Arquivo da Categoria: Luis Rainha

Uma pequena história pouco natalícia (1)

Ilustração de Jorge Mateus, conto de Javier Ortega

Do Outro Lado

– Diga-me, Mestre, acha que o consegue encontrar?
– Minha senhora; já lhe disse que ele é que me vai encontrar. Mas só falará se assim o quiser. Não tenho qualquer poder sobre ele.
– Mas já aqui estamos há meia hora.
– Diga-me; a sua amiga que me recomendou disse-lhe que isto era automático? Comunicar com o Além demora tempo e requer concentração. Se não mantiver o silêncio, vamos demorar ainda mais umas quantas meias horas.
– Queira desculpar, Mestre, mas tenho tantas saudades do meu pai.
– …
– …
– Filha, és mesmo tu?
– Papá!?
– Estás com mau aspecto. Estou farto de te dizer que esses cremes só servem para gastar dinheiro. Água e sabão azul… não precisas de mais nada.
– Mas, diga-me: como é que está, como é a vida… como é que são as coisas aí?
– Água e sabão azul. É o que eu sempre disse.
– Sim. Água e sabão azul. Eu lembro-me. Mas temos tantas coisas para falar… eu não o devia ter posto no lar. Mas era tão difícil tomar conta de si, papá!
– Papá?? Deve estar a fazer confusão. Os meus filhos são pequenos. E são todos louros. Vivemos numa casa linda, no meio das montanhas…

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Natal hipnagógico

Há uns dias, fui assistir à festa de Natal do meu filho mais minúsculo. Lá o vi a tentar agarrar o microfone enquanto se dedicava a outras tropelias pelo palco fora, totalmente alheado da “coreografia” dos restantes meninos. Logo depois, antes que eu conseguisse encetar a fuga, começou a projecção de uma reportagem caseira sobre as aulas de Inglês dos petizes. Câmara imóvel e desfocada, minutos intermináveis do mesmo plano de criancinhas a produzir sons estranhos. Naquela modorra tonta que anuncia a queda no sono, comecei a ver na projecção uma das cenas sinistras de maus tratos a crianças, sempre gravadas com câmara oculta, com que os telejornais nos estragam as noites. Quando entrou em campo uma das educadoras, dei um salto na cadeira, convencido que ali vinha um qualquer acto de crueldade extrema. Despertei sob o olhar inquisitivo da mãe da cadeira ao lado. E suspirei de alívio: a crueldade era mesmo só exercida sobre os pais sujeitos à estopada.

Quadros para a Quadra (1)

“A Natividade” (pormenor), Giotto, 1304-1306. Neste fresco da Capella degli Scrovegni, em Pádua, surpreendemos Giotto a apontar mais uma vez o caminho para a Renascença. E surpreendemos a usura dos dias em plena voracidade: a Virgem desfaz-se numa névoa azul, parecendo prender-se a este mundo apenas graças à intensa teia de olhares que ali tudo suspende.

O fantasma do meu Natal Passado

Há um ano, caí na asneira de tentar descrever como são os “Natais que cantam” aqui da malta de esquerda, decididamente entregue à construção do Socialismo sob os auspícios do único partido com um candidato presidencial chamado Jerónimo. Além da ira da minha namorada, a coisa conseguiu atrair pelo menos um comentário que a levava a sério. De tal, nem a nossa comentadora Margarida se lembraria; aliás, não é tarde nem cedo para lhe dedicar esta reedição do meu pequeno panfleto natalício:

Desde que vivo com uma militante comunista, tudo mudou na minha vida. Em nossa casa, respira-se ideologia, come-se dialéctica, bebe-se dedicação à Causa. Mas não é por isso que deixamos de ter Natal. Apenas recusamos a celebração consumista e burguesa que só serve para encher o bolso ao explorador Belmiro. Sim: o nosso Natal é ideologicamente puro e decididamente Socialista!
Começando pelo presépio. Rodeado por um carpinteiro de ar humilde (símbolo, é bom de ver, das heróicas virtudes do Proletariado) e por uma robusta e azougada camponesa (representando a gloriosa Revolução que todos adivinhamos para breve) está o menino camarada Jesus, de punho direito bem erguido (a bem da verdade, tinha um dedo esticado até ao dia em que caiu da prateleira). Ao lado, lá estão dois animais de ar estúpido: as bestas do capitalismo e do imperialismo. À porta da caverna de musgo artificial, três homens sábios a camelo. Os bonecos são um bocadito mal-acabadões, mas as suas fisionomias dignas e corajosas não enganam: trata-se dos camaradas Engels, Marx e Lenine (este com um belo bronzeado). Só ainda não percebi uma coisa: que prendas trarão eles? Ouro, incenso e mirra não será por certo; para que quereria um recém-nascido essa tralha burguesa?

