De quando em vez, lemos mais qualquer coisa sobre o Mal; assim como se se tratasse de uma quantidade — melhor, de uma personalidade — viva e independente do nosso arbítrio. Era bom, não era? Podermos repartir culpas com uma entidade simbiótica que tem por destino desviar-nos dos bons e justos caminhos. Também poderíamos fazer como os Cátaros e outros dualistas, que acreditavam na maldade intrínseca de todo universo material e na inevitável contaminação que as nossas almas sofrem mal cá entram. O resultado é a mesma litania: nós somos bons, nós somos puros, nós estamos isentos de mácula. O Mal é-nos exterior. Claro: se fomos feitos à imagem de Deus, nem poderia ser de outra forma.
Como já deu para reparar, o genocídio do Ruanda é o espelho nigérrimo a que acabo sempre por voltar, quando tento não me esquecer da verdadeira face do bicho homem. E, inevitavelmente, o Holocausto continua a esmagar as nossas memórias como o mais gigantesco monumento ao Mal que conseguimos construir (e olhem que nos temos esforçado muito).
É fácil encontrar semelhanças entre estes dois buracos negros da nossa história recente. A Alemanha nazi e os milicianos Hutus seguiram a mesma estratégia base: começar por retirar a humanidade aos inimigos, classificando-os como “untermensch” e “baratas”, respectivamente. Depois, atirar para cima destas criaturas desprezíveis e sem direito à vida todas as culpas, todas as vilezas. Por fim, escolher os mais desalmados para tomar conta das primeiras matanças; estes exemplos frutificam sempre e não tardará até que os matadores sejam legião.
Arquivo da Categoria: Luis Rainha
Um Natal Acidental

