Arquivo da Categoria: Luis Rainha

Eu sou o outro

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Há décadas que a minha vida é assombrada por um duplo. Tudo começou quando um fulano bem apessoado me cumprimentou em plena rua de Cascais, bramindo o seu espanto com o quanto eu engordara, perguntando-me se “continuava ir ao rugby” e despedindo-se com sentidos votos de felicidades para uma “esposa” que eu nem tinha à altura. Escusado será dizer que nunca antes vira tal criatura.
Depois, foi o abraço de urso que me desferiram à má-fila num centro comercial. O simpático agressor estava deliciado por me voltar a ver, eu que tinha sido um dos poucos amigos a ir visitá-lo ao hospital e estas coisas um gajo não esquece porque antes quando estava à porta da discoteca era só palmadinhas nas costas e tu-cá-tu-lá mas depois da cena do tiroteio e da granada já ninguém o conhecia de parte alguma. A não ser eu, claro está. Que até lhe tinha emprestado dinheiro. Recusei um súbito assomo de ganância e disse-lhe para me pagar noutra altura mais propícia, depois de endireitar a vida e despistar os tais “gajos” que teimavam em apoquentá-lo.
Os encontros mais ou menos pícaros foram-se sucedendo. E nunca me passou pela cabeça desfazer o equívoco e tentar convencer aquela malta que não era eu o tipo porreiro que já não viam há uma carrada de anos. Agradava-me a ideia de manter algures uma vida secreta; tão secreta que nem eu desconfiava o que andaria a fazer (sempre era uma explicação mais agradável para o costumeiro cansaço matinal do que uma apneia do sono ou coisa que o valha).
Afinal, ter um sósia tem o seu frisson metafísico; nem é preciso ser fanático do Borges para apreciar o calafrio da identidade dúplice, a vertigem do labirinto de espelhos. Tudo isto dá uma certa gravitas à minha ronceira vida de suburbano hipertenso.
Ainda há uns meses, numa função solene em pleno Alentejo, dei com mais um destes “amigos” contrafeitos. Um tipo bastante bêbado que começou por se pendurar no meu braço a recordar episódios de batidas ao javali e uma regata que devíamos ter ganho. Depois, insinuou que a minha relação com a sua mulher tinha ar de não ser inteiramente sã e que a próxima caçada poderia incluir um acidente muito desagradável. Sendo já tarde demais para denunciar o engano, limitei-me a tartamudear um “eh pá, deixa-te lá disso” e fugi para junto da mesa dos canapés, onde meti conversa com um padre que parecia mesmo o Ricardo Araújo Pereira a fazer de padre. Sei agora que o meu alter-ego afinal é um valdevinos apostado em causar-me algum percalço. Talvez seja boa ideia cortar a barba.
Mas se calhar há por aqui eventos mais complexos do que uma simples parecença física. Uma qualquer instância arbitral destes mistérios ontológicos pode bem ter procedido a uma experiência de âmbito inescrutável, criando não um mas dois eus, dando-lhes depois circunstâncias e acasos diversos. Palpita-me que o meu doppelganger é que ficou com a vida aventurosa e divertida. A mim tocou-me o jardim sempre em estado semi-selvagem, as contas do saneamento básico, as idas ao Continente e as varizes.
Se algum dia o encontrar, sou homem para trocar de lugar com ele. Nem que seja à força.

Lá volta a cantilena do “Fidel milionário”

É coisa cíclica: volta meia volta ouvimos falar duma por certo rigorosa lista da revista Forbes que atribui a Fidel Castro uma fortuna esbugalhante. Desta vez, é-nos apresentado como sétimo líder mais rico do mundo, na formidável companhia de reis, sultões e príncipes casadoiros.
E como é apurado o valor do criminoso pecúlio do ditador cubano? Varia de ano para ano. Mas é sempre método mui científico e fiável. Antes, calculavam, para poupar trabalho, uma percentagem do PIB de Cuba e atribuíam-no a Fidel. Passados uns anos, começaram, generosamente, a dar-lhe uma fatia das receitas das empresas estatais que representam, nas palavras da insuspeita revista, «state-owned assets Castro is assumed to control».
Este ano, é tudo mais rigoroso: «we assume he has economic control over a web of state-owned companies (…) To come up with a net worth figure, we use a discounted cash flow method to value these companies and then assume a portion of that profit stream goes to Castro. To be conservative, we don’t try to estimate any past profits he may have pocketed, though we have heard rumors of large stashes in Swiss bank accounts.» Partem do princípio, assumem e até dão de barato os esbulhos passados, apesar dos credíveis rumores que andam por aí.
Que a Forbes, notória pelo seu militante anti-castrismo, persista na fábula mascarada de jornalismo, ainda vá. Bizarro é que tanta gente — da RTP a blogues respeitáveis — nem se dê ao trabalho de investigar o site da revista antes de dar eco a historietas sem qualquer fundamento visível.