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Os mistérios de Luciano Amaral

Não sei se é da altura do ano, se é qualquer coisa no DN, talvez pós estranhos no ar condicionado. Depois do espampanantes delírios de César das Neves, vemos agora Luciano Amaral declarar a sua beatitude natalícia.
Aqui segue a competente amostra para vos aguçar o apetite: “mesmo na Europa adivinha-se uma porta de regresso que (pelo que vai dizendo) Bento XVI parece querer explorar. É que a inverosimilhança da história de Cristo pouco fica a dever a certas inverosimilhanças opostas. Quem recusa militantemente a existência de Deus, fá-lo por fé. Não porque, de acordo com os critérios de veracidade de que se reivindica, tenha demonstrado que Deus não existe ou que é falsa a sua materialização em Jesus.”
Assim, para que um ateu possa ser visto como mais razoável do que uma pessoa religiosa, tem de tentar provar a não-existência de Deus, da Grande Abóbora, ou seja lá do que for. Passagens destas fazem-me recordar a graçola de Ambrose Bierce: “a fé é crer sem provas no que nos é dito por alguém que fala sem conhecimento de coisas sem paralelo.”
E já se está a ver onde vai desaguar o sermão: “o ateu ocidental, sem o saber, herdou do cristão a noção de salvação e de fim da História (o ‘Reino de Deus’). Mas incapaz da fé em Deus transfere-a para ídolos, como a ciência, a economia ou a política.” ; “Daqui nasce a crendice. É no Ocidente super-racionalista que assistimos a uma verdadeira explosão das mais folclóricas superstições, desde a astrologia à psicanálise. Não surpreenderá, por exemplo, vermos um físico nuclear acreditar na reencarnação ou no poder das actividades mediúnicas.”
Muita atenção, gentes sem fé: a psicanálise é uma superstição (não apenas a impostura científica que aparenta ser); a reencarnação é folclore e um físico nuclear que acredite nela só pode ser maluco, mesmo que seja hindu ou que se chame Subrahmanyan Chandrasekhar ou Jagadish Chandra Bose.

Por mais Natais que passem, não há forma desta malta comprar um disco novo. A crença deles é que está obviamente certa; quem acredita em coisas que lhes parecem estranhas, como a reencarnação ou a comunicação com mortos (que até podem voltar a este mundo, garante-nos a Bíblia) é adepto de superstições grotescas e risíveis.
A novidade deprimente desta crónica é que até os poucos que vão conseguindo manter a alma livre de semelhantes tralhas, os ateus, são agora acusados de acalentarem, por invisível herança e “sem o saberem”, essa tal “Fé”.
Irra.

Mistérios avulso

Conta-nos o DN que foi detectado “material cancerígeno” no Palácio da Justiça. Mas a notícia não explica se tal descoberta coincidiu com uma visita de Souto Moura.
Em simultâneo, a sede do PND foi vítima de um misterioso assalto, em que só foi roubado um monitor de computador, pormenor “curioso”, nas palavras de um dirigente do patusco partido, pois havia por ali “dinheiro” e outros bens. Terão os assaltantes fugido em pânico, ao deparar com os muitos retratos de Manuel Monteiro que por certo guarnecem o interior da sua agremiação?

