e crianças no campo e na cidade, nas fábricas, a metáfora de Oliver Twist, o menino que, acabada a parca sopa, não sabia do espanto da frase que proferiu: – quero mais.

Ser trabalhador resulta da constatação de que não há paz nem crescimento sem justiça social. Sim, crescimento.

Ser trabalhador significa a negação da degradação, da injustiça, do domínio.

Uma sociedade só é digna se todos têm o direito ao trabalho; se o Estado executa políticas de pleno emprego; se o Estado promover a igualdade de oportunidades na escolha da profissão ou género de trabalho e condições para que não seja vedado ou limitado, em função do sexo, o acesso a quaisquer cargos, trabalho ou categorias profissionais; se o Estado promove a formação cultural e técnica e a valorização profissional dos trabalhadores; se os trabalhadores tiverem o direito à retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna; se se respeitar, e estou sempre a citar a Constituição, o estabelecimento e a atualização do salário mínimo nacional; se forem respeitadas as garantias especiais de que gozem os salários, nos termos da lei; se existir segurança no emprego; se não se despedir sem justa causa, assim porque sim; entre tantas coisas elementares numa sociedade avançada.

No século XIX começou um grito, seguiram-se ecos, nasceram sindicatos, lutas, começou por uma jornada de trabalho. É pouco?

É muito. Na exigência de se trabalhar 8 horas por dia está a afirmação que permite todas as outras: ser trabalhador tem o sentido do reconhecimento da dignidade de cada homem e mulher que é igual em direitos e deveres a qualquer pessoa, que estando em posição de subordinação tem de ter garantias de que o grito primeiro não é abafado e que não volta à condição de servo.

Foi no Século XIX. O número de desempregados no Portugal que voltou a celebrar o 1º de Maio após 40 anos, o número de desempregados sem qualquer apoio social, o número de desempregados emigrados, o número de falsos trabalhadores retidos em falsos recibos verdes, retidos em contratos a termo de renovações a cada passo aumentadas, o número de falsos trabalhadores em estágios não remunerados, escravos, portanto, o número de mulheres em situação real de duplo-emprego, o jogo de bola com o salário mínimo, trabalhar-se e ser-se pobre, esta competitividade selvagem negada pela história, pela experiência, pelo direito comparado, pela economia, diz-nos o quê?

Talvez que seja tempo de repetir de outra forma a frase de um miúdo inventado no livro que denuncia a precariedade inglesa daqueles tempos: – queremos o que nos tiraram. Exigimos o que nos tiraram.

Porque é nosso.

 

 

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Violência escolar – eis o CDS

É contra. Não gosta. Até fala de bullying. Refere-se a todos os bullyings. Pronto, esquece o bullying homofóbico, é duro de mais para o CDS escrever “homofóbico” numa exposição de motivos. Apesar da campanha da CIG contra o bullying homofóbico. Paciência.

Mas é contra a violência no meio escolar.

Nós também.

Equipas multidisciplinares? Não.

Ouvir o que as escolas dizem sobre a necessidade de psicólogos? Não.

Reintroduzir a disciplina de educação cívica? Não.

O CDS continua na sua via securitária. Os comportamentos em causa já são puníveis, em regra até 3 anos. O que fazer para impedir a violência?

Prevenir? Não.

Melhorar as condições das escolas? Não.

A resposta é simples: aumentar penas. Para quanto? Não sabem, o Governo que faça um estudo e que as aumente, apesar de estarem a recomendar ao Governo fazer o que é competência constitucional da AR.

Da incompetência e da demagogia desta direita punitiva e securitária.

 

Qual é a surpresa?

Enquanto escuto o PM não responder a qualquer questão no debate deste mesmo dia, enquanto vejo um PM sorrir perante temas como as pensões, as reformas ou os salários – considerou que o PS anda obcecado com estas coisas e riu-se, ele ri muito – não me surpreendo com nada.

Não me surpreendo como não se surpreenderá qualquer cidadão ou cidadã que reconhece a mentira, o truque, a desinformação propositada, a desarticulação governamental benéfica, enfim, o horror com cara de Passos e espírito de Gaspar.

A direita que conhecíamos acabou. Não há nem direita social nem direita liberal.

Isto é outra coisa: é uma direita extremista, apaixonada por escolas perigosas que dizem, via consultores iluminados, aos ouvidos de Passos e ao elástico Portas, que o memorando é um pretexto para, a partir dele, se aventurarem.

Como numa ditadura, pode falhar-se e falhar-se e continuar a cortar, porque cortar é sempre a política, cortar é a verdadeira meta, por isso não se falha. Não se falha no empobrecimento pouco civilizado, esse do fosso humilhante entre pobres e milionários, não se falha no desmantelamento do Estado Social, essa conquista suada agora passada a gordurosa, não se falha, desde o dia 1, no ataque aos rostos humanos do Estado Social a partir da loucura de 600 e poucos euros de salários brutos, não se falha no ataque ao produto de uma conquista da democracia, as pensões e as reformas, desde o dia 1, não se falha no corte de direitos laborais, essa mancha marxista, não se falha no corte de prestações sociais, ele é desempregados, ele é deficientes, ele é idosos imobilizados, vai tudo, não se falha.

E não falha a retórica que dá cobertura aos cortes que não falham, a retórica mentirosa, desmentida pelo direito, pela economia, pela história, pela verdade, mas não falha a retórica: “a função pública é híper-protegida”; “o sistema de pensões é insustentável”; “neste momento é bom para a economia manter ou baixar o salário mínimo”; “flexibilizar as leis laborais aumenta a competitividade”; “deve haver liberdade de escolha no ensino”; e por aí fora.

Entretanto o PM vai falando e pede para não se insistir nas perguntas acerca das medidas serem provisórias ou definitivas, porque são “provisórias”.

Diria que a idade média também foi provisória, mas ainda durou uns séculos.

Entretanto, o FMI, ou o espírito de Gaspar, já nos esclareceu.

 

 

Perguntas estafadas a um PM estafado

Que pensa o PM sobre o crescimento sustentável do país?

O que pensa o PM sobre a evolução da dívida pública?

Qual a tal da saída que o PM defende?

Em 2016 teremos desoneração de pensões e salários, é? Que acaso ser depois das eleições, certo?

O que se vai passar em relação à tabela salarial única?

Os funcionários públicos não merecem informação de confiança?

A tabela nova não é para todos, pelo que percebemos. Haverá mais despedimentos?

Como serão exatamente feitos os cortes definitivos nas pensões?

O que quer dizer não teremos mais cortes e dizer ao mesmo tempo que haverá outra via?

Os 1400 milhões de cortes – parece que 1000 milhões têm a ver com os consumos intermédios (MF), tudo num ano, ao contrário da “loucura “ dos últimos 3 anos – são o quê?

O PM pensa que os portugueses não sabem que muito está por anunciar?

Tenho uma vaga ideia de estar a viver em Abril. Maio é o mês que vem aí. Para quando discutir o plano pós-troica?

Quantas pessoas conhece o PM que tenham saído do RSI por terem contas bancárias de mais de 100 mil euros? Ou alinha na ofensa mentirosa do seu vice?

O salário mínimo é um desígnio nacional num país onde se trabalha continuando-se pobre ou é uma conversa partidária?

Se o é, por quem nos toma?

Em que planeta pode Passos afirmar que os cortes brutais nos serviços públicos não tiveram efeitos na respetiva eficácia?

 

Salário mínimo: finalmente. Europeias a quanto o obrigas

Desde que esta legislatura começou assisti a um consenso na concertação social entre trabalhadores e patrões: o aumento do salário mínimo.

Mas Passos Coelho afirmava que a medida mais sensata era “exatamente a oposta e que “não era do interesse de ninguém”.

Aumentar o salário mínimo por lei era, cito de memória, um “presente envenenado”.