Dado que me dirigi ao festim natalício do “Acidental” já depois de um ágape bem regado, guardo memória algo lacunar do mesmo. Estou assim a ver umas imagens tremidas de inúmeros jovens em alegre e são contubérnio, lembro-me de trocar saudações com gente bem simpática e de sofrer a forte decepção de não ter conhecido a Ana Albergaria.
Hoje, o PPM teve a caridade de escrever que eu fui “o melhor convidado”. Segue-se a explicação deste destaque: eu terei sido “o único que trouxe presente”.
Já desconfiava: os neocons apossaram-se do “Acidental”. Verdadeiros conservadores nunca perderiam de vista as tradições do Natal; todos chegariam carregadinhos de ouro, incenso e mirra. No mínimo.
A campanha de Soares, quase em directo
Anjos de mãos sujas
Há uns dias, vi uns segundos de imagens de uma guerra hoje já extinta e quase esquecida: um jovem árabe sorridente dialogava com homens armados, enquanto empurrava dois desgraçados de olhos baixos e mãos amarradas. De acordo com a voz-off o jovem estava a solicitar aos outros que o deixassem matar os prisioneiros. Por fim, fizeram-lhe a vontade. Ele abriu um grande sorriso e dirigiu os condenados para a mata. Claro que nunca mais ninguém os viu.
Estas imagens perseguem-me. Menos pela brutalidade implícita da situação, nem pelo olhar resignado dos condenados, mais pelo sorriso daquele miúdo em busca de sangue. Era um combatente da Jihad. Não da Grande Jihad, al-jihad al-akbar, a luta pela iluminação que os crentes devem travar, mas sim de mais uma rasteira guerra supostamente santa, naquele caso na Bósnia.
Beatitude. Eis o que li naquele sorriso. Ele estava em paz; não era um monstro agitado por paixões subterrâneas nem um ogre incompreeensível, movido por uma qualquer sede de Mal. Ele não conhecia aquele país, e talvez nem soubesse ao certo quem eram os prisioneiros. Mas tudo lhe devia ser indiferente. Limitava-se a deixar-se ir numa corrente de destino que já o tinha trazido de tão longe, mero instrumento passivo da vontade do seu Deus. E isso dava-lhe a felicidade suprema dos bem-aventurados. Desde que pudesse matar.
A Morte não tem de ser a criatura feia e nauseabunda que aprendemos a recear. Ela também tem rostos bonitos, olhos sinceros, sorrisos juvenis de alegria impoluta.
Outros anjos letais aterraram neste mundo em África, no Ruanda. Sob a forma de bons cristãos. A rádio não deixava de os empurrar para o massacre com santos cânticos e a promessa reconfortante de que a mão de Deus iria empunhar as machetes em uníssono com os seus músculos. E berrava-lhes coisas como “não os matem com uma bala; cortem-nos às fatias”, “não esqueçam os bebés”, “Deus está connosco!”
Outra guerra santa, portanto. Para os milhares que saíam de casa todas as manhãs para retalhar a golpes de catana os seus vizinhos e os colegas dos seus filhos, aquela tarefa de matadouro só permitia descanso ao domingo; esse dia era dedicado a Deus. Também imagino muitos dos milicianos Interahamwe a sorrir o sorriso que agora não se descola das minhas retinas. O sorriso de quem se sabe mais perto de Deus. E mais longe dos homens.
É por estas e por outras que a religião sempre me pareceu coisa desumana.
Belas artes para feios tempos (4)
Alegre, o candidato da triste figura
Devo confessar que nunca fui grande apreciador de Manuel Alegre. Nem da sua poesia, nem do seu estilo pessoal, grandiloquente e rebarbativo. Tal embirração já é bem anterior à sua candidatura à presidência. Mas ainda mantinha um nico de admiração por Manuel Alegre o deputado, o tribuno, o político.
Agora, depois de já o ter visto em pré-campanha e, sobretudo, em debates, a desilusão é total. O que há mais de um ano escrevi a propósito do seu livro “Arte de Marear” parece-me agora uma descrição certeira de toda a sua postura. É só transpor a coisa da literatura para a política:
“Mas, bem acima de todas estas questões, ergue-se uma figura titânica, prometeica, insuperável: o próprio Manuel Alegre. E a cada esquina se torna mais óbvio o imenso interesse que o Bardo dedica ao seu assunto preferido: ele mesmo. Ele resiste; ele é insubmisso; ele é uma personagem de magna importância no curso da História; ele aceita honrarias com um encolher de ombros resignado à grandeza; ele cita pelo menos três Grandes Vultos por página; ele acha a sua poesia “camoniana”; ele compõe parágrafos recheados de lugares-comuns a propósito de qualquer assunto ou personalidade. E, acima do mais, ele é, visceralmente, de Esquerda; quase se pode dizer que ele é a Esquerda! Para que disso não permaneçam dúvidas, trata de proclamar tal paixão com as cornetas do costume: truísmos, verborreia pomposa, mais banalidades.”
Tal e qual.
Banalidade e centros comerciais
Um dos soarettes do Super Mário ainda não digeriu bem a estopada inconsequente que foi o debate de hoje. A única coisa que consegue encontrar de positivo no desempenho de Soares é que ele acertou quando disse que ali se discutiram “demasiadas banalidades”. Por confirmar, mais uma vez, fica a sebastianista visão do outro dia: “enquanto Mário Soares não chegar a estes debates (e, concedo, talvez Louçã), eles serão tão convencionais como o menu de um restaurante num centro comercial”. Duplo azar para ele, que se enganou e nem conhece as delícias do Meson Andaluz.
PS: Como entendo o desgosto que este triste choque com a realidade lhe está a causar, até acho graça à despromoção implícita na história da “Princesa”.
No intervalo do debate, com as câmaras desligadas
Estes intelectuais estragam tudo
Agora, infiltrou-se um no programa “Bancada Central” da TSF. Um tal “Professor Antunes”, que mais parece invenção do Gato Fedorento. O homem é demais. Hoje, a propósito da Mulher, deixou mesmo que a sua inspiração bolorenta e sempre eruditíssima levantasse voo. Apenas alguns exemplos, citados de memória: “A mulher deve cultivar o seu poder e o seu poder é o Amor. O Amor, esse grande dissolvente das arestas da Vida, esse curador das injustiças da História”; “A mulher deve aceitar e apreciar o seu corpo. Deve ser feminina; feminista é escusado”. E há tantos desportos onde a mulher pode exibir a sua “graciosidade”: “a ginástica rítmica, a natação sincronizada”… Ainda por cima, este relambório de lugares-comuns pomposos e sexistas é servido numa sonolenta cadência de padre provinciano; pobres os alunos universitários a quem calhe semelhante professor.
Claro que o povo ouvinte aplaude a “qualidade” que tomou de assalto o programa. Mesmo antes de mais uma vez classificar a possível greve dos jogadores do Vitória de Setúbal como “escusada”, “folclore”, ou mesmo “favor ao Benfica”. Mas antes uma hora destes desvarios clubísticos que um minuto de Professor Antunes.
Deuses de mãos limpas?