O Insurgente e o seu Guru

O Insurgente acaba de descobrir o seu Grande Educador nos domínios sempre traiçoeiros da Política Internacional: Ribeiro e Castro.
Aparentemente, este “considerou ontem ‘preocupante’ que haja jovens que têm como ícone Che Guevara, ‘um dos grandes assassinos do final do século XX’. O líder do CDS defendeu que ‘é importante que a esquerda se saiba libertar dessas suas referências tremendas de violência, crueldade e intolerância’.”
É claro que o bom Ernesto não foi o anjinho que a hagiografia oficial pinta. Mas, assim de repente, parece-me que talvez fosse mais importante e relevante para os dias que correm reconhecer erros recentes e ainda emendáveis. Coisas como apoiar uma invasão que nos foi “vendida” com argumentos falsificados e que já causou a morte a milhares e milhares de inocentes. Mas talvez só no século seguinte ao dos acontecimentos sábios do calibre de um Ribeiro e Castro consigam mesmo abrir os olhos.
Atenção, que ainda há mais sabedoria a derramar-se deste crânio privilegiado. Ele tem a Grande Teoria para explicar “o terrorismo contemporâneo”. Preparem-se: esse flagelo “tem origem numa deriva totalitária do pensamento marxista-leninista” e isso “tem que estar presente no consenso do combate ao terrorismo”.
Quem andava convencido de que Osama foi treinado e armado por uma certa super-potência, na altura cheia de vontade de incomodar a outra, está a leste. Quem alimentava delírios sobre fortunas sauditas (mais malta de esquerda, suponho) a financiar redes de terroristas islâmicos faria melhor em acordar para a realidade: os terroristas de hoje são sim fãs de Marx e Lenin.
Mas, pensando bem, professar admiração por esta espécie de “pensamento” fica bem a um blogue que ainda há pouco denunciou a condição de milionário de Fidel Castro. Citando um resumo de um artigo mas esquecendo-se (ai, estas cabeças…) de ler como é que a isenta Forbes calculou a suposta fortuna do ditador cubano: “In the past, we have relied on a percentage of Cuba’s gross domestic product to estimate Fidel Castro’s fortune (coisa bem científica, portanto). This year we have used more traditional valuation methods, comparing state-owned assets Castro is assumed to control with comparable publicly traded companies.” Pois. Aquele delicioso e mui rigoroso “is assumed” diz tudo; menos, claro está, a quem nada quer ouvir.

A equidistância, essa arisca virtude

Por uma vez, consegui assistir a um debate em que não nutria mais ou menos simpatia por um dos candidatos. Vejo sim com tristeza que a escolha para nosso próximo presidente se resuma a estas figuras: Cavaco e Soares. Ontem, não encontrei no primeiro qualquer qualidade que o recomende para o cargo; no segundo vi combatividade mas pouca ponderação e nula elegância.
No Pulo-do-Lobo bem que se esforçam por esconder a fraca imagem que o seu candidato deixou: defensivo, banal, sem chama. Mas há sempre formas originais de enfiar a cabeça na areia quando é preciso.
Dos Super-Mários, apenas o lúcido Vital Moreira destoa da euforia geral (embora escolha o Causa Nossa para a dissidência), relembrando um dos péssimos deslizes de Soares, a propósito do que se dizia de Cavaco por essa Europa fora. E tem razão em fazê-lo: a má educação pode parecer coisa pouca no reino da dura política, mas muitas vezes é nestes pequenos nadas que se ancoram os juízos definitivos.

Belas artes para feios tempos (6)

A nova arte chinesa é inconfundível. Partindo de uma posição exterior a qualquer campo artístico familiar, esmera-se no que por vezes aparenta ser uma busca incessante do inusitado, do chocante, do repugnante. Por isso, até há bem poucos anos artistas como Sun Yuan e Pen Yu eram vistos pelas autoridades chinesas como lixo incómodo a fechar a sete chaves no armário do underground. Mas também aqui a atracção do mercado foi irresistível: quando a cotação de alguns destes proscritos subiu em flecha no Ocidente, não tardou até que muitos deles se vissem promovidos a artistas oficiais.
A peça aqui ilustrada, Soul Killing, de 2000, é um exemplo extremo do incómodo quase físico que muitas obras chinesas contemporâneas conseguem causar. O seu elemento central é um cão, que foi esfolado e desprovido da parte superior do seu crânio. Exposto ao calor brutal de um projector de cinema, o cérebro do animal vai sendo cozinhado face aos espectadores, que têm de suportar um odor intenso para poder admirar a obra. Trata-se de uma óbvia crítica à nossa sociedade do espectáculo, onde todos se sujeitam às leis da exposição mediática por interesse ou mero exibicionismo. Mesmo que o processo frite os seus miolos ou acabe por “matar” as suas almas.
Sun Yuan e Pen Yu são autores de obras ainda mais radicais, como “Link of Body” onde são usados fetos humanos. Aliás, um outro artista chinês, Zhu Yu, originou um mito urbano que correu mundo sob a forma de emails a denunciar a prática de canibalismo em restaurantes de Taiwan; uma sua performance em que comia um feto abortado causou choque por todo o lado e justificou mesmo uma nota do governo de Taiwan…
Temas como o corpo enquanto local de transcendência e abjecção, a fugacidade das coisas humanas e também uma estranha fixação com a comida, frequente em artistas como Chen Wenbo, são alguns dos traços genéticos deste novo produto de exportação chinês. Estranhos gostos a pedir estômagos fortes.