Em 2011 o salário mínimo foi travado. Não há dúvida. Estamos em 485 euros.

Só que entretanto há 21% de trabalhadores a ganharem a selvajaria que representa o valor 485 euros.

A austeridade idiota deste governo que acredita também na competitividade gerada por baixos salários obriga, há muito, a que se suba o poder de compra dos trabalhadores, porque mesmo que a já desmontada tese de menos salário é igual a mais competitividade fosse verdadeira, é injusto permitir-se que se viva a sobreviver.

Há momentos de decisão política difícil, gosto de pensar que ninguém sorri a impedir um pouco mais de dignidade às pessoas, mas dá-se a infeliz certeza de que estamos perante um governo que resiste à justiça por ideologia aconselhada de pensamento único.

Passos acordou agora para o aumento do salário mínimo.

Sim, mesmo por lei, é evidente que aplicado ao setor público serve de padrão ao setor privado. Passos, como o comum dos mortais, sabia disto quando vociferava contra o que agora defende.

Aprendeu alguma coisa com o desastre da sua escola?

Não.

É tempo de eleições.

 

 

Será caro aconselhar despedir barato?

 

O Acórdão do TC nº 602/2013 explicou o que os mais liberais intérpretes da CRP sabem: a legislação laboral não é uma pedra; há uma larga margem de liberdade do legislador na concretização dos preceitos constitucionais em matéria laboral; há, claro, limites que o legislador não pode ultrapassar. Atualmente a nossa legislação laboral é bem menos protetora do que, por exemplo, a alemã.

Podemos não concordar – é o meu caso – com a flexibilização laboral de 2012, mas o juízo acerca da estupidez e da injustiça de uma norma é um juízo diferente do que conclui pela sua inconstitucionalidade.

Sem grande surpresa, o TC declarou inconstitucionais as normas relativas ao despedimento por extinção do posto de trabalho e ao despedimento por inadaptação. E fez bem. A segurança no emprego, a justa causa e a proibição do arbítrio ainda valem alguma coisa. Basicamente, tal como as normas estavam configuradas, o empregador podia despedir um trabalhador porque sim.

Agora, o mesmo Governo que anunciou o milagre da criação líquida de 120 000 empregos no ano de 2013 (sabendo que se trata de 30 mil empregos criados no sector “Administração Pública, Defesa e Segurança Social Obrigatória”, de estágios, de beneficiários do RSI que prestam trabalho forçado na administração pública sem remuneração) avança com o seu lema de sempre: a flexibilização laboral é boa para o fomento da economia, via aumento da produtividade e da competitividade.

O estranho nexo de causalidade já foi desfeito pela OIT e pela realidade, essa onde desempregados de todas as idades, profissões e graus de formação não encontraram na ultrapassadíssima legislação laboral anterior amparo algum que evitasse a sua situação, isso de se estar ou de se ser desempregado.

O Governo, contra todos – repito, contra todos – aprova uma proposta de lei que procede a alterações ao Código do Trabalho, no que diz respeito à cessação do contrato por extinção do posto de trabalho ou por inadaptação.

No caso da extinção do posto de trabalho passam a existir cinco critérios objetivos e hierárquicos: avaliação do desempenho; menores habilitações académicas; onerosidade da manutenção do vínculo; menos experiência profissional; e menor antiguidade na empresa.

Penso que não vale a pena adjetivar o horror: este despedir discricionário e barato, este despedir de olho na reforma encurtada, este despedir de olho na negação da progressão na carreira, este despedir ofensivo e inútil, este despedir alienado da aplicação real do direito do trabalho, é o rosto oculto de um Governo sem pensamento. O Governo fez o que alguém, posto nas nuvens, disse para fazer. Tudo em modo de uma qualquer tese académica, ideológica, a aplicar a gente de carne e osso.

Com esta legislação, a ser aprovada em votação final global brevemente, deve ser mais barato despedir do que aconselhar como fazer despedir.

No Público de hoje.