Quem tem o Islão por fé cruel e guerreira faria bem em ponderar no papel que as várias Igrejas tiveram no genocídio do Ruanda. Mais de 40 padres católicos, segundo a African Rights, participaram activamente nos massacres, transformando muitos templos em casas da morte. Pastores anglicanos e adventistas deixaram-se igualmente contaminar pela febre de sangue que assolou aqueles 100 dias terríveis.
Já adivinharam quem foram os únicos que então se recusaram a fazer distinções entre Tutsis e Hutus, opondo-se às matanças e acolhendo os perseguidos? Pois é: os muçulmanos.
A campanha de Soares, quase em directo
Estamos fora-de-jogo!
Sei que parece incrível, mas julgo que nenhum de nós leu o “Bilhete de Identidade” de Maria Filomena Mónica. Assim sendo, ficamos excluídos da discussão que por aí anda acerca desta autobiografia. Assim, sendo, e por muito que me custe, não podemos dar razão ao João Pedro George (nem, improvável hipótese, ao Martim Silva).
Está mal. Não pode ser. Vamos lá a escolher, pelo consagrado método da palhinha mais curta, um “voluntário” para emborcar a coisa. Para compensar tal esforço, este mártir da Cultura será também o nosso enviado especial ao próximo Mundial de Futebol.
Obrigado, gracias
Nem preciso de consultar os restantes para saber que estamos todos gratos às menções que por aí vão fazendo ao nosso pequeno recanto farmacêutico. Mas há uma que me deixa mesmo surpreendido: José Luis Orihuela, no seu eCuaderno, recomenda-nos na categoria de blogues grupales. Não fazia ideia de isto era uma cena “grupal”. Nem que poderíamos merecer o interesse de um simpático professor de Navarra. Mas olhem que o agrado é recíproco: o eCuaderno merece mesmo uma visita demorada.
O Império verde-alface expande-se

1bsk, o conhecido gigante da blogosfera, acaba de abrir a sua primeira sucursal, equipada com uma moderna e confortável sala de Cinema. Apaixonados da contre-plongée, esmiuçadores da découpage, corram já para os braços da mulher do aviador!
Ai fazem-se, fazem-se

Mário Soares, hoje mesmo: “Não se fazem políticos em barro como nas Caldas”.
Note-se que o lindo boneco acima faz parte do acervo da útil Fundação Mário Soares. E veio mesmo das Caldas.
Nuno: toma lá mais um para a galeria de horrores
A clareza de sempre, também na política internacional
Utilizador? Pagador?

Depois do regresso em força das hostes a reclamar pela aplicação do famoso princípio do “utilizador/pagador”, sempre a propósito das SCUTs, lembrei-me de uma modesta proposta: porque não inventamos o princípio do Pagador/Utilizador?
Aplicada ao ramo das vias de comunicação, a coisa funcionaria assim: cada euro apurado com o Imposto sobre Combustíveis, com o IVVA e demais alcavalas que já atacam os automobilistas seria usado exclusivamente no financiamento de estruturas e serviços que lhes facilitassem a vida. Ao diabo com as escolas, com o fundo florestal, com os doentes e outros deserdados da vida moderna. A partir de agora seria assim: pagou, desfrutou. E mais nada.
Disparatado, não é? Mas não mais do que este súbito fervor justiceiro contra o tal “utilizador”; a seguirmos por aí, no limite, cada um poderá vir a exigir que os seus impostos sirvam unicamente para melhorar a sua vidinha.
PS: Já uma vez solicitei que me isentassem de pagar impostos destinados a financiar as incontáveis obras públicas da Madeira, sempre levadas a cabo por amigalhaços do Alberto João. Até à data, ainda não deram provimento à minha justa pretensão.
Ápice
Imaginem que, sem aviso, vos acontece algo que acende um candeeiro inesperado sobre um canto escuro da existência. Só por um segundo. Vocês piscam, assombrados pela luz e pela breve visão. E lembram-se de já terem imaginado, talvez enquanto crianças, que o mundo poderia incluir aqueles quartos secretos, resistentes às plantas mais precisas e fiáveis.
Horas depois, esse pequeno mas inegável episódio ainda anda a berrar, lá do fundo da memória, que talvez, afinal, haja mesmo mais coisas entre o céu e a terra. Mas de que adianta ficar a matutar, se amanhã, ou depois de amanhã, a anomalia já vai estar armazenada na arrecadação da tralha inexplicável e por isso inútil, na gaveta das aberrações que por certo a estatística esclareceria?
E para quê escrever sobre o indizível, se vos falta o golpe de asa para as palavras certas?
Garantem-me que não, mas às vezes ter Fé deve dar imenso jeito. E paz de espírito.
Pequenos Sísifos

Quando miro, ao fim da noite, todo o labor diurno dos Riapas, sinto-me quase como quando reparo num heróico e persistente escaravelho que me tenha rastejado pela casa adentro, rebolando o seu tesouro de cocó. O bicho, mais a sua carga repugnante, tem mesmo de ser removido. Mas até faz pena. Carregar tanta merda, ou acumular tanto comentário merdoso, só pode ser tarefa árdua, ainda que incompreensível.
Deve ser um esforço insano, juntar e guardar bolas de excrementos, todo o santo dia… quase me sinto mal a estragar-lhes essa dura labuta, apenas com um golpe de rato. Ou de vassoura.