Gineceu (2)

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Aqui há uns dias, chegou de Angola uma notícia alarmante: a miss angolana, a belíssima Stiviandra Oliveira — que encima estas linhas — seria impedida de participar num concurso internacional de beleza por «ser muito clara para os gostos da maioria negra».
Tal campainha bastou para levar saliva a algumas bocas. Curiosamente, a direita civilizada e a “outra” coincidiram quase ipsis verbis numa análise: «Imagine-se a reacção dos media e dos arautos do politicamente correcto (a nível nacional e internacional) se se tratasse de um caso inverso, intitulado por exemplo “Miss Portugal é muito escura”…» teve como contraponto «Agora imagine-se que em Portugal, ou em qualquer outro país europeu, sucedia o mesmo (eleição duma negra como miss) e havia alguém a usar o argumento racial… caía o Carmo e a Trindade e a súcia anti-racista militante vinha para a rua protestar…»
A grande diferença acabou por ser que o Insurgente tratou de afixar um desmentido a atribuir as dificuldades de inscrição da jovem ao regulamento sobre as idades das concorrentes. Os “outros” ainda por lá andam a discutir a notícia inexistente.
Indesmentível é que parece crescer em Angola um clima de hostilidade para com os mestiços. Basta colocar um olho nos comentários que a eleição de Stiviandra suscitou para confirmar que, em nome do regresso a uma supostamente autêntica “negritude”, muitos julgam mesmo que esta miss não deveria representar o seu país. No meio da discussão, lê-se de tudo: do bruto «Para já os latons e as latonas africanos (as) deveriam é maritar com os senegalés, puros negros. A mulher mais linda é a mulher de natureza negra e sem nenhuma melanjerias» ao elaborado «Nos, os negros Angolanos, temos que passar a valorizar a nossa cultura. Nisto, teremos mesmo que por os mulatos e brancos de lado; eles teem a sua própria agenda, que é subjugar-nos permanentemente. Vejam só a volubilidade com quem os latoes e pulas, nesse comentários, estão a celebrar a vitoria desta latona como Miss Angola! O pais é nosso, agora muitos de nos passamos a ter muito dinheiro; deixemos esses apatridas de lado».
O preconceito, por muito pensado que seja, é sempre espectáculo feio. Mas os “separatistas raciais” portugueses esmeram-se na arte: «é a primeira vez que vejo um macaco maquilhado»; «Pretos racistas contra pretos? Estarão a evoluir?»; «Os pretos são mesmo feios, como é possivel haver lá “misses”?!!»; «Pelos vistos fazes parte daquela camada que foi “socializada” – (leia-se sujeita a lavagem cerebral) e que agora acha muito giro ver uma rapariga branca acompanhada por um preto, dar à luz uma baratita…». A não esquecer: é disto que falamos quando falamos da nossa extrema-direita.

Mas vamos ao que interessa: não sei se a Stiviandra vai mesmo ser candidata ao tal título “universal”. Certo é que parece ser mulher para dar “dez a zero” à desengraçada miss lusa

Um módico contributo para o tento na língua

No afã de dar mais “modernidade” e “flexibilidade” ao Português, não cessam as novidades teratológicas. Depois do infame e esverdeado “glauco”, que continua a sua profícua carreira por esse mundo fora, salta-me agora a atenção para o vocábulo “módico”.
Mas quem se terá primeiro lembrado de martelar o pobre adjectivo até dar em substantivo? Hoje, de João Pereira Coutinho a este mesmo blogue, passando por locais mais ou menos recomendáveis e por fontes mais ou menos abruptas, poucos escapam à epidemia.
Não sei se a coisa terá raizes eruditas, no latim “modicus”; parece-me mais provável a parola importação directa do Inglês. Ao pé disto, julgo que a história do “estória” é inovação perfeitamente benigna e até louvável.

Matéria negra

Há uns dias, conheci uma mulher a quem morreu um filho. Antes de a ver, já sabia do drama banal: o miúdo que desfalece sem aviso, o diagnóstico de tumor incurável, a tentação do suicídio, o longo e raivoso luto. Já sabia que não tivera mais filhos nem regressara por inteiro à vida; sabia que mantinha intocado o quarto da criança morta, que o seu desgosto se dava a mais uns quantos caprichos um pouco sinistros. Imaginei que todos os convivas daquele jantar tivessem também ouvido as mesmas histórias, recitadas entredentes como um segredo quase vergonhoso ou como uma fábula terrível que deixa sempre o mesmo arrepio: “e se tivesse sido eu?”
Claro que aquela mãe presa num nojo perpétuo e malsão tinha tudo para ser a atracção principal do jantar. Ainda em pé e de copo na mão, dei por mim a espreitá-la através de uma distância meio respeitosa meio medrosa. Estar face a alguém que sobrevivera a uma perda assim parecia-me coisa admirável; quase como conhecer o primeiro capitão a ultrapassar o Bojador ou trocar banalidades sobre o tempo com um astronauta reformado. Temo ter embasbacado por longos segundos, feito mirone da dor alheia. Mas não era o único. Bastou-me um pouco de atenção para reparar na lenta coreografia que animava os convivas: estes aproximavam-se da mulher, como que por casualidade, endereçando-lhe algumas palavras nos casos mais afoitos, e fugiam de seguida para a outra ponta da sala. Presos a órbitas parabólicas em redor de um astro que mal tocam: atraídos até certo ponto para logo se verem repelidos, talvez receosos de arriscar um qualquer contágio pela proximidade excessiva.

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A náusea de ontem

Há uns dias, a Fernanda Câncio juntou a sua voz ao animado coro de reprimendas à TVI pela forma algo necrófaga como explorou a morte do jovem actor Francisco Adam: “Raras vezes se terá assistido a um tão acabado exemplo de autofagia mediática e de canibalismo sentimental”.
A tese subjacente a estes lamentos é sempre a do plano inclinado em que vamos deixando escorregar os nossos valores civilizacionais — “a náusea de ontem é a normalidade de hoje”. Por outras palavras, estamos pior que ontem, mas não tão mal como amanhã.
Para quem se sinta tentado a acreditar na tese e a fazer de conta que a Imprensa só agora descobriu esta fossa para chafurdar, talvez seja boa ideia relembrar o caso do bebé Lindbergh. Os fotógrafos invadiram a morgue onde jazia o caixão da criança e trataram de o abrir, em busca de fotos mais “emocionantes”.
Pois. Apesar de tudo, ainda não regressámos a tais paragens.

Votos crípticos

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O que acontece quando dois excelentes blogues se unem em matrimónio? Uma prole infinda de posts minimais?
Seja como for, o que nos importa, a nós leitores, é que as alegrias que hoje começam não vos roubem tempo para a blogação. E aqui fica um pequeno mas decorativo vasito, à laia de presente que gostaria de vos oferecer, se a penúria não fosse tão aflitiva.

“Compramos Sucata”

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“A Cormetal, que atua a mais de 20 anos no mercado de RECICLAGEM compra para reciclar:”
Inicia-se desta forma auspiciosa e ortograficamente inovadora um mail que por aqui recebemos “a” bem pouco tempo. Gostaria de responder a estes senhores com boas novas. Mas que sucata lhes poderemos vender? Comentadores inoxidáveis? Polémicas enferrujadas mas ainda com alguns quilómetros para dar? Bloggers a precisar de recauchutagem, como este vosso criado?