Briefing (s)

 

Começaram mal. A ideia, desde logo. Um secretário de estado a dar notícias, “as notícias” que deviam ser dadas. Nada a perguntar. Esclarecer não faria muito sentido, porque estava o governo a dizer as notícias. Pareciam as aberturas de telejornais. Mas com um membro do Governo a falar das notícias que deviam ser dadas. Uma espécie de departamento de notícias e propaganda.

Às vezes apetecia chamar Vargas ao mensageiro da sua própria mensagem. E a mensagem era diária. Senhoras e senhores: o briefing diário. Ou a rádio nacional diária.

Azar, essa coisa do objeto da notícia querer controlar a notícia, dá sempre em rádios clandestinas, como aconteceu: jornalistas a colocarem perguntas, sarilhos no Governo, e o briefing a demitir em direto membros do departamento assistente do departamento de notícias e propaganda.

Que fazer? Anunciar que não haveria relato diário do que deveria ser notícia. Mas nos intervalos as rádios clandestinas continuaram a ter notícias – mas como?

Pois é. Fim da inovação não inovadora.

Fim? Mais ao menos. O espírito da coisa continuou vivo. Todos os dias. Controlar a informação a que os portugueses têm direito. Confundir as pessoas com palavras aparentemente inócuas a dizerem no seu eco “cortes”, “despedimento”, “definitividade”.

Palavras incertas para esconder o que é certo: um programa ideológico de empobrecimento, animado por economistas de pensamento único, dizer muitas vezes essa coisa possível só à iluminação de deus: “não há alternativa” e por isso “consenso” e por isso, diria, escravatura.

Discutir muito que não se discute a “saída limpa”, ou suja, não se discute, não se assinam documentos, ouviram?

Quem assina um documento defendendo uma alternativa de visão ponderada do país é “essa gente”, tem uma “agenda”, não é “patriótico”, bando de irresponsáveis que assustam os mercados (ups, mas os mercados não sabem já o que consta do manifesto? E as taxas de juro não continuaram bem?). Então? O que se passa, patrióticos?

Assim de memória recordo-me de muita agitação nos mercados quando Portas se demitiu a prazo incerto (que bom seria vê-lo aplicar essa lógica, a contrario, ao direito do trabalho, agora que penso).

O briefing sem nome muda de estratégia: assustar. Não digam, não discutam, o momento é errado, “lá fora” escutam “reestruturação” e tomam-nos por bárbaros incumpridores, até (até?) Barroso vem censurar a palavra inconsciente.

O briefing dá-se com um secretário de estado ainda em funções, o que valida a certeza: a concretização da ideologia do empobrecimento de pensamento único é definitiva. Confusão, culpabilização da imprensa, depois um “não devia ter acontecido”, pois é, não devia em nome de quê?

Da verdade ou da mentira?

Os números da pobreza em Portugal são discutidos e Portas faz um briefing olhando os deputados e deputadas: todas as pessoas que “saíram” do RSI têm mais de 100 mil euros na conta.

Acontece alguma coisa?

Não. Por mim, peço desculpa por não ter abandonado o plenário.

 

 

O que dizer da histeria em volta do manifesto?

Isto, por Pacheco Pereira.

Qualquer pessoa atenta sabe que nada há de surpreendente no lodo salpicante de ataques iletrados, pessoais e imediatistas por parte do poder e por parte de quem deu razão ao poder (esses jornalistas económicos que não se afligem com a prescrição de coimas de banqueiros sempre tão bem protegidos). Esses ataques assentam no terror de ter sido evidenciado  num documento que o poder e os seus nutrientes jornalísticos não tinham razão, que a sua receita não resulta. Assim se grita, girando sobre um berlinde de adjetivos, uma palavra incómoda: confissão.

 

Monstruosamente simples

 

O chumbo da decência, por 4 votos, não se deveu a dúvidas, a falta de estudos científicos, a falta de paradigma já estabelecido pelo TEDH quanto à co-adoção, a desprezo pelo Instituto de Apoio à Criança, pela Ordem dos Psicólogos, pelo comunicado claro da UNICEF, pelo consenso das maiores autoridades mundiais na matéria, não se deveu a não se saber que as famílias homoparentais já existem e que continuarão a existir com um dos progenitores por reconhecer em prejuízo grave dos direitos das crianças.