Lá me enganei…

Por muito que me desagrade Mário Soares (e sobretudo a sua peculiar visão da ética política) há que dar o braço a torcer. O homem deu um banho a Cavaco Silva. Este, às tantas, só se refugiava em tíbias recomendações de leitura do que sobre ele se escreveu, ou de algo que Delors sobre ele disse, sei lá; quase fazia pena, sobretudo depois de Soares ter lançado o remoque “o senhor fala da sua autobiografia como se fosse a Bíblia”.
Mas Soares esteve, para usar uma fórmula de reality shows, “igual a si próprio”, também com tudo o que isso implica de mau, de péssimo. Insinuou que os seus pares europeus viam Cavaco como um homem distante e que “não tem conversa” mas depois recusou-se, para “não ser deselegante”, a revelar ao certo o que se dizia. Perguntou se Cavaco escreveu “sobre as mudanças do mundo”, apenas para acrescentar a patética e gabarolas continuação: “eu escrevi vários volumes” (coisas boas, presume-se).
Depois de muito acicatado, Cavaco lá saiu da concha com uma resposta tremenda: “ai quer que eu fale de globalização? A globalização é uma realidade que está aí.” Minutos passados, o responsável por um terço da governação de Portugal em Democracia teve o desplante de perguntar porque é que a Espanha está a crescer mais do que nós! Nos entrementes, Soares lá ia lançando as suas farpas: “o senhor não lê livros, lê dossiês”, aqui sem dar mostras de perceber que o bom povo também não os lê e olha de soslaio essa malta que anda sempre por aí de livro em punho.

Resumindo: Cavaco Silva é um provinciano de vistas estreitas, um saco de vento cheio de coisa nenhuma, preocupado apenas, como George Bush há uns tempos, em não dar bronca da grossa. Soares é mesmo um velho leão, de unhas rombas mas ainda capaz de dar cabo de um palonço atrevido. Pena é que nada mais tenha a oferecer ao Portugal de 2005 do que alguns garbosos rugidos.
Pobre país que se vê confrontado com semelhante escolha.

PS: a coisa correu de tal forma mal ao economista de Boliqueime que Dias Loureiro, depois de vaguear por alguns minutos, só conseguiu atrever-se a dizer que a “estratégia de Cavaco Silva foi melhor”; não que ele tinha ganho o debate.

Post 2 em 1

Hoje, acordei assim

Constipado, febril, ranhoso, miserável. Nem o ben-u-ron nem generosas doses de Favaios me valem. Ainda por cima, as sondagens continuam assim.

Amanhã, muitos fãs de Soares vão acordar assim

Quando confirmarem que a Cavaco basta permanecer mais ou menos calado sobre temas importantes e resistir às armadilhas do adversário para manter a sua vantagem, amanhã já nem vão andar a exigir mais debates.

É lindo o amor na blogosfera (1)

De quando em vez, vou sabendo de mais um par, de mais um casal que se conheceu na blogosfera. O rapaz tem um blogue, a rapariga tem um blogue. Acabam, com a conhecida inevitabilidade destas lindas histórias, por reparar nos blogues um do outro. Aí, arriscam comentar um post ou uma ideia que lhes surge como mais admirável. Dias depois, os mails a transbordar admiração sincera e desinteressada começam a sulcar o éter do ciberespaço, para cá e para lá. Não tarda até que se instale a ideia inabalável de que tudo no blogue amado é escrito tendo em vista um só (secreto) destinatário: eles mesmos, claro está. Quando o coup de foudre físico por fim acontece, num qualquer encontro da especialidade ou num lanche aprazado a medo, é apenas o cumprir de uma formalidade que os ditames da vida impõem: a paixão iria por certo ignorar qualquer desilusão com pormenores anatómicos e outras minudências.
Não deixa de ser engraçado ver a blogosfera como um repositório de milhares e milhares de paradas nupciais. Os voos lexicais mais arriscados substituem o peito inchado; a elegância conceptual toma o lugar das plumas coloridas; o arrojo da prosa emula a pose rampante. Assim se vão revelando e atraindo, post a post, os futuros amantes.
E parece-me mesmo bem, que se escolha quem tão bem já se conhece. Para alguma coisa de jeito haveria isto de servir. Ainda por cima, dá-me ideia que por aqui é sempre Primavera.

