Arquivo da Categoria: Jorge Carvalheira

Falares de homem

Mas certo é que mata caça quem porfia. O viajante ouviu finalmente uns falares de homem, dobrou uma esquina e entrou nesta ruela, que vai dar a um logradouro sem saída. Entre duas casas de cimento, logo lhe deram os olhos num majestoso alpendre de granito, de vasta escadaria e corrimão de pedra a que faltam pedaços, alguns a escorregar, mal seguros num ferro. No logradouro ao fundo andam três homens ocupados, na verdade com ar de poucos amigos, e um cão que está preso a um arame ladra desaustinado. O viajante hesita, enquanto observa a cantaria espessa e regular, as flores de sabugueiro a espreitar em dois janelões, e a carranca de pedra a sair da parede, uma cabeça de carneiro já gasta e puída. Ainda a hesitar sobe as escadas e encontra duas portas, aqui viveu o juiz de paz, ali foi em tempos a casa da câmara. Isto cogita o viajante, abrindo caminhos à imaginação, enquanto desce, emocionado, sem certezas nenhumas.
– Que tem que fazer aqui?!
A pergunta vem de um dos homens, que avança para o viajante com olhar torvo, e um banco de metal agressivo nas mãos. O viajante, que detesta conflitos, fica desamparado. Observa outra vez o empedrado da rua, levanta as mãos em sinal de rendição, dá mais uma mirada às casas do juiz de paz.
– Quer comprar?!
– Que ideia! Ando apenas a ver estas vidas antigas, julguei que era pública a rua…
E já foi, mas já deixou de ser. O homem fez dela coisa sua, porque tudo o que nela está lhe pertence, menos as casas velhas.
– Você entra por aqui, sem dizer nada… sabe-se lá o que anda pelo mundo, hoje em dia!
Por sorte sua, o viajante nunca desejou ser dono duma rua. E se não tiver a pinta dum celerado vulgar, concorda pelo menos que não basta ver as caras para reconhecer os corações. Não está em terra sua, por isso concilia, harmoniza, pede desculpas da intrusão.
– Não quer beber um copo?
Assim a quente, ainda tomado de brios, o viajante está a pontos de recusar, mas aceita. Porque beber um copo em sociedade é por aqui o mesmo que assinar um tratado de paz. Preferia um copo de vinho, mas acaba a engolir um Ricard espúrio, que uma mulher trouxe lá de cima. Sentou-se, com o anfitrião, no vasto palanquim de cimento que este construiu por cima da estrada, e ambos conversaram finalmente, com o vale da ribeirinha em frente. Nos tempos antigos o homem era jornaleiro, fazia o que calhava, aí no campo. Nunca chegou a trabalhar nas minas, que sempre lhe faltou a terceira classe. Depois andou emigrado em França, a trabalhar nos batimãs, e viveu treze anos num autocarro velho, parado num beco de Champigny. Quando chegou a altura, comprou tudo o que havia nesta rua e reconstruiu a casa onde vive. Faltam-lhe as duas casas velhas, que há desassete anos não têm habitantes. Espera vir a comprá-las, quando os donos baixarem o preço.
– Um dia põe o seu nome na rua!
A sugestão não presta ao homem, que a rua já é dele. Das eleições da Europa pouco ouviu falar, e não lhe importam. A única revolução na sua vida foi a emigração. Na sua, e na de muita gente.
O sol já declinou num poente suavíssimo. Mergulhado em emoções contraditórias, se pudesse acrescentar o que por dizer ficou, o viajante estaria de acordo.

Jorge Carvalheira

Tudo isto são nervos!

O viajante já está de partida quando chega Felisberto, a cavalo numa espécie de lambreta, barulhenta e minúscula.
– Há-de-me ver isto, Fernando! Vejo-me grego para a pôr a trabalhar, passa a vida a tossir!
O nome de Felisberto não lhe condiz com a fachada. É um homem seco, nervoso, com um ar atormentado, e a cortesia dos gestos não disfarça o sobressalto íntimo em que parece tropeçar. Mestre Fernando promete que ainda hoje tira a tosse à lambreta. E o viajante, é ao que anda, vai conversar com Felisberto para a sombra do castanheiro.
O homem não esconde a vontade de falar das suas vidas, pouco terá ocasião de o fazer. Ora o viajante, médico não sendo, sabe da própria experiência o poder milagroso das palavras, mormente se outro remédio não houver. Há anos está Felisberto reformado da polícia, e agora vive aqui na aldeia. Sempre é ambiente mais favorável ao seu génio sobressaltado.
– Tudo isto são nervos! – resume Felisberto, que pouco mais sabe explanar dos seus padecimentos. Embora saiba muito bem que tudo ficou assim desde as guerras de Angola. Um dia, em 70, acabado de chegar a Luanda, meteram-no com mais dois colegas num avião que os deixou em Serpa Pinto. De lá seguiu numa coluna militar para o Longa, e depois para o Cuíto, atravessaram o Kuando-Kubango e ao cabo de dois dias chegaram a Mavinga. Luanda ficara a dois mil quilómetros, e isso pouco era, comparado com a distância a que deixara a mulher e um filho, em Alcabideche, do outro lado do mar via-se a Trafaria. Mas o guarda Felisberto não se quedou por aqui, o seu destino final era mais longe. E ainda faltava outro tanto de viagem, até ao posto policial e fiscal do Rivungo, na fronteira da Zâmbia. Era lá que o império precisava dele, para enquadrar as milícias dos quimbos, e para controlar as populações de que o império era feito.
O viajante não entende muito bem o que isto quer dizer, não sabe como se enquadram milícias, nem imagina como é que estes três homens vão controlar as populações dum império. As palavras são de Felisberto, o viajante limitou-se a ouvi-las e a guardá-las na memória. Ali viviam os três guardas num barracão de adobe e telhado de zinco, perdidos num mar de capim, quando iam ao rio espreitar os jacarés levavam em bandoleira a Mauser de repetição, que era tudo o que tinham por companhia. De horas em quando vinha uma coluna e deixava latas de salsichas, uns fardos de arroz e sacos de farinha, de que eles faziam pão numa fornalha de barro.
Felisberto não era nada feliz naquele mar de areias verdes onde a vista se perdia, mas aguentou sete meses. Até que o apanhou um ataque fatal de paludismo, mesmo ruim, e uma paralisia facial que o deixou de cara à banda. O viajante não compreende como é que o paludismo e a paralisia se juntaram assim, mas Felisberto também não sabe explicar. Lá foi um dia evacuado para Serpa Pinto, numa passarola de quatro asas que aterrou na picada. Daí apanhou uma camioneta para Nova Lisboa, e depois outra para Luanda, onde acabou por chegar ao fim duma eternidade e com menos de cinquenta quilos de peso. Ficou assim mais perto do filho e da mulher, mas ainda havia de tardar a vê-los, que lhe faltava um ano e tal de comissão, na 7ª esquadra de Luanda. Gastou-o ele entre idas ao médico e transportes de presos para a Damba, um presídio de pretos lá nos confins do Norte. E foi assim que Felisberto conheceu meio mundo, e viu coisas com que nunca sonhou, e se fartou de viajar à custa do império. Quando voltou foi parar à Quinta do Pisão, a um centro de apoio social da Misericórdia de Cascais. Ficou por lá uns anos, em serviços de enfermaria, e só não aguentou mais porque já nada era igual. Nem a vida com a mulher e o filho voltaram a ser a mesma coisa.
Ao viajante, que se limita a observar enquanto vai ouvindo, Felisberto faz lembrar um barco que perdeu o lastro. Sendo dum país de marinheiros, cabia-lhe andar por mares e sertões, isso o viajante não discute. Mas a um marujo assim não convirá expor-se a virações, nem aventurar-se em águas fundas. Bem a propósito, o viajante quer saber o que pensa ele da barragem que ali fizeram em frente.
– São uns ladrões que só pensam no dia de hoje! E o futuro ninguém o sabe! Se um dia o povo precisar de matar a fome outra vez, o melhor é afogar-se!
Nalgum lugar encontrou Felisberto esta sabedoria. O viajante não está seguro de que tenha sido nos caminhos do império, onde deixou ficar o lastro.

Jorge Carvalheira

Postais ilustrados

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Na biblioteca da terra vou à procura de sossego. Dum acesso à internet para falar com o mundo. Duma trégua da canícula.
Lombadas indolentes ressonam nas estantes. Adolescentes amotinam-se em guerras virtuais. Três funcionárias põem a vida em dia, à volta do balcão das entradas. Chegam mais duas a trazer novidades, picando o salto agulha no parquet flutuante. Um bebé rasteja no soalho, a perseguir uma bola. E num ecrã de parede o Roberto Leal lacrimeja paixões.
Eu chego a ensaiar um contra-ataque, mas acabo a bater em retirada. Antes a velha canícula. Antes mandar ao mundo uns postais ilustrados.

Jorge Carvalheira

Que falta faço eu?

Ao viajante cerca-o a aflição deste largo, que é mais que a solidão, é mais que o abandono. Mas bem graves hão-de ser as aflições deste padeiro, que acaba de chegar numa carrinha. O alarido da buzina foi crescendo rua fora até chegar ao largo, parecia alguém aflito por tirar o pai da forca, e era apenas ele a chamar as freguesas. Vieram cinco, por junto, e só se calaram as trombetas quando apareceu a primeira. Vem da Prova, o padeiro, duas vezes por semana. Faz o seu giro aí pelas aldeias, como o carro da fruta, o da carne, o do peixe congelado. Meteu-se no negócio quando voltou de Moçambique, há muitos anos, alguma coisa havia de fazer. E bem podia encher meio mundo de pão, não fora o mercado fraco e tanta a concorrência. Outros vêm, doutros lados, que não dividem territórios. Fazem as mesmas rotas, os dias é que alternam.
O viajante queria ouvir o homem sobre as passadas vidas africanas, lá tem as suas razões. Se era dono de machambas, ou cantineiro do mato, ou funcionário de alguma açucareira. Ou mesmo chefe dum posto qualquer. Nunca se sabe quando ficou lá para trás, enterrada na areia, uma garrafa de diamantes, como já temos visto. Mas o mestre vende pão e já partiu, que este serviço está feito e o resto falta fazer.
Ao contrário do que atrás prometeu, o viajante não voltará à rua de alcatrão. Segue até ao fundo do largo, donde parte uma avenida 25 de Abril. E o promissor topónimo, se já foi bandeira de tantas esperanças, apenas vem aqui alvoroçar contradições ao viajante. Entre as muitas alegrias que nasceram, e este desconforto que ficou. Mas em boa hora tomou tal decisão, que há-de encontrar no caminho quem lhe vai salvar o ânimo. É a dona Celeste que ali está, passada a primeira esquina, sentada a ler num banquito, à sombra da parede. Veio dar um sol às pernas, cansadas de tantas lidas que já não querem andar.
A dona Celeste põe o viajante a remorder invejas, por mais que uma razão. Está a ler um livrito das suas devoções e não precisa de óculos, embora leve já na conta os seus noventa e um anos. Além disso traz no rosto a maior serenidade que o viajante já viu, e oferece-lhe o ar mais manso que ele podia encontrar. O viajante, que a vida tornou céptico, olha para esta figura e fica sem saber o que fará do cepticismo. Diz ela que mora ali ao lado, na casa duma filha, embora tenha casa sua, muito perto. Mas não pode lá viver, porque a vida não é sempre o que esperamos dela.
Não nasceu nesta aldeia, criou-se na terra quente. Veio para cá trabalhar numa casa de comércio, com pouco mais de vinte anos. E quando o patrão morreu, que já era bem velho, os herdeiros viviam na cidade e entregaram-lhe o governo da casa. Eram as vendas do comércio, e as rendas de muitas terras, e a lã de vários rebanhos quando chegava a tosquia, e as vitelas que os pobres aí criavam à razão de meio-ganho.
Havia então um rapaz que ficara lá na aldeia e andava a requestá-la. Chamava-se ele Albino, e não viam outra coisa aqueles olhos. Mas ela ainda não estava decidida, o que mais a ocupava era a carga dos trabalhos e as obrigações que tinha. Ou talvez gostasse doutro, não sabe explicar bem, ele tinha-se ido à África e ainda lhe mandou cartas que vinham de Benguela. Mas breve pararam elas, porque apanhou uma febre e lá morreu.
Com uma tristeza assim, mais parado ficou à dona Celeste o coração. E foi no meio de tal indecisão que apareceu um rapazola, irmão do falecido, que andara em Matosinhos a servir de marçano. Deu-lhe pena o desamparo do rapaz. O Albino bem mandou dizer que dava cabo da vida se não casasse com ela. Mas quem é que ia levar a sério uma palavra assim?
O viajante está encantado a ouvir esta conversa, já se esqueceu dos conflitos que trazia. Senta-se numa pedra e nem desvia os olhos da figura.
Quando a vida do comércio acabou, os senhores que estavam na cidade mudaram-na de casa e fizeram-na feitora. Era a casa mais mimosa da terra, chamavam-lhe o paraíso. E foi então que aceitou o casamento, por causa da lida das terras, com o tal irmão do falecido em Benguela. No mesmo dia da boda, lá na terra onde ficara, foram dar com o Albino afogado num poço.
A vida da dona Celeste tem sido bem prolongada, mas não foi o que podia, nem o que merecia ser. Quem se quer fazer não pode, quem o é já nasce feito, como ela explica, serena. Criou os seus cinco filhos, que não se cansa de encomendar a Deus, e lá fizeram da vida o que souberam. Muitas vezes sente pena das sem-razões antigas de tanto mau viver, e das aflições em que eles se criaram. Mas o seu homem era assim, foi sempre um destemperado, um algoz ensoberbado que não chegou a crescer.
– Eu levei a cruz ao meu calvário, que sempre quis viver de coração lavado. Até que um dia, com oitenta e oito anos, tive que fugir à frente dele para escapar às bengaladas, com este braço partido e o sangue a cair no chão. Foi Deus que me arranjou forças para me arrastar até à minha filha.
A dona Celeste diz estas coisas terríveis como se não fossem suas. Tem nos olhos a mansidão tranquila de quem já fez pelo mundo o que tinha a fazer. Não venha ele a salvar-se, não estará nela a culpa. E agora só está à espera que Deus se lembre dela, e um dia a venha buscar. Ao viajante vem-lhe à cabeça um turbilhão de pensamentos, nem sabe bem o que fazer com eles. Alguma coisa o prende aqui, será porque está perto um paraíso. Mas decide ir-se embora, que veio à procura de conversa e acabou silenciado.
– Não tenha pressa de partir, não sabe a falta que faz!
– Que falta faço eu?!

Jorge Carvalheira

Pegos floridos

Nunca soube por que lhe chamavam Zé Maneto, se nada lhe faltava no corpo. Além do vinho, que desse andava sempre precisado. Aparecia lá em casa nos serões de inverno, quando acabava de cear. Pedia um copo, bebia dois ou três, aconchegava as pernas à lareira. E punha-se a desfiar enigmas e charadas, que ia inventar não sei onde. Seria a força do vinho, o alma do diabo!
Uma ocasião havia um franganote, que andava a namorar a filha do moleiro. Ia bem, o namoro. A um lado concordavam os pais, a outro tinha ela um riso transparente que endoidava a cabeça, e uns olhos de água que assim devia ser o mar. O mar eu nunca o tinha visto, não sabia o que era uma cabeça doida, e ficava-me para trás, a imaginar um riso transparente. Ele já lá ia adiante.
Um dia foi-se a ver a namorada, passou a tarde a ajudá-la na horta, a regar o linhal. E foi ao morrer da tarde que lhe deixou cair a escusada pergunta, quando é que hei-de cá tornar a ver-te. E ela, feiticeira, tornarás quando os pegos estiverem floridos, e os moirões já estiverem caídos, e quando os mortos forem enterrando os vivos, então cá tornarás. Disse isto e recolheu a casa, que a mãe a reclamava.
O mequetrefe passou toda a noite em contendas, a cabeça num badanal. Mas chegara atrasado à feira de Deus, o pobre. E não sabendo atinar com a hora da moleira, nunca mais lá voltou.
Passaram anos em que ele andou por longe, foi-se à cidade, fez vida. E na vida há sempre um dia, basta darmos tempo ao tempo. Nesse dia foi ele à festa da Senhora da Saúde, e encontrou-a a sair da capela, tinha acabado o sermão. Quando ela o viu, cerrou a catadura. – Desapareceres assim, nunca mais lá tornares, acabei por casar e fui viver para Sequeiros. – Hoje encontro-me viúva, tenho filhos por aí, já homens feitos, nunca mais lá tornaste… E os olhos a fugirem, perturbados. – Nunca atinei com a hora de voltar, ainda hoje a não sei, tornarás quando os pegos estiverem floridos, e agora me dirás que hora era a tua.
E ela, ainda bonitona, no rosto uma rosa a abrir. – Florescem os pegos todos, à hora em que dá neles o lume das estrelas; caídos estão os moirões quando os pais já não vigilam; e os mortos enterram os vivos, quando só sobrarem cinzas num fogo que se apagou. – Toda a noite esperei por ti, só a alta madrugada me venceu.
Bebia o último copo. – Para alumiar o caminho! – galhofava o Zé Maneto, que o sabia já de cor.

Jorge Carvalheira

Pai dos pobres

O Felisberto já desvendou o seu crime e já se despediu do viajante. Este fica sozinho, pensativo, e não encontra a ponta deste novelo, por mais que se interrogue. Por sua própria experiência sabe ser a ignorância a mais escura das noites. Mas fica sempre pasmado, diante da escuridão. Sobretudo se já não há milagre que lhe possa valer.
Deixa os pombais para trás e já lá vai, ao longo do paredão do cemitério, e decide fazer-lhe uma visita. A um lado porque um cemitério é um espelho do mundo, e a outro porque vai à procura de sinais dum homem corajoso, de quem ouviu falar. O cemitério é obra asseada, tem aspecto cuidado e dimensão apropriada. Logo nele avultam três jazigos a chamar a atenção, mas antes quer o viajante descobrir a campa do padre Júlio de Moreira, que aqui foi sepultado. Vai andando devagar, entre lápides de gosto duvidoso, e neste particular conclui que já tem visto pior. Porém, como noutros lugares, quanto mais recentes são as sepulturas, mais estapafúrdios são os arrebiques e mais surpreendente o bricabraque. Por razões que só eles saberão, decidiram os vivos obrigar os defuntos a tomar parte nestes festins de mau gosto bacoco.
Mas já o viajante encontra o que procura. Encostados a uma campa recente que lhe tomou o lugar, lá estão os restos da lápide funerária do padre Júlio, uma cruz celta e um livro de pedra que ali deixaram aberto, e nunca ninguém fechou. Antigamente havia símbolos na morte, havia um pensamento ritual, uma coluna quebrada, um anjo de asa caída. Agora há só alindamentos, enfeites de arraial, um dia em breve serão formas vazias, entulho cultural.
O homem era de Almendra. E logo que se fez padre veio parar a esta freguesia, estava a chegar aí o século XX. O padre Júlio jurara, de boa fé, o celibato dos cânones. Mas quando aqui encontrou a Carmina, teve mais força a vida que as papeladas dela. A voz comum acabou por estranhar tão chegada mancebia. E bem fez o padre orelha mouca aos ditos, mas o bispo exilou-o para Moreira de Rei, por trás daqueles montes. Foi então a vez de Carmina pôr os pés ao caminho. Era inverno, a chegar a primavera, e ela lá vai, ladeira abaixo, por entre as eiras da Varela, passa a ponte velha sobre a Teja, faz uma vénia contrita ao santo que além está na capela, um São Sebastião debaixo duns negrilhos, sobe os cerros do Montrangão, atravessa a charneca das Terras Grandes, e senta-se a descansar no alto de Moreira, abrigada à capela do mesmo santo que outra vez ali a está esperando, à entrada do povo. Carmina dá tempo que chegue o fim da tarde, para dar menos nas vistas.
Outra vez o bispo investe contra a mundaneidade, e outra vez resistem Carmina e padre Júlio, ninguém sabe agora dizer qual deles com mais vigor. O bispo suspende o pastor, tira-lhe o priorado, agita uma interdição. Carmina responde mudando-se para Moreira, e se este bispo fosse uma vez ao jardim do paraíso, já ficava a saber que nada tem mais força que uma boa paixão. No fim o bispo recuou. E Moreira, que já tinha tido um rei vencido, ganhou agora dois vitoriosos, e uma família nova.
A bem dizer o viajante não se agrada de fariseus fraldisqueiros, mas o padre Júlio era um homem justo. Percebeu a grandíssima distância que vai de Cristo à igreja que dele dizem. E, tendo que escolher, não hesitou. Entregava as pistolas ao sacristão antes de entrar para a missa. Mas cá fora era republicano, apoiava Afonso Costa, e defendia, ó deuses, as leis de separação entre a igreja e o estado, contra o cego furor da clerezia. Num dia de invernia entrou, para se aquecer, numa cozinha do povo. A dona da casa bem que lhe dava uma chouriça assada, era o melhor que tinha. Mas era dia de abstinência e ela não pagara as bulas. O padre tirou uma bula do bolso, embrulhou nela a chouriça, assou-a no borralho e todos a comeram, com grande satisfação e muito maior proveito.
– Adeus, ó pai dos pobres! – chorava o povo de Moreira, quando o padre morreu. O viajante pensa que não se pode levar prenda melhor, depois de morto.

Jorge Carvalheira

Portugal profundo – 3

Na estrada, a tabuleta anuncia o Solar dos Brasis, na aldeia chamam-lhe a Casa das Fidalgas. Não sei quem tem razão. Eu fui lá muitas vezes, atraído pela gala das talhas, pela febre das cores a gritar nas madeiras, e a simetria misteriosa das janelas, a fingir horizontes pintados nas paredes. E acabei feito pagão, perdido de amores por uma pujante madona de terracota, que escondia promessas carnais num manto azul a esvoaçar. Cheguei a congeminar o plano caviloso de raptar a madona numa noite de inverno.
Nesse tempo era vivo o Gastão, um caseiro que habitava os anexos e olhava pelo conjunto. Fazia bonecos de madeira a canivete, e flautas de cana que vendia aos passantes. Era naquilo tudo a única coisa viva, e queixava-se do IPPAR, e das águas no telhado, dos roubos das imagens e da segurança escassa. Levava-me às palmeiras do passal, à mãe-de-água de pedra à beira do ribeiro, numas terras que o fidalgo arrematou, à vinda do Brasil. Tinham sido confiscadas a um marrano qualquer, pela Santa Inquisição. Subíamos depois ao belvedere e mostrava-me o salão de honra, nos altos do torreão. Pendiam do tecto caixotões de santos, a ameaçar ruína, alguns a desabar por causa das humidades. Finalmente levava-me à capela, onde a santa, à minha frente, se desfraldava num pedestal.
Depois contava-me a história. Que D. Luís se foi ao Brasil, ao ouro, no tempo dele. Que era capitão da Armada Real, e provedor dos quintos de el-rei, em Vila Rica de Ouro Preto, nas minas de Sabará.
– O muito e o pouco passava-lhe pela mão! Era de el-rei, mas quem parte e reparte… – sugeria o Gastão, sem avançar.
D. Luís tinha em casa uma escrava da Mina, por quem se apaixonou. E trazia, no regresso a Lisboa, a mulatinha Angélica, que vemos nestes quadros. “Mercê que fez Nossa Senhora, no Instituidor, vendo-se em perigo de morte no sertão do Brasil, em jornada de 900 léguas às Minas do Ouro.” E lá estava um dragão pintalgado, a soprar fogo ao fidalgo em terror. “Milagre que fez Nosso Senhor … no mar da Bahia…”. E era um barco a adornar, a vela já perdida, o fidalgo no convés a amparar a mulatinha.
D. Luís era de Santa Marta de Penaguião. E, ao ver-se em aflição, prometeu erguer à Senhora da Penha esta capela. Ao lado do solar, e dum convento franciscano que não chegou a existir. “Onde o meu cavalo parar, aí o santuário hei-de levantar.” O cavalo é que escolheu este lugar, concluía o Gastão. E mostrava-me, num livro dum letrado, que o fidalgo tomara ordens sacras ao fazer sessenta anos, que a mulatinha morreu sem descendência no ano em que assaltaram a Bastilha, e que o Solar dos Brasis é um testemunho da boa aplicação em Portugal do ouro de Sabará. Eu sempre vi neste solar um túmulo, entre muitos, onde embalsamaram Portugal. Mas nunca cheguei a dizê-lo ao Gastão.
Não sei se os caixotões acabaram por cair, nem se a madona continua lá, a esvoaçar no pedestal. Quando há dias voltei ao Solar dos Brasis, o Gastão tinha acabado de morrer. E o IPPAR pôs um telhado novo ao torreão, e trancou as portas e as janelas com grades de ferro chumbadas na ombreira. Fica-me a pena de não ter assaltado a madona, numa noite de inverno. Mas ainda bem que o Gastão foi embora, sem saber a verdade.

Jorge Carvalheira

Portugal profundo – 1 (encore)

Alguma ingenuidade impediu-me de prever um manual explicativo ao texto anterior, em forma de relatório burocrático. São formas que dizem muito menos, sobre qualquer assunto, como geralmente é sabido. Mas são mais explicadinhas, dão menos trabalho a ler. E assim servirão melhor às zonas mais sensíveis da respeitável caixa de comentários.
Toda a gente sabe que o país é uma aranha. Tem um rotundo ventre centrado na capital e as patas nas auto-estradas. E uma Casa da Música fazia falta ao Porto, tanto como o pão da boca. O Porto ia a concertos ao Coliseu, à sua Traviata, nos intervalos dum circo ou de espectáculos avulsos, sem desprimor. Há muitos anos que a cidade já merecia outra coisa, abençoada Casa.
É ela um meteoro vanguardista, e não peca por isso. Embora fique a suspeita de ter havido ali um sacrifício à forma, mais que à função. Caiu ali e provocou em volta ondas de choque, que as rugas no terreno atestam. São de mármore travertino, os ondulados. Vieram da Jordânia e são perfeitos.
A estrutura é de betão pigmentado, apto a assumir a patine mais adequada, quando os anos passarem. E de alumínio e vidro. Tem lá dentro um quilómetro de escadarias e um mundo inteiro de arrojos tecnológicos, que nos escapam à imaginação. Na construção e na acústica. O coração do conjunto é a Sala Guilhermina Suggia, cuja acústica (a da sala) já se coloca entre as melhores do mundo. Atentos, nas paredes, enquanto nós estamos ali refastelados, há componentes específicos de madeira que se ocupam de modular-nos os graves, os médios e os agudos. Os painéis das paredes têm revestimentos a folha de ouro, a sugerir os veios da madeira. E melómanos há que já levaram para casa um ourito raspado na unha do mindinho. Os veios de ouro estão ali a sugerir-nos o período barroco, o tempo dos desvarios dum rei que nos coube em sorte. Ou nossos, não sei bem, que isso não foi explicado.
A Sala, cobrindo a orquestra, dispõe duma canópia em PVC, que pesa quatro toneladas. É única no mundo (outras pesarão quarenta) e move-se a impulsos dum computador. Na parede da direita ressalta a caixa barroca dum órgão de tubos, a fazer lembrar uma nave de Mafra. Na da esquerda está a caixa doutro órgão de tubos, mais tardio. Chamaram-lhe romântico e não faz lembrar nada. As caixas sobressaem ali, nos seus volumes, por enquanto silenciosas, por estarem vazias. Não tem havido verbas para lhes meter lá dentro a maquinaria que lhes é própria. Mas esta capela imperfeita não nos interessa muito, que basta adaptar-lhe o reportório.
A nascente e a poente há janelões de vidro a receber a luz. É um vidro grossíssimo, ondulado, por causa da refracção, e forma dupla parede, para obviar aos gritos das ambulâncias. Os planos do vidro, com doze metros de comprido, vieram duma fundição de Barcelona. E os janelões têm cortinas acústicas para fechar, para dosear, ou para velar a luz. A Sala dispõe de 1238 lugares, em tudo equivalentes, além de um vasto coro nas costas da orquestra, que pode ser ocupado segundo as necessidades. E bem assim dois camarotes laterais, que parecem reservados a VIP’s e não o são.
Além deste auditório há um segundo, mais pequeno, que é menos bafejado pela tecnologia e não provoca sobressaltos. O resto, dentro da Casa, para lá do administrativo indispensável, são aproveitamentos acessórios, que têm o seu papel: câmaras de trabalho e ensaio de artistas, um atelier de criação musical infantil computorizada, um outro de workshops juvenis, e um espaço de baby-sitting, com acesso auditivo opcional aos espectáculos.
Por ser o município mais destratado pela dita síndrome da aranha capital, e por jogar no todo do país uma função maior, o Porto precisava duma Casa da Música. E o meteoro realmente embasbaca. Mas tem o seu senão. A um lado, quando quiserem voltar à Traviata, ou aguardam os portuenses a saída dos leões e voltam ao Coliseu, ou mandam o chauffeur rumar a outras paragens. Porque a Casa da Música é um concert hall, uma Philharmonie de gente rica. E o conceito não prevê fosso de orquestra, nem os equipamentos requeridos por recitais operáticos. Embora a meio caminho, não perderam tudo, os portuenses. Já podem assistir como gente à 9ª de Beethoven, sem pedir contenção à vizinhança. Porém, à fortuna que se enterrou ali, de impostos de quem os paga, merecia esta cidade melhor sorte.
E falta o último lado, ao janelão poente. Ali ao pé já se escavam os caboucos duma sede bancária, com 50 metros de altura. Vai comer ao meteoro metade do fulgor arquitectónico. Há gente, mesmo assim, de olhos em bico, inchada de contente. Eu comungo do seu contentamento, na suspeita de que não temos remissão.

Jorge Carvalheira

Portugal profundo – 2

Vais-me dizer que eu inventei a história. Que eu sou um cínico e a história é impossível. Andas muito longe da verdade.
O padre Abreu não é padre, nunca chegou a sê-lo. Não tem cabeça para teologias, e as latinadas cansam-no. Mas veste-se à futrica, como os padres modernos, e sempre que pode exercita a função. Mora aqui na cidade. E o povo, que não separa o facto do direito, chama-lhe padre Abreu. Terá razão, que o padre Abreu não sonha com outra coisa, passa a vida na sé. Ajuda à missa, cuida da liturgia, aconselha as devotas e decora os responsos. Já perdoou pecados capitais, e há gente que entrou no céu por sua mão.
Há tempos havia que enterrar um cristão numa aldeia, dessas despovoadas, onde nem padres vão. E o padre Abreu lá foi, a encomendar o defunto, a fazer-lhe o funeral. Mas os parentes vieram a saber que o padre Abreu nunca tomara ordens, e temeram o pior. Puseram-lhe uma demanda em tribunal.
O padre Abreu sentou no banco dos réus a gravidade e a mansidão dum sócio do Vaticano. Alegou em defesa o serviço de Deus e afiançou as encomendações.
– Pois faça aí o responsório dum defunto! – ordenou o juiz, a esfolhear os códigos. – Já veremos se merece remissão!
Não pedia outra coisa, o padre Abreu. O meretíssimo chegou ao fim apaziguado, como quem deixa um amigo em boas mãos. E absolveu o réu.

Jorge Carvalheira

Portugal profundo – 1

Quem vai ao Porto vem do sul. Chega à margem do rio e dá com o Porto do outro lado, húmido e escuro, como as pedras antigas. A cair devagar pelas escarpas. Fizeram-no assim para durar muito, como os casacos velhos. Já não agasalham grande coisa, mas ainda servem.
Um poeta chamou-lhe o arrabalde de si mesmo, e quem o fez assim nunca mais olhou para ele, até chegar, em 2001, a Capital da Cultura. Algumas ruas ficaram transitáveis.
O Porto é o retrato mais inteiro que se pode fazer de todos nós. Cabemos todos lá. É o país integral, tirando os arrebiques. Ao pé dele um Rossio qualquer, um largo em Santarém, uma Albufeira de cimento, são curiosidades modernas.
Como imagem dum país de equívocos ou mitos, o Porto junta aos mitos os equívocos. O vinho, que é da casa, vem todo do Pinhão. Ufana-se de ser a terra do trabalho, quando apenas esbraceja a ver se mata a fome. Quando começa o verão solta no ar balões de mecha a arder, para ilustrar o S. João e incendiar pinhais. A cidade mais paroquial do hemisfério, onde o Mozart é muito conhecido porque já jogou nos lampiões, exercita o efémero em Serralves, vai a concertos minimais no Rivoli. E mandou fazer uma Casa da Música, multiplicando por três os prazos de entrega, e por seis o orçamento. Ficou com um vistoso meteoro, onde alternam lanços de escadaria com firmamentos vazios.
A zona histórica do Porto foi, há dez anos, património mundial. E agora, por já não ser português, desaba o património nas escarpas. O resto da cidade antiga é um campo devoluto, a apodrecer aos poucos, entre cheiros a mofo e a óleos de cozinha requentados.
Toda a beleza concentrada do Porto não enche um pátio de Évora. O lugar mais nobre da cidade, que são os Aliados, faz de largo das camionetas. A roncar, ao ralenti, à espera do horário da tabela.
Se os portugueses todos fizessem Portugal, punham sotaque do Porto, o único com marca na ourela. Levantavam-se cedo e iam a Lisboa, tirar a capital da cama. Assim, nem o rio mais homem deste mundo resiste a esta cidade. Quando lá chega encolhe-se, mete o rabo entre as pernas, e safa-se para o mar. Como ribeira qualquer do sexo fraco.

Jorge Carvalheira

Neo-realismo

Um grande mar foi o que deixou na campina a chuva de quarenta dias e quarenta noites.
As vinhas morreram afogadas no lodo.
Os ratos e os bois estrebucharam na torrente, e lá foram.
Os homens ficaram torcendo as mãos, desamparados.
Melhor fizeram os galos e os pardais, que assaltaram a ventana do campanário.

Jorge Carvalheira

As mortes da bezerra

É o que sucede a quem se põe a viajar, dobra-se uma esquina e logo nos dão os olhos numa surpresa nova. Ora este viajante é imaginativo, quando não fantasista, conforme já se viu. Mas a tanto não se atrevia a sua imaginação. Pois o que está agora a ver, depois que passou a ponte da ribeirinha e se despediu de Palhais, é um avião a jacto em carne e osso. Estacionou ali ao cimo da colina, num descampado. E embora mostre um ar afoito e destemido, capaz de engolir o vale inteiro, não parece ter alento para voltar às alturas.

O viajante reconhece-o logo e fica em grande sobressalto. Pára o carro à beira da estrada, sobe uma parede e corre para ele. Se alguém o vir de longe, o senhor Máximo do seu alpendre, vai dizer que este viajante é um tolinho. Porque se põe a andar à roda do avião, a passar-lhe a mão afectuosa pelo nariz, pelo bordo quente da asa, pelo fio dos lemes da cauda, pelos flancos redondos da barriga. Mete a cabeça na boca do motor e no escape da turbina, à procura de imagens e de cheiros antigos, quem o vir de longe não sabe que o viajante tem lágrimas nos olhos, porque lhe acordaram de súbito no peito emoções que viveu, e viu viver, num tempo tão antigo, e tão presente, e tão contraditório, parece mentira que tenha havido um tempo assim.

E no entanto houve. Que o diga este soldado, que se chama Pessoa, e mais lhe valera não o ser, antes um bicho qualquer. Está dentro deste avião, amarrado no minúsculo habitáculo, e já vai à procura dum quartel que está em desespero nos confins do sertão. Veio ao rádio aos gritos, a pedir um apoio de fogo, por ser o fogo tanto à sua volta. Lá vai ele no ar, e já sente na cauda uma explosão violenta, já o motor se lhe apagou, e já o duro pégaso de ferro recusa obedecer aos seus comandos. Este soldado que se chama Pessoa nunca teve na mão uma máquina tão perfeita como este motor. Mas nem ele responde ao arranque de emergência, e são os pântanos da margem do Cacine que se aproximam vertiginosamente. Procura ainda a direcção do quartel, aonde veio como um fogo protector, agora é ele quem vai precisar de protecção. Arranca a duas mãos o manípulo de ejecção, mal se dá conta e já está cá fora, atirado ao vento, nem lhe dão tempo de ver onde cair porque já se vai rasgando numas árvores, a altitude é tão baixa que nem o pára-quedas teve tempo de abrir. Passará esta noite escondido no mato, o corpo sangrado em farrapos, e amanhã há-de encontrá-lo vivo um grupo de caçadores-pára-quedistas. E muita sorte teve, que foi só o primeiro e escapou. Nos próximos quinze dias, cinco aviões vão desaparecer dos sertões deste império, levados por um fogo misterioso. E quando vierem os caçadores-pára-quedistas não acharão lá dentro ninguém vivo.

O viajante senta-se numa pedra, amparada a cabeça em dois punhos. Quem o vir de longe vai dizer que é um tolinho, ali sentado à torreira do sol, amargurado e solitário. Mas o viajante não leva a mal. Há pesadelos que só pode entender quem os viveu, e ele muito suspeita de que este povo é, há séculos, um rebanho tresmalhado. A dona Ermelinda numa padaria de S. Paulo, o senhor Máximo e a mulher numa fábrica de borrachas de Lyon, o soldado Pessoa a despenhar-se num sertão do império, e o senhor Albino a lavrar as suas terras miúdas, no vale da ribeirinha, sem saber o que fazer à vida. Enquanto andar cada um afogado na sua procela pessoal, não haverá para eles tempestades colectivas. E o viajante, que se apercebe disso, não é capaz de afastar os olhos do vulto deste avião, nem de arrancar da memória um milhão de portugueses, que durante um ror de anos deu o tempo melhor da sua vida, ou a melhor parte do seu corpo, como neste caso do soldado Pessoa, para alimentar epopeias de fumo. Dez mil deram o corpo e o tempo inteiros, que era tudo o que tinham, para os sátrapas que mandavam no país terem tempo de fazer as exéquias dum império de brumas. E nenhum tempo lhes foi suficiente.