O chumbo da decência foi uma imposição política, partidária, apostada na coação de deputadas e deputados, porque deus livre ao PSD uma vitória associada a um projeto de lei do PS. Deus livre aprovar o que passos defendia, acrescentando a adoção, em 2010.

Por isso mesmo, depois de aprovado na generalidade, a laranja mecânica tratou de jogar à bola política pisando crianças concretas.

Por isso mesmo, em Julho, o PSD adiou a votação final global após quase 2 meses de trabalho parlamentar na especialidade com 17 entidades ouvidas, documentação recolhida, trabalho esmagadoramente favorável à urgência de uma aprovação.

Por isso mesmo, depois do Verão, o PSD, incluindo o “idiota útil” de serviço, concordaram com a votação final a 25 de Novembro.

Por isso mesmo, afinal, e dois dias depois, o deputado mais ridicularizado na opinião pública, deu a cara em nome da laranja mecânica por uma proposta de referendo 2 em 1 na qual fingia, com a substância de uma uva seca, acreditar. Até pensava – imagine-se – por “lapso”, que o referendo inconstitucional podia ter lugar no dia das europeias.

Mais e mais tempo para coagir deputados, para ficar claro: que se lixem as crianças, mas “aquilo” é para chumbar!

Com “imensa surpresa”, quase um mês depois, o TC disse o evidente.

O rapaz pisado até aos ossos por gente de Bagão Félix a Ângelo Correia anunciou uma coisa difícil de imaginar possível: “iria pensar”.

Na quarta-feira da semana passada ficou decidido por consenso que a suspensão do projeto-lei acabara, pelo que se seguiria o devido: enviar o diploma para votação (naturalmente na sexta-feira passada).

Cai o carmo e a trindade quando se apercebem que alguns deputados do PSD estariam numa reunião no PPE.

Vai daí interpreta-se que ficara consensualizado decidir.. decidir na quarta seguinte. Era necessário “formalizar” a coisa. E assim foi: cada um disse em voz alta o que decorre do regimento e o diploma foi enviado para votação no dia 14.

A laranja mecânica tratou de proibir qualquer deputado de ter trabalho político fora e a estar fora que tratasse de voltar. Depois seguiu-se uma reunião na qual se imagina que não houve – claro que não houve! – pressão alguma sobre deputados cheios de liberdade de voto e de …consequências.

Chegamos à votação final e estão de parabéns, um a um, uma a uma, os deputados que se mantiveram firmes, no PSD, a favor do diploma.

O que justifica que alguns favoráveis tenham passado a abstenção e abstenções tenham passado a contra?

O “idiota útil” acha que convence uma galinha dizendo que foi a sociedade que evoluiu. Acontece que talvez mesmo as galinhas tenham dado conta do processo que descrevi.

Os deputados e deputadas que engoliram a convicção – porque a substância da matéria não se alterou, pelo contrário, somaram-se elementos sustentando uma aprovação – em nome da sua vida futura não carecem de adjetivos. Não merecem a norma constitucional que define o seu mandato como autónomo. São responsáveis pelo adiamento da vida de gente de carne e osso, de crianças ainda no limbo.

O discurso do CDS merece um ensaio de ciência política sobre como expressar a essência do totalitarismo em 2 minutos. Foi chocante.

Como foi imoral ver as alterações de voto no CDS, de gente sempre tão sofrida por dizer que acredita, que acredita, que vota contra o seu eleitorado e hoje, de repente, muda da abstenção para voto contra. Bem esteve Miguel Vale e Almeida a apontar a derrocada moral do CDS.

De resto, no trabalho na especialidade, foi histórico ouvir 17 vezes “o CDS não tem nada contra a homoparentalidade”, mas..e viajava para uma técnica jurídica ao serviço da agenda do momento.

