Arquivo da Categoria: Jorge Carvalheira

Liberais

No princípio eram a guarda avançada das ideias mais ilustres das Luzes e da Razão. Tomavam como bandeira a constituição dos direitos, a liberdade dos espíritos e a emancipação dos homens. Contra a cerração do dogma, a injúria do privilégio, o esmagamento do poder absolutista. Antepunham o direito natural ao pedigree.
– Deixai passar, deixai fazer quem faz! – E alguns desembarcaram no Mindelo.
Hoje afadigam-se a virar às avessas este mundo e o outro. Às bestas da natureza, recambiam-nas ao criacionismo, que o mundo todo está na mão de Deus. Porém aos homens reservam a dura selecção darwinista, porque o mundo é uma coutada dos audazes.
Idolatram o dividendo, cultuam bezerros de ouro. Aos que já não derem lucro, facilitam o antigo logradouro da superstição, e da crença no milagre. Dizem que é isso o progresso. E dão como garantido um favorzinho da fome, para nos meter na cabeça o conto do vigário.

Jorge Carvalheira

Questão com lágrimas

Uma veio do Brasil e por força há-de chorar todos os dias. Duas vezes. Faz-lhe bem, ajuda a alma, não sabe explicar porquê.
– As saudades da família, do calor, eu sei lá bem…
A outra veio de Angola mas não gosta de chorar, que lhe dá cabo dos olhos. E os olhos são o principal.
– O coração mais os olhos, são dois amigos leais…
Saem ambas na Praça dos Combatentes. E eu fico-me sem saber se é melhor cuidar dos olhos, da alma, ou do coração.
Vem-me à ideia que sou homem, proibido de chorar. E lá me livro destas hesitações.

Jorge Carvalheira

Sonatina de rua

Dei com ela no passeio, ao fim da tarde, saíra há pouco da caixita de rodas. À frente, num tapete sobre o empedrado, tinha a dormir um gato de peluche, abrigado a uma sombrinha de bonecas. Ao lado um bouquet de plástico e a caixa do violoncelo, para recolher as moedas.
A violoncelista lembrava os trinta anos e tinha uma flor no cabelo, a derramar-se em cachos pelos ombros. Vestia a indumentária da função, ampla saia bordada até aos pés, uma blusa de cetim, o coletito preto a aconchegar o peito. E era diferente das outras porque tocava de pé. Fixou o espigão numa prega da calçada, acomodou no ombro o braço do instrumento, correu a mão esquerda nos bordões. E ficou ali suspensa, de arco enristado na direita, a afagar num trejeito um caracol rebelde.
O maestro é alemão, vem do Oberhammergau, vai dizer-mo no fim do recital. Ampara-se a uma muleta e reclina sobre a artista os alongados braços, a bafejar-lhe o sopro demiúrgico de quem vai repetir a criação. Das pontas dos dedos enluvados sete fios o ligam ao corpo da mulher, que volta a sujeitar o caracol. E quando liga a máquina do som, desliza ela os dedos sobre o ponto, tange nas cordas o rufar do arco, cresce na rua a melodia da Scarborough Fair.
Começou por hesitar, a multidão, apanhada de surpresa. Depois, à melopeia ondulada do El condor pasa, rendeu-se de encantamento. Até um grupo de catraias que passava ali ficou, a ondear os quadris. Lá para o final, mesmo com falta de naipes, o maestro aventurou uma sonata célebre. E a plateia, que lhe não sabia o nome, perdeu a compostura e desatou a aplaudir.
Nos intervalos choviam as moedas na caixa do violoncelo. Quando as ouvia cair, almofadado na caixita de rodas, um caniche abria o olho e ladrava uma alegria.

Jorge Carvalheira

Dura lex!

lille6.jpg

O homem veio de Castelo Branco, a arbitrar, na Luz, um jogo. Há tempos. No final produziu um relatório de ocorrências.

“O jogador da equipa visitada, Micolli, desmandou-se em velocidade tentando desobstruir-se no intuito de desfeitear o guarda-redes visitante. Um adversário à ilharga procurou desisolá-lo, desacelerando-o com auxílio da utilização indevida dos membros superiores, o que conseguiu.
O jogador Micolli procurou destravar-se com recurso a movimentos tendentes à prosecução de uma situação de desaperto mas o adversário não o desagarrava. Quando finalmente atingiu o desimpedimento desenlargando-se, destemperou-se e tentou tirar desforço, amandando-lhe o membro superior direito à zona do externo, felizmente desacertando-lhe.
Derivado a esta atitude, demonstrei-lhe a cartolina correspectiva.”

Imaginemos só que a lei era mais mole!

Jorge Carvalheira

Ideias Fixas

Ainda ontem era governante, e já hoje pagaria para o não ser. Que desabou a máquina do mundo e a coisa é de arrecear. O presidente em sítio num quartel, o ministro descomposto, a secretária apavorada em casa. Há blindados a galopar nas ruas, multidões em alarido, comunicados que ninguém autorizou…
O homem deixou de entender o mundo, mas é secretário de estado. E o presidente reclama, na emergência, que alguém lhe desencante um interlocutor. Algum general de peso, não caia o poder na rua, tão frágil que é, o poder.
Arrisca até à praça sublevada, forceja entre a multidão, chega à fala com um soldado que dispara um ultimato ao megafone.
– Sou secretário de estado, trago um mandato do presidente do conselho!
– Apresente-se no PC e exponha as suas razões! – diz-lhe o outro, a fazer a continência.
O homem aguentou o abanão, mas esgazeia o olhar.
– Sempre são eles quem manda?!
O soldado abre um sorriso, dá ordens ao condutor, embarca o homem num jipe.
– Leva sua excelência ao posto de comando! Põe-me os olhos no caminho, que há gente de ideias fixas!
E esticou o prazo ao ultimato.