Tenha embora a questão importância primeira, não pode o viajante ficar aqui a vida toda, a pensar numa bezerra que está morta. Por isso vai regressando ao carro, que a esta hora é um forno. A ribeirinha já fugiu para a direita, conforme ficou dito, e o viajante está parado ao fundo do vale. Ia agora mesmo voltar-se para trás, para a última mirada, de que fala o manual dos viajantes. Mas este não quer fazê-lo, tem medo de que lhe fiquem lá os olhos. E vai precisar deles, que já em frente se alargam as charnecas da quinta do Ferro, a reclamar atenção.

Jorge Carvalheira

Migrantes

Antigamente viviam na província. Em Almendra, no Mazouco, em Freixo-de-Espada-à-Cinta. Onde batia o sol numa encosta, onde houvesse um pombal num outeiro. Desenhavam vertigens pelo céu, e catavam sementes no restolho, e bichos nas aradas.
Hoje habitam as praças da cidade, que acharam devolutas. E logradouros que os arquitectos riscam, quando encerram os projectos à pressa. Nos Poveiros já cobriram o sol. Na Batalha espanejam-se nos fios, e ameaçam de gripe os transeuntes.
As viúvas de coração instável são-lhes a divina providência. O seu maná é o pão que restou da semana e uns saquitos de milho. Um poeta chamou-lhes parasitas.
A fama deste estado social já chegou ao mar alto e atraiu as gaivotas. Ralham-me toda a tarde no telhado, cortejam-se ao serão, e andam num rodopio o dia todo, a engordar a criação.
Não sei que hei-de fazer. Ou entrar nos mercados de armamento, ou voltar à choupana em Carrazeda.

Jorge Carvalheira

Bestas de apocalipse

O viajante ouve dizer que o fogo começou na Póvoa e já comeu metade da serra do Feital. Ouvem-se roncar uns aviões por trás dos cerros das Terras Grandes, andam a combater o incêndio, mas o fumo já se espalhou no céu inteiro. E ele está tão descrente destes combates perdidos, e tão descoroçoado do calor, que nem quer ouvir falar do fogo. Mergulha na sombra do café, decidido a não voltar à rua enquanto o pior não passar. Matou a sede, aproveitou para almoçar, e só depois da partida dos barulhentos pedreiros é que voltou a si. O hospedeiro, um homem de bigodes e de poucas palavras, anda azafamado atrás do seu balcão. O viajante quer pagar a conta.
– Arderam quando, as Terras Grandes?
O homem dos bigodes encara o viajante e fica a concentrar-se na memória. Levanta a mão como quem vai responder, mas finalmente abre uma gaveta e pesca lá de dentro um livreco sebento. Descobre nele uma página e estende-a à frente do viajante.
– Está tudo aqui! O senhor sabe ler?
O viajante, que esperava tudo menos esta resposta, fica encantado com a oferta e volta a sentar-se à mesa. O que tem à sua frente é uma crónica do incêndio, num velho almanaque regional.
«A primeira vez terá sido por culpa dum brasileiro, duma terra qualquer. Ninguém o conhecia, nem soube dar notícia dele, mas a voz correu à solta. O homem chegou aí comido de saudades, peregrinou por terras e caminhos, e acabou um dia a assar sardinhas à beira do giestal, ali nos outeiros da quinta do Forcas. Era o dia 20 de Setembro de 1982 e a tarde estava soalheira. Mas à hora a que o vento se levantou do sul e se pôs a trotar sobre o espinhaço dos montes, o inepto cozinheiro imaginou-se nas vastidões do Mato Grosso e perdeu a mão às labaredas, ateadas ali no meio da rodeira.
«No que restou do dia, e durante a noite inteira, viveu-se uma hecatombe. Os montes estavam saturados de carga térmica, se não é mais adequado dizer que estavam cobertos de arbustos e ramagens, de troncos abatidos e matorral sequíssimo, o desleixo e o abandono já por então faziam norma. Ora tudo isso ardia como paus de fósforo, era o final do verão.
«O fogo correu altíssimo pelos giestais das Poisadas e os matos de Castaíde, entrou a galopar nos morros da quinta dos Cavalos e nos pinheirais de Golfar, atacou, era já noite, os carvalhais do Zaragata e da quinta do Boco, sitiou bocas de minas e valadões do volfrâmio nos cerros do Montrangão, varreu restolhos velhos na Perqueixada e restos de matas no Vale Ferreiro, lambeu pela madrugada os junçais do Safrial e da Laja da Seara, abrasou num ai os pinheirais dos Crespos, galgou o ribeiro das Águas-Vivas e avançou para a Sobreposta, e só veio a morrer no final da manhã, aos pés do castro de Casteição, porque o malvado vento quis descansar.
«Cegas de pânico, as lebres tropeçavam nos lagartos azuis que abriam bocas desesperadas e fugiam alucinados pelas rodeiras do Ribeiro de Pau. E os corvos, num voo sem norte, largavam pragas pelo céu negro, ao chocar em carvões incandescentes, por entre a poalha de fuligens que lhes queimava as asas e os forçava a cerrar os olhos.Os caminhos estavam cheios do silvar agudo das cobras, ouvia-se a lamúria dos ratos do campo que protestavam contra a insânia do mundo, e os vultos dos homens impotentes tossiam, de enxada ao ombro, afogados na fumarada, por entre o estralejar dos gafanhotos que rebentavam como panchões da China. Os uivos aflitos da carne da terra chegavam à estrada da Castanheira, e o ronco surdo das combustões desenfreadas enchia de pavor todo o vale. Acabaram em cinzas quinze quilómetros de matagal entre a ribeira Teja e a estrada da Meda, nunca assim se vira tão desenfreada a besta do apocalipse.
«A réplica da hecatombe havia de chegar oito anos depois, em inverso sentido. Por razões tão criminosas como fúteis, um marginal paisano resolveu incendiar o pinhal dum vizinho, no sítio das Raposas, lá para a Castelhana, ao tempo não havia ainda o grande charco da barragem cobrindo as várzeas. Era meia noite e o povo andava batendo os matos incendiados com giestas negrais e pazadas de areia, quando entrou a soprar um vento ligeiro que subia do Douro. O fogo aproveitou uns restos de seara para escapar ao castigo e galgar a ribeira, alimentou-se nos matos rasteiros que haviam tomado o lugar dos pinheirais antigos, e na tarde seguinte acabava a morrer nas colinas da quinta do Forcas, no mesmo exacto ponto em que o brasileiro andara certo dia assando as sardinhas. Desta vez havia de cruzar a estrada da Meda, e por lá andou vitimando as matas que do alto das Sete Pipas se debruçam para a terra quente e os lameiros que vertem para a corda do Senhor da Pedra. Veio até a chamuscar as barbas inquietas dos castanheiros de Soito Maior e da Aldeia de Santo Inácio.
«Das sementes que tinham escapado ao incêndio primeiro, milhares de plantas haviam germinado, lutavam por viver entre tojos e matos, e eram a salvação do monte. Mas nem uma resistiu à renovada selvajaria. A paisagem mudou, e agora nem sete gerações bastarão para que volte nela a frescura das sombras antigas, as flautas de Pã do vento nas agulhas, o verde longínquo dos pinheirais da infância.
«O mundo tornou-se outro, se não é o mesmo que morrendo vai. Pasmam, confusos, os aldeãos a quem se paga para deixarem abandonada a terra. Pasmam, desertos, os campos, saudosos do trilhar dos gados e do rude gesto bíblico dos homens. Talvez possam os deuses evitar, pasmando assim os homens, que outras bestas apocalípticas venham um dia destes por aí. Mas isso ninguém o pode garantir, passado que está o tempo dos milagres.»
O viajante fica impressionado como relato, não esperava tanto quando fez a pergunta. Desfaz-se em agradecimentos ao estalajadeiro e decide referescar-se com mais uma cerveja, enquanto saboreia uma nova leitura. O homem acaba a oferecer-lhe o almanaque. E, quando o viajante se despede, parece até que vai reconciliado com o mundo.

Jorge Carvalheira

Transumâncias

A ponte é de um só olho. Assenta nuns fraguedos que ali estão há mil anos, e que outros tantos mil hão-de ficar, a ver passar as águas. Hoje em dia é o que vêem passar, que agora já não há rebanhos transumantes, vindos da Serra da Estrela, a escapar aos invernos. Cruzavam o Mondego na ponte de Juncais, subiam ao planalto pela estrada do Carapito, e matavam as sedes no Távora quando chegavam à ponte. Pernoitavam aqui no descampado e largavam de madrugada, que era preciso subir o vale da Ribeirinha, e alcançar Penedono que mirava a deslado, deixar para trás as minas de ouro e chegar a Trevões, e a Valongo dos Azeites, e passar às encostas da Pesqueira, onde a parra das vinhas começava a cair.

Assim ficou sem préstimo o logradouro baldio, depois que os gados da serra deixaram de passar. E a quinta do Fidalgo, por serem tão difusas as extermas, as mais delas cruzes talhadas em fraguedos que o tempo já comeu, logo lhe deitou a mão. Bastaram dois campónios para atestar, e um tabelião que tinha um selo branco e pouco escrúpulo. O povo não gostou. E tão mudados eram os tempos que pôs uma demanda em tribunal. Um dia algum juiz decidirá.

Decide e não decide, quem tem que se despachar é este viajante. Bem gostava de ficar aqui o dia todo, mas tem que chegar hoje a Lamego. E já vai estrada fora, de janelas abertas à fornalha da tarde, quando lhe sai à mão direita a esplanada dum café, ali na Ponte do Abade. Nem a propósito, que duma cerveja fresca vem ele muito precisado.

E logo dá consigo num clamor, uma pequena multidão à espera dum transporte, pelos vistos atrasado. É o que se conclui desta vozearia, destes inconformados gestos, e das pragas que fervem no ar. Terá o grupo umas doze pessoas, as mais delas mulheres já maduras. Têm ancas largas e seios fartos e ventres salientes, e comem uns farnéis e fumam e praguejam, em sotaques estranhos, como se estivessem numa caserna. Esta veio de Ovar, aquela de Ílhavo, aqueloutra de Leça, algumas de Viseu, da Pesqueira, de Moimenta, e esta família inteira veio do Ladário. Há três moços novatos que se riem do nada, e homens adultos, que são dois, e bebem a sua cerveja enquanto esperam. Elas agitam-se nos fatos de licra que lhes moldam as formas, falam aos filhos nos telemóveis, lembram o gato que vai morrer à fome, e recomendam cuidados à avó com a pasta da escola. Estão todos à espera dum transporte que vai levá-los para a Suíça, onde têm trabalho por três meses, em hotéis, em cozinhas, em serviços domésticos, e nas quintas agrícolas dos Alpes. Alguns vão à apanha dos morangos, e quando estes acabarem há-de vir a campanha das maçãs em França, e as vindimas na Rioja. Num barracão ao lado fica a central de chegadas e partidas. É lá que se amontoam sacos de batatas e máquinas de lavar, frigoríficos velhos e garrafões de vinho, caixotes de cartão e atados de roupa, e tubos enrolados, e cortadores de relva, e máquinas estranhas a que faltam pedaços, e jantes de alumínio, e sacos de viagem, e coisas que este viajante não é capaz de definir.

A bem dizer, o viajante já tinha ouvido falar nas campanhas da fruta. Mas uma coisa é ouvir alguém falar, e outra, bem diferente, é ver, e reparar. E o viajante já não sabe se parou num café de estrada a beber uma cerveja, ou se foi dar a um cais de Belém, donde partem as naus da Índia. São todas portuguesas, estas vidas. Ontem foram lastro de caravelas, hoje lastro são das sociedades desenvolvidas, amanhã serão lastro doutra coisa qualquer, vidas é que não parecem ser.

O viajante olha à sua volta e não exagera se disser que fica angustiado. Depois de séculos por trancos e barrancos, bem gostava ele de pensar que Portugal regressou à Europa e assumiu nela um papel como o de toda a gente. Não contava achar agora aqui este rebanho transumante, amontoado num cais, à espera duma nau.

Já bebeu a cerveja, já matou a sede, já partiu para Lamego. Leva lá dentro um conflito, que as brisas mornas da tarde lhe vão serenando. Por não ter que partir às campanhas da fruta.

Jorge Carvalheira

Parábola com bandeira

Era uma vez um país que tinha uma bandeira e um viajante que viajava nele. No país. Um dia o viajante passou numa estrada e encontrou a bandeira do país a ondular, no coruto dum pinheiro. No meio dum pinhal, ao lado duma aldeia.

O viajante sabia que andava a viajar num país de marinheiros, pois conhecia a história e já ouvira dizer que se haviam feito barcos dos pinheirais do país. Que atravessaram o mar, e fizeram conquistas, e plantaram padrões de pedra nas dunas longínquas. Para tornar grande o país, que era pequeno e pobre.

O viajante, cultor das primeiras causas, lembrou-se disso tudo, quando a bandeira, a ondular ali no pinheiral, o surpreendeu. E ou bem que havia naquela aldeia um marinheiro velho, saudoso dos antigos padrões que deixara nas dunas, e dos feitos antigos… ou era um novo marinheiro, orgulhoso da história, que também quisera agora plantar padrões. A alguma conquista nova, do país pequeno e pobre. Seria um padrão moderno, a bandeira a ondular, concluiu o viajante.

Os meses passaram, e também o viajante muitas vezes passou. Na estrada, ao lado duma aldeia, onde a bandeira continuava a ondular. Primeiro perdeu as cores, que o tempo foi comendo. Depois caíram-lhe as pontas, mordidas pelo vento. Por fim ficou um trapo, no coruto dum pinheiro, cansada de ondular.

Os antigos padrões, comidos da maresia, esfarelaram-se nas dunas. Este, que era moderno, picaram-no as gralhas. Destinos semelhantes, a feitos tão parecidos.

Jorge Carvalheira

Litígios e litigâncias

Há ocasiões em que a gente lê e não acredita. Volta a ler, e volta a não acreditar. E depois pasma.
Aconteceu-me há dias, quando levei para casa o Couves e Alforrecas, de João Pedro George. Decidido a tirar a limpo umas dúvidas íntimas. Tenho na literatura um prado de estimação, onde rumino, às vezes, conhecimento e prazeres. Insubstituíveis, que o verão já passou por mim. Adiante.
Havia uma senhora que vende muitos livros, havia um crítico a explicar porquê, e daí nascera uma providência cautelar, de efeitos, finalmente, conhecidos. Nenhuns. Assim à vista desarmada. Para aumentar esta perplexidade de leitor, aparecera depois, no fio do horizonte, uma outra voz de crítico, a voz entre as mais vozes, por uma vez directa e terminante. O crítico inicial era um débil mental.
Só havia que levar para casa o livrinho (50 páginas) com o seu lastro de acções feias. Uma delas era querer fazer dinheiro à custa da propriedade industrial alheia. Nem mais.
Ora o que nele se lê é um exercício de legítima crítica, feito por autor com obra no meio. E que já apelidaram de bulldozer, mas se comporta aqui do modo mais urbano e civil. O seu encontrão às normas será a trabalheira que tudo aquilo deu. É aquela minúcia de formiga, a que nem todos estão para se entregar. Claro que não deixa pedra sobre pedra, do “edifício literário” da senhora. Que eu não cito em voz alta, para não fazer dinheiro.
O assunto ficou-me, em parte, resolvido. Autora e editor saberão que é livre o negócio do gato, se tão esforçadamente o vão mercadejando. Mas não gostam de ver alguém a sublinhar-nos, a nós que pagamos o produto, que uma boa lebre é coisa distinta. E avançou a providência cautelar.
Em que país vivemos?
Então é com faenas tais que se atulha um tribunal e se ocupa o tempo dum juiz?
Então entretém-se o apertado universo das nossas cabeças pensantes, durante semanas, com jogos de sombras?
Quem é que estes senhores tomam por parvos?
Ou quererão amedrontar alguém?

Jorge Carvalheira

TUGAS!

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Na Guiné, em 73, nós, a eles, chamávamos-lhes turras. Era um modo abreviado de lhes chamarmos terroristas. Sorrateiro. E às vezes tímido. Porque não acreditávamos que o fossem. Sentíamos que o não eram. Sentíamos que eles eram, como nós, marionetas duma feira. Juntos todos num grande cul-de-sac. A esbracejar.

A certo ponto começaram eles a chamar-nos tugas. Contrapondo, abreviando portugas. Havia para eles portugueses e portugas. Os portugas eram a tropa portuguesa, que andava ali a chateá-los. E que eles aterrorizavam. E massacravam. Com artilharia que nós não tínhamos. Com armamento melhor que o nosso. Quando chegavam os aviões de alerta ( única coisa que ainda ali mexia) recebiam-nos com mísseis de infra-vermelhos, que levavam ao ombro. Calavam-se durante um quarto de hora e chamavam-nos tugas com escárnio, porque tinham perdido o respeito por nós.

Não sei quem foi o português que pôs este nome à selecção nacional, esse elixir de delírios. Não sei se é o mesmo que mandou pôr as bandeiras na guilhotina das janelas. Sei que é um terrorista que também perdeu o respeito por nós. E por si, o que não seria grave. Sei que é um onagro mentecapto, que se diverte a gozar com coisas sérias. Sei que nós aceitamos, alguns babando-se de tanto gozo.

Cá por mim, como dizia o Campos, “De um modo completo, de um modo total, de um modo integral: MERDA!”.

Jorge Carvalheira

Vida de cão

As nossas relações nem eram más. Seguiam a lógica duma rotina antiga, que se foi instalando, depois de tomarmos juízo e derrubarmos os muros da nossa guerra fria. Que também a tivemos.
Ele acampava no terraço, eu tinha aposentos na marquise. Sentindo a dona fora, montávamos arraial na sala das visitas e trocávamos gentilezas. Ele inventava-me petiscos. Eu deixava-o lamber-me a tigela do leite e dançava-lhe às vezes no lombo o crazy-horse.
Não era fácil a partilha da dona, mas lá nos arranjávamos. E, quando ela o levava ao jardim, cheguei a ter saudades dele.
Há dias a patroa saiu, a uma noite de canasta. Eu fiquei a dormir, mas ela deixou ao menino a televisão ligada, para ver as notícias. A estúpida!
Eu bem que o estranhei quando ela regressou. Pareceu-me altivo, ensoberbado, a olhar-me lá do alto, nas suas tamanquinhas. Roçou-se, sem pudor, nas pernas da patroa, e acho que lhe impôs dormir no quarto dela. No tapete, estou eu a supor!
Gastei o dia seguinte a observá-lo. E, sempre que o olhava, era um tipo com direitos o que via. Eu seja cão se não era! E quanto mais eu olhava, mais direitos me exibia. Recusou passar a tarde no salão, desdenhou-me a tigela… E à noite, quando me viu ir às meninas, foi logo delatar-me à dona. O acusa-cristos! Não dormi toda a noite.
Na manhã seguinte exigi um conselho. E ela, muito dengosa, a fingir-me hipocrisias nos bigodes, enquanto me sugeria hierarquias, regras de precedência, protocolos… Acabou a confessar-me que ele tinha uma comenda, um dia nacional só para ele. Que finalmente alguém lhe fizera justiça.
Eu fui à minha vida, não me dei por achado, tirei informações no bairro. E, quando ela saiu, ofereci ao menino uma trela. Na coleira da trela ia o pescoço do justiceiro, um deputado qualquer, pelos vistos conhecido. Ficou insuportável, de vaidoso, e quem o queria ver era na rua, a levar o político ao jardim.
Soube-se ontem que afinal a comenda era falsa, e ele teve que soltar o benfeitor. Voltou a casa sozinho e devolveu-me a trela, acabrunhado. Metia dó, coitado! Quando um tipo se fia em certos gajos, é raro acabar bem.
Vai ser um rebuliço cá em casa, mas deixei de falar ao parvalhão.

Jorge Carvalheira

Arte e imitação

Jorge Carvalheira, que conhecemos de judiciosos comentários neste blogue, autor dos excitantes contos O Mensário do Corvo , que a Quasi editou em 2002, vai agora colaborar no Aspirina B. Este é o seu primeiro texto.

Gastei anos e anos em escolas, em universidades técnicas, a esgrimir contra fórmulas, a analisar impedâncias, a dissecar circuitos integrados e a sondar estados de alma em micro-chips. Tive uma bolsa na América, pos-graduei-me em sistemas, fui mestre em micro-correntes e acabei autoridade na selva oscura da robótica.

Quando me aventurei no mercado, e fui procurar emprego, rejeitou-me o tecido empresarial por ter currículo a mais. Reduzi expectativas, quis ir dar aulas, em vão, perdi concursos a jardineiro camarário. E acabei a retrair-me em casa dos meus pais, cheio de medo dum país que odiava a ciência, pensava eu. Após anos de depressão, descobri que toda a arte estava na iniciativa própria, na ousadia privada. Pois se assim era, não havia mais dúvidas, o caminho era a arte.

Eu tinha construído, no silêncio do quarto, meia dúzia de autómatos que jogavam à bola. Fiz umas adaptações e pu-los a deambular sobre uma tela. Um deles reproduzia na perfeição os tiques do urso enjaulado. Um outro era mestre a fingir o pânico do polvo acossado, a disparar borrões negros. O mais sofisticado simulava orgasmos de coelho, e rematava a obra com o final toque do mestre. As galerias não me davam sossego, ninguém calava os conselhos de administração, sedentos de arte não figurativa. Os meus robôs dilataram horários de trabalho, nos picos da estação trabalhavam em simultâneo, vinte e quatro horas porque o relógio mais não tinha.

Um dia preparei-lhes o terreno, liguei os circuitos automáticos, deixei o atelier mergulhado em luz febril e fui-me à cama, tomado de stress. Na manhã seguinte cheguei tarde ao trabalho, e encontrei, estendido no chão, um retrato da Mona Lisa, carregado de mistérios.

Antes que eu visse uma dinheirama a arder, fui-me logo aos robôs e arranquei-lhes as tripas. Era o que mais faltava, após tantas conquistas da modernidade, voltarmos agora à arte como imitação da natureza!

Jorge Carvalheira