O Inferno é isto

O Canal História emitiu ontem dois documentários engraçados sobre o Inferno. Entre outras demandas, correram Igrejas à cata de respostas a perguntas fatais: o que é o Inferno? Quem é que lá vai dar com os costados? Será que no Inferno também teremos de ouvir debates presidenciais?
Só fiquei admirado pela falta de imaginação revelada por tanto teólogo. Do Budismo ao Judaísmo, ninguém se lembrou de alvitrar uma hipótese óbvia: o Inferno é este mundo onde nos arrastamos. De acordo com esta provável teoria, teremos sido punidos pelas nossas acções numa outra esfera celeste que só em sonhos de beatitude conseguimos relembrar. Talvez morrendo possamos voltar a algum local aprazível. Entretanto, o castigo não é nada manso.

José António Saraiva e José Castelo Branco, irmãos espirituais

“Sou uma pessoa com carisma que consegue agradar a todas as classes sociais”.
“A coluna registou um êxito imediato, vindo a tornar-se uma das mais lidas, influentes e carismáticas de sempre da imprensa portuguesa.”
A primeira frase é da autoria de José Castelo Branco, o inconfundível socialite que enche páginas às revistas do Jacques Rodrigues. A segunda é do ainda director do “Expresso”, o arquitecto José António Saraiva.
Estes dois parecem duas personalidades sem muito a ligá-las; mas partilham inúmeros traços de carácter. Começando pela absoluta e inabalável convicção de que são seres predestinados, geniais e sem igual. E ambos se sabem investidos de papéis cruciais para a sociedade portuguesa: o primeiro ensina-nos a ter “estilo”, o segundo a “pensar”. Com resultados muito similares, aliás.
A coluna de Saraiva desta semana, a “Última”, é de leitura imperdível. Recomenda-se aliás a compra do espesso semanário só para recortar e emoldurar aquele naco de prosa. A sério. Ora tomem lá algumas passagens: “Enquanto outros se esforçavam por tornar complexas e densas as coisas simples, acreditando desse modo fazer provas de inteligência, profundidade e erudição, sempre segui o caminho contrário: procurei tornar simples as coisas complicadas”; “mesmo tratando de temas circunstanciais, tentei fazer alguma doutrina, não me ficando pela espuma dos dias”; “neste espaço se previu há muitos anos a ‘invasão espanhola’, com um texto premonitório que foi estudado nas universidades de Espanha”; “neste espaço enfrentei o ‘ar do tempo’, rejeitando o aborto, a eutanásia, a pena de morte e o suícidio”; “neste espaço houve sempre uma visão de futuro — e muitas vezes antecipou-se o futuro”; “posso dizer que a História confirmou grande parte do que aqui se escreveu e previu”; “este espaço deixou sementes (…) inspirou uma cadeira de Política Portuguesa na Universidade Católica que nasceu há 5 anos”. No meio destes feitos sem par, o arquitecto ainda conseguiu “ser claro, rigoroso, isento, claro, atento, criativo, independente de partidos, personalidades, organizações ou seitas, impermeável a modas — no sentido de lhe dar semanalmante a melhor opinião da imprensa portuguesa”.
Fico sem saber se isto é apenas grotesco e cómico ou se é pungente e patético. O homem, tal como o José Castelo Branco, está mesmo convencido de que todos olham para ele em busca de iluminação e de inspiração. Acredita que as banalidades que semanalmente debitou foram mais do que lugares-comuns sem novidade; tem como sublimes inspirações delírios como a proposta de criar uma nova capital para Portugal. Aliás, ele sempre se viu neste papel messiânico de Prometeu a trazer o fogo aos ígnaros: é só recordar a indescritível crónica que escreveu a propósito do aborto. Mas o triste facto é que em 24 anos de coluna semanal só conseguiu ser original quando se tornou flagrantemente disparatado.

Tal como o Castelo Branco, António José Saraiva não entende que lhe é dada tão somente a atenção que se dedica a um inofensivo e pitoresco clown. Ambos serão populares, mas apenas porque nos fazem rir.