Arte e imitação

Jorge Carvalheira, que conhecemos de judiciosos comentários neste blogue, autor dos excitantes contos O Mensário do Corvo , que a Quasi editou em 2002, vai agora colaborar no Aspirina B. Este é o seu primeiro texto.

Gastei anos e anos em escolas, em universidades técnicas, a esgrimir contra fórmulas, a analisar impedâncias, a dissecar circuitos integrados e a sondar estados de alma em micro-chips. Tive uma bolsa na América, pos-graduei-me em sistemas, fui mestre em micro-correntes e acabei autoridade na selva oscura da robótica.

Quando me aventurei no mercado, e fui procurar emprego, rejeitou-me o tecido empresarial por ter currículo a mais. Reduzi expectativas, quis ir dar aulas, em vão, perdi concursos a jardineiro camarário. E acabei a retrair-me em casa dos meus pais, cheio de medo dum país que odiava a ciência, pensava eu. Após anos de depressão, descobri que toda a arte estava na iniciativa própria, na ousadia privada. Pois se assim era, não havia mais dúvidas, o caminho era a arte.

Eu tinha construído, no silêncio do quarto, meia dúzia de autómatos que jogavam à bola. Fiz umas adaptações e pu-los a deambular sobre uma tela. Um deles reproduzia na perfeição os tiques do urso enjaulado. Um outro era mestre a fingir o pânico do polvo acossado, a disparar borrões negros. O mais sofisticado simulava orgasmos de coelho, e rematava a obra com o final toque do mestre. As galerias não me davam sossego, ninguém calava os conselhos de administração, sedentos de arte não figurativa. Os meus robôs dilataram horários de trabalho, nos picos da estação trabalhavam em simultâneo, vinte e quatro horas porque o relógio mais não tinha.

Um dia preparei-lhes o terreno, liguei os circuitos automáticos, deixei o atelier mergulhado em luz febril e fui-me à cama, tomado de stress. Na manhã seguinte cheguei tarde ao trabalho, e encontrei, estendido no chão, um retrato da Mona Lisa, carregado de mistérios.

Antes que eu visse uma dinheirama a arder, fui-me logo aos robôs e arranquei-lhes as tripas. Era o que mais faltava, após tantas conquistas da modernidade, voltarmos agora à arte como imitação da natureza!

Jorge Carvalheira

4 thoughts on “Arte e imitação”

  1. xatoo, a comportar-se assim, um dia destes a televisão aparece a filmá-lo, por comportamento irrequieto.
    Ainda não disse uma palavra sobre a questão proposta e quer logo passar à seguinte?

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