Mais três achegas para confirmar a superioridade moral da Civilização Ocidental

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1- após o final da II Guerra Mundial, os ingleses montaram os seus pequenos sucedâneos de Auschwitz, onde foram interrogados alguns suspeitos de comunismo. Tortura, privação de sono, falta de alimentação, uso de adereços surripiados à Gestapo; tudo valeu para sacar informações aos detidos.
2- no Afeganistão, local da primeira batalha da “guerra de civilizações” e país recentemente arrancado às garras do fundamentalismo, a Justiça já se distanciou das práticas bárbaras dos talibans. Agora, os corpos dos condenados só são expostos por períodos decentes e o estádio de Cabul deixou de ser palco de execuções e amputações públicas; as autoridades andam em busca de um local decente para tais espectáculos. Ah: hoje em dia, os adúlteros são, ó cúmulo do humanismo!, lapidados com “pedras mais pequenas”.
3- as forças armadas dos EUA ponderaram seriamente a hipótese de assassinar civis e militares americanos só para terem à mão um bom motivo para invadir Cuba.

Um último Rodriguinho (1)

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Já nenhum êxito de Hollywood dispensa os lucros do merchandising. Agora, é o oscarizado Brokeback Mountain que dá origem a uma linha de educativos brinquedos. Começando pelo dócil cavalo Bottom, imprescindível companheiro de folguedos dos cóbois modernos.

(1) Uma pequena graça à la maniére de RMD.

Enxotar as aves necrófagas

Só um esclarecimento, não vá alguém pensar que os vampiritos do costume desta vez até acertaram uma. Não. Se não “me reconheço” (raio de chavão que fui desenterrar…) no Aspirina actual, isso nada tem de censura ao meu amigo Valupi — aqui, a dissidência é visita bem-vinda. Tem sim a ver com o predomínio esmagador de posts como este, este, este e até este.
O meu projecto inicial para este blogue passava por combinar alguma reflexão politizada com intervenções mais intimistas, centradas em objectos artísticos, ou mesmo em torno de pequenos exercícios de humor ou ficções. Quiseram as correntes da vida empurrar o Aspirina B para outro lado. Hoje, ocasiões há em que ele surge quase como porta-panfletos, como veículo para proclamações várias, sem grande hipótese de servir de catalisador para discussões que me interessem. Por sentir essa tendência, já o João Pedro da Costa nos abandonou; e tenho eu também alguma dificuldade em continuar a considerar esta a “minha” casa. O que não vai impedir a sua continuação, em busca de outros caminhos e de outros estilos.
Já agora, pela centésima e provavelmente derradeira vez: não sou “bloquista”. Vai daí, e por muito que isto custe à pequenina imaginação do AAA, a minha saída não representa nenhuma “crise” no tal “bloquismo”. Folgo, no entanto, em constatar que o Aspirina, apesar do “gritante vazio de ideias” e do seu “estado de degradação”, continua a ser mais lido do que “O Insurgente”. Isso, para quem idolatra de tal forma a presciência do “mercado”, deveria encerrar importantes lições de humildade. Mas é muito mais fácil dar lições aos outros, não é, AAA?

Sinistro quem?

Só para o caso de algum leitor tomar a mudez geral dos sócios do Aspirina como uma espécie de aquiescência passiva, tenho de proclamar o seguinte: não vejo grandes vislumbre de razão ou de sentido neste post ou neste, ambos lavrados pelo meu acetilsalicílico parceiro Valupi. Nada de dramático; apenas formas divergentes de espreitar a realidade, o que nem sequer obriga à invenção de novas alternativas ao quinto postulado de Euclides.
Vejamos: primeiro, Valupi descobre-se no meio de uma sociedade embrutecida e bovina, fascinada por “ricalhaços” e “futebol”, que, de todo, “não speaka marxês”. De caminho, ainda estranha que os partidos de esquerda não estejam sempre no poder, como seria natural se as suas propostas fosse assim tão bondosas para os “trabalhadores”. O facto de o PS até ser governo é sacudido com um fácil e mui conveniente envio deste partido para o “centro”, como o provaria à saciedade o facto de ter alcançado a maioria absoluta. Ora isto representa uma confusão homérica entre centro sociológico e centro político, levando-nos de escantilhão para um lindo corolário: o PSD e o PS são, uma vez que já ambos foram maioritários, rigorosamente iguais. Passa-se que não são. Podem ser parecidos, pode o PS não ser “de esquerda” para o PCP, mas é inegável que está à esquerda do PSD, se aceitarmos que estas definições ainda retêm algum resquício de significado.
Ora o facto de a nossa sociedade não “speakar marxês” não tem de ser visto como um problema de “passar a mensagem” nem sequer como mais uma demonstração da falta que faz uma vanguarda esclarecida. Basta relembrar Marcuse para vermos como o marxismo não congelou no Jurássico e até já demonstrou, há décadas, compreender bem esta “sociedade unidimensional”(1) que agora Valupi descobriu. Pois — e atenção que esta pode ser revelação espantosa para muitos — a Esquerda não se limita a berrar os seus vómitos “anti-América” e “anti-autoridade” (semelhante uso deste chavão chega a ser cómico, em dias em que alguma direita pugna pela quase anulação do papel regulador do Estado…); também consegue pensar o mundo em que vive. Ignorá-lo é de um simplismo a toda a prova.

No post seguinte, o alvo é outro mas a caçadeira continua munida de chumbo grosso e orientada por desfocadíssima pontaria. Partir do princípio que um acervo de episódios e tendências negativas chega para definir por atacado toda uma “civilização” ou uma religião seria risível se não fosse algo sinistro.
Ora deixem-me dar uma ligeira volta ao valupiano texto, mantendo no entanto intactos todos os delicados maquinismos da sua lógica:
“O caso do presidente convertido ao fundamentalismo mais alucinado, e já antes notório por não comutar penas de morte, é uma nítida radiografia da sociologia do Ocidente. Estes evangelistas enlouquecidos são aliciadores de fanáticos, numa lógica puramente religiosa. Nos países cristãos onde não há outras fontes de informação e de formação, ou onde elas são totalmente subservientes, o sentido constrói-se coercivamente a partir das patologias instituídas como cultura religiosa. O resultado é o contínuo fluxo de carne para canhão.”

Ou, em alternativa, também podia pegar no recente episódio do influente rabi que recomendou aos pais judeus que amputassem partes das bonecas das suas filhas para que estas não caíssem na categoria de “ídolos”. A partir daqui, seria fácil inferir que o Judaísmo é coisa de psicopatas delirantes.

Seria grotesco e simplório, não é? Pois. I rest my case(2).

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Uma ligeira evolução

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José Manuel Fernandes afirma, no seu “Público”, que, se fosse hoje, continuaria a defender a invasão do Iraque.
Num artigo intitulado “Dever e haver da invasão do Iraque”, ele descobre que, apesar das mentiras, do descontrolo total e da absoluta falta de planeamento para o pós-invasão, apesar do clima de guerra civil que já se vive no Iraque, apesar dos desmandos, das torturas e das arbitrariedades; apesar do fortalecimento de todas as facções fundamentalistas no mundo árabe… apesar de tudo, valeu a pena. Isto porque se calhar estaria tudo pior se tivesse sido tomado outro caminho qualquer.
Bem, pelo menos numa coisa a situação evoluiu. O jornal de José Manuel Fernandes já não apõe aspas à palavra “invasão” neste contexto, como fazia há precisamente dois anos.

Terra chama frei Rodrigo!

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Fátima, um mito? Ná; eu usaria antes a palavra “fantochada”. Desculpa lá a franqueza; mas acreditar em Fátima é coisa mais grotesca do que ler o “Código da Vinci” como se fosse um tomo de História. Ou acreditar que os americanos derrubaram o WTC acolitados por uma tribo de pequenos venusianos de maus-fígados.
Fátima nem sequer foi invenção da Igreja. O mérito pertence quase por inteiro à pequena mitómana alucinada, Lúcia dos Santos. A imaginativa criança conseguiu convencer gente adulta supostamente na posse das suas capacidades intelectuais de que tinha visto as seguintes criaturas mais ou menos mitológicas: um tal de “Anjo de Portugal”, a Virgem Maria (que também fez uns cameos, lá para o fim da farsa, sob os pseudónimos de Nossa Senhora das Dores e Nossa Senhora do Carmo), o menino Jesus em diversos estágios de crescimento e até mesmo S. José. Isto sem qualquer espécie de prova, no meio de testemunhos continuamente refeitos (recordem a historieta inicial, que dava conta de uma senhora com a saia acima do joelho, por exemplo) e, muito mais importante para qualquer cristão, servindo de veículo para uma mensagem vingativa, odienta e má; a léguas da ideia de Salvação universal que Cristo nos terá deixado.
Que raio de Deus é que exigiria a uma criança que rezasse muito, sob pena de ir parar ao Inferno? A tal “Senhora” de Fátima fê-lo. Da mesma forma, não se coibiu de endereçar esta pergunta aos três “videntes”: “quereis oferecer-vos a Nosso Senhor para aceitardes de boa vontade todos os sofrimentos que ELE vos quiser enviar, em reparação de tantos pecados com que se ofende a Divina Majestade, em desagravo das blasfémias e ultrajes feitos ao Imaculado Coração de Maria e para obter a conversão dos pecadores, que tantos caem no inferno?” Ao pé de coisas destas, até o teu satanismo faz boa figura… e o “Código da Vinci” parece um bem estruturado tratado de teologia.
E olha que a Igreja só embarcou no comboio de Fátima quando aquilo lhe cheirou a fonte de dinheiro e de poder. E, claro está, depois de já ter comprado grande parte dos terrenos circundantes.
Quanto à Opus Dei, antes se dedicasse ao satanismo e ao basquetebol (aquilo do encesto tinha a ver, não era?). Sempre era forma de se tornar em coisa mais divertida e menos manhosa.

Encontrem a Deus, mas noutro trabalho qualquer

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Todos vimos há uns dias o presidente do BCP, Paulo Teixeira Pinto, enquanto lia no teleponto a declaração das suas melhores intenções com a OPA sobre o BPI. Que era tudo amigável, que nada o movia contra ninguém, que queria era espalhar amor pelo mundo financeiro afora, jurava o senhor com o queixo quase trémulo de tanta linda intenção.
Afinal, o sucessor de Jardim Gonçalves é membro convicto da Santa Máfia, a Opus Dei; e a sua surpreendente nomeação para o cargo talvez não tenha sido alheia a esse facto. Sabemos também que tal organização tem como lema “encontrar a Deus no trabalho”. Logo, ficaria mal ao sr. presidente incluir no seu trabalho operações hostis e outras manigâncias de semelhante jaez.
Dias depois, a mesmíssima santa alma confirmou que a concretização da sua OPA levará ao despedimento de 3.000 trabalhadores. “É perto desse valor”, disse ele, não sei se mais uma vez acompanhado pelo seu piedoso tremor de queixo.
Admitir a intenção de chutar com 3.000 famílias para parte incerta talvez merecesse mais do que esta seca anuência, em termos de “valor”. Sobretudo para quem milita numa seita que quer promover uma “vida plenamente coerente com a fé nas circunstâncias vulgares da existência humana, especialmente através da santificação do trabalho.”
Mais: o sr. presidente é um dos animadores da folclórica Associação Cristã de Empresários e Gestores de Empresas, que se rege por um “Código de Ética” já entregue a Bento XVI, suponho que em cerimónia de adequada elevação espiritual. Este “Código” impõe aos signatários “o respeito e a promoção do projecto de vida dos trabalhadores”.
Naturalmente, compreendo que o objectivo máximo de um gestor possa ser realizar valor para os seus accionistas, ignorando tudo o mais. Desagrada-me é o farisaísmo desta malta que nos fala em santidade, em Deus e em Ética para no fim se revelar tão gulosa (não esquecer que a administração do BCP é recordista nacional de vencimentos) e indiferente à sorte dos seus colaboradores como o mais amoral incréu.
À laia de consolação, resta-me esperar que surja mesmo uma contra-OPA do BPI e que o sr. presidente se veja recambiado para o mosteiro. Lá, poderá procurar a santificação do trabalho sem dar cabo da vida a ninguém.

Inocentes

Há uma expressão que me irrita muitíssimo. É aquela que se costuma juntar aos feitos de um ditador facínora ou de um serial killer: “não sei quem matou X pessoas inocentes”. A expressão é sobretudo usada nos EUA e ainda há dias a ouvi a propósito do único suspeito de terrorismo que está a ser julgado pelos ataques do 11 de Setembro. “Pessoas inocentes” porquê? O que tem a inocência das vítimas a ver com a relevância dos crimes? Se as vítimas fossem culpadas (termo já de si difícil de definir) a sua morte seria menos grave? Parece-me evidente que não.