Mas certo é que mata caça quem porfia. O viajante ouviu finalmente uns falares de homem, dobrou uma esquina e entrou nesta ruela, que vai dar a um logradouro sem saída. Entre duas casas de cimento, logo lhe deram os olhos num majestoso alpendre de granito, de vasta escadaria e corrimão de pedra a que faltam pedaços, alguns a escorregar, mal seguros num ferro. No logradouro ao fundo andam três homens ocupados, na verdade com ar de poucos amigos, e um cão que está preso a um arame ladra desaustinado. O viajante hesita, enquanto observa a cantaria espessa e regular, as flores de sabugueiro a espreitar em dois janelões, e a carranca de pedra a sair da parede, uma cabeça de carneiro já gasta e puída. Ainda a hesitar sobe as escadas e encontra duas portas, aqui viveu o juiz de paz, ali foi em tempos a casa da câmara. Isto cogita o viajante, abrindo caminhos à imaginação, enquanto desce, emocionado, sem certezas nenhumas.
– Que tem que fazer aqui?!
A pergunta vem de um dos homens, que avança para o viajante com olhar torvo, e um banco de metal agressivo nas mãos. O viajante, que detesta conflitos, fica desamparado. Observa outra vez o empedrado da rua, levanta as mãos em sinal de rendição, dá mais uma mirada às casas do juiz de paz.
– Quer comprar?!
– Que ideia! Ando apenas a ver estas vidas antigas, julguei que era pública a rua…
E já foi, mas já deixou de ser. O homem fez dela coisa sua, porque tudo o que nela está lhe pertence, menos as casas velhas.
– Você entra por aqui, sem dizer nada… sabe-se lá o que anda pelo mundo, hoje em dia!
Por sorte sua, o viajante nunca desejou ser dono duma rua. E se não tiver a pinta dum celerado vulgar, concorda pelo menos que não basta ver as caras para reconhecer os corações. Não está em terra sua, por isso concilia, harmoniza, pede desculpas da intrusão.
– Não quer beber um copo?
Assim a quente, ainda tomado de brios, o viajante está a pontos de recusar, mas aceita. Porque beber um copo em sociedade é por aqui o mesmo que assinar um tratado de paz. Preferia um copo de vinho, mas acaba a engolir um Ricard espúrio, que uma mulher trouxe lá de cima. Sentou-se, com o anfitrião, no vasto palanquim de cimento que este construiu por cima da estrada, e ambos conversaram finalmente, com o vale da ribeirinha em frente. Nos tempos antigos o homem era jornaleiro, fazia o que calhava, aí no campo. Nunca chegou a trabalhar nas minas, que sempre lhe faltou a terceira classe. Depois andou emigrado em França, a trabalhar nos batimãs, e viveu treze anos num autocarro velho, parado num beco de Champigny. Quando chegou a altura, comprou tudo o que havia nesta rua e reconstruiu a casa onde vive. Faltam-lhe as duas casas velhas, que há desassete anos não têm habitantes. Espera vir a comprá-las, quando os donos baixarem o preço.
– Um dia põe o seu nome na rua!
A sugestão não presta ao homem, que a rua já é dele. Das eleições da Europa pouco ouviu falar, e não lhe importam. A única revolução na sua vida foi a emigração. Na sua, e na de muita gente.
O sol já declinou num poente suavíssimo. Mergulhado em emoções contraditórias, se pudesse acrescentar o que por dizer ficou, o viajante estaria de acordo.
Jorge Carvalheira