Este ponto é grave, porque o CDS, quando argumenta juridicamente nestas matérias, é ultra-positivista, parte da regra para os princípios e não o inverso, não adequa o direito à realidade mutável, mas insiste no decisionismo legal de Carl Schmidt, jurista manchado pela sua proximidade ao direito Nazi.

Em bom rigor, o CDS está-se nas tintas. Os direitos que não sejam direitos da sua moral nunca serão, naturalmente e naturalmente, uma “prioridade”. Basta recordar Nuno Melo, ontem, na televisão, a falar sobre um diploma imaginário, numa co-adoção “imediata e por decreto”, e a ridicularizar as famílias homoparentais com a substância tentativamente subtil da homofobia marialva.

E agora?

Um ano depois de fazerem famílias concretas assistirem a um circo, decidem isto: as crianças em Portugal não são todas iguais; entre todos os países do Conselho da Europa preferimos o exemplo da Rússia, da Ucrânia e da Roménia ao de todos, todos os outros; as crianças filhas de casais homossexuais só podem ter uma menção no registo, devem estar desprotegidas em todas as decisões que se colocam a um casal todos os dias; se o progenitor reconhecido ficar doente, azar; se o progenitor reconhecido estiver ausente e for necessário tomar uma decisão urgente, azar; se o progenitor reconhecido morrer, pois que o outro pai ou mãe se submeta à humilhação de abrir um processo e que reze muito, muito, para ter a sorte de um juiz lhe atribuir a “guarda” do seu próprio filho.

O caminho é inevitável. Estas famílias foram adiadas e cada dia é uma chaga.

Mas vencerão. E cá estamos.

 

 

Amanhã – que seja o dia da decência

Amanhã é votado o pl que permite a co-adoção em casais do mesmo sexo. Devia ter sido antes do verão, mas todos conhecem a história.

Amanhã a AR pode decidir que todas as crianças são iguais; amanhã a AR pode decidir que a parentalidade deve ser reconhecida a quem, ao lado do progenitor biológico ou adotante singular, educa, de facto, para a autonomia; amanhã a AR pode decidir que não faz sentido não perseguir famílias homoparentais e ao mesmo tempo não as reconhecer; amanhã a AR pode decidir que chega de vetar pais, mães e crianças ao estatuto de limbo; amanhã a AR pode decidir que todas as mães e todos os pais, biológicos, adotantes ou de facto devem ter os deveres que são os correspondentes direitos das crianças; amanhã a AR pode decidir parar de jogar à bola política à custa de crianças de carne e osso; amanhã a AR pode decidir que não tem o monopólio de uma patente de família onde gay ou lésbica não entra; amanhã a AR pode decidir evitar uma condenação vergonhosa por parte do TEDH que já estabeleceu o paradigma nesta matéria; amanhã a AR pode decidir deixar de pertencer ao grupo miserável de 3 países do conselho da europa que insistem em negar a co-adoção em casais do mesmo sexo; amanhã a AR pode decidir fazer valer o superior interesse da criança sobre o preconceito, como tão bem sustentam o Instituto de Apoio à Criança e a UNICEF; amanhã a AR pode decidir que o preconceito não pode esmagar crianças; amanhã a AR pode decidir que todas, todas as crianças devem ser protegidas durante a sua vida e no momento da morte de um pai ou de uma mãe não biológico ou adotante, mas mãe ou pai de facto; amanhã a AR pode decidir adequar o direito à realidade, aos direitos fundamentais e à ciência, rejeitando leituras, de péssima memória, ultra-positivistas da ordem jurídica; amanhã a AR pode decidir uma mudança pela decência.

Assim será se o pl for aprovado, assim será na intenção de cada voto a favor. Nesse caso, a AR estará a decidir e a dizer a igualdade de direitos das famílias e das suas crianças.

Cabe a quem votar contra o ónus de provar que não está a decidir e a dizer precisamente o contrário.