Jorge Carvalheira

Nocturno, em si, menor

Alguns dormitam, maçados, nos beliches, ele viaja a noite inteira a pé. Entre o bar e o corredor, entre uma nova cerveja e os considerandos do salário que recebe. Quase setecentos contos, mesmo quando não embarca. Como agora, que vem a casa ver a mulher. Mas isso há-de acontecer só amanhã, lá pelo meio-dia, em chegando à Pampilhosa, depois de atravessar a infindável noite basca, e leonesa, e castelhana, num Sud-Expresso lôbrego.
Alfredo tem trinta anos e deixou a escola antes do tempo, em Mira. Foi trabalhar com o pai, nesse tempo havia quarenta companhas só nas artes da xávega. A princípio puxavam a rede à unha, com juntas de bois que enterravam os cascos no areal macio. Hoje não chegam à dúzia. O peixe foi-se embora, será culpa das chuponas espanholas. E ficou tão barato na lota quanto é caro nas bancas do mercado, não se compreende Portugal. Paga-se o gazol do barco e o resto mal dá para viver. De forma que o pessoal começou a emigrar lá para fora e ele foi parar a Quipert, ao pé de Nantes. Foi há dois meses, mais um cunhado, é a primeira vez que vem a casa.
Em Quipert saem para o mar à quinzena, e Alfredo é o cozinheiro. O dono do barco é tão velho que já não navega, toda a companha de sete é contratada. Mas o peixe vai à lota ao mesmo preço para todos e toda a gente ganha dinheiro. Só não se entende o que se passa em Portugal.
Alfredo vem excitado com os considerandos do salário que recebe. Jantou no restaurante, bebeu uma garrafa de vinho, no fim pediu um conhaque e pagou quarenta euros, mas valeu a pena. Depois foi aturando a noite a poder de cervejas, e é por isso que já lhe arrasta a voz, e tem este bafo choco e amargoso, e repisa outra vez os considerandos do salário que recebe. Quando chega a Vilar Formoso desce ao cais durante meia hora, o tempo de mudar a máquina ao comboio. Bebe outra cerveja na cantina, com uns camaradas negros que exercitam um hip-hop lusófono e também chegam da Europa.
Lá pelo meio-dia, toldado como vai, Alfredo levará tempo a encontrar-se com a mulher. E quando o conseguir, vão ser horas de apanhar outra vez o comboio para voltar a Quipert, ao pé de Nantes. Onde agora é cozinheiro, sempre que sai ao mar, a pensar nos considerandos do salário que recebe.

Jorge Carvalheira

TABACARIA

Ela, mascando a chicla de boquinha aberta, os óculos arrumados no toucado. Ele, a bermuda abaixo do joelho, de barriga precoce a desabar.
Ela vai à escola de Comunicação Social, ele à Sociologia.
– Tás a ver?! Álvaro de Campos! Não gostas?
– Quê, o das odes?! Não, sou mais o outro, o Caeiro! É mais coisa!
Ontem, na festa, ele bebeu, gritou, curtiu o homem do chapéu. Ela apenas riu muito, pulou, os braços a adejar.
Ambos são o futuro, mas ainda é cedo.

Jorge Carvalheira

Facturas por pagar

Os direitistas andam preocupados, não encontram a direita. Não entendem o que lhe aconteceu.
A direita, que nos dirigiu durante séculos, fez um país inviável. E um dia desapareceu do mapa. Morreu da morte dos mitos que a serviram, dos espantalhos com que nos adormeceu. Morreu de caducidade e de vergonha.
A direita que ficou é um produto de refugo. Vai fazendo pela vida, em casos junta fortuna. O país da vassalagem que aprendeu a governar já não existe. E um país modernizado, capaz de matar a fome aos filhos, não se improvisa numa geração nem lhe cabe na cabeça. Ela só recebeu como herança o horror da populaça.
A esquerda não sabe o que fazer, tantas são as facturas por pagar.

Jorge Carvalheira

lapso de linguagem

Não há jogador de futebol que não dê o seu melhor. Invariavelmente. É já uma bandeira da classe.
Mas há casos em suspeita de lapso de linguagem, sob um tão elevado pensamento.
Ao que se ouve dizer, o seu melhor é o salário que recebem. E o que dão é pontapés na bola, nem sempre muito certeiros.

Jorge Carvalheira

Monsieur Sambá

Há fendas no quotidiano que são vertigens puras. É raro acontecerem, por benesse dos deuses. Descobrem-se adiante, e nós caímos nelas desamparadamente. Como num precipício.
Monsieur Sambá desce o dorso da duna. Caminha pela areia apoiado nas muletas, aos poucos entra na água até chegar ao joelho. A perna vazia das calças fica-lhe a boiar ao rés da espuma, agitada na brisa. E já ele retrocede, a oferecer a quem está as suas quinquilharias. Colares de búzios, pulseiras de sementes, anilhas de missangas. A carapinha branca adorna-lhe a figura, mas envelheceu-o. Pouco passará dos cinquenta. Fala um francês corrente.
– Et la jambe?! Les béquilles?!
Monsieur Sambá abre a porta ao abismo. Foi um acidente há muitos anos, em Cumbamori, ia ele a passar na picada. Veio a tropa portuguesa, um estilhaço entrou-lhe no joelho, o médico era cubano e foi morto no assalto. A perna acabou por gangrenar, foi preciso amputá-la.
– Soixante treize?!
– Soixante treize.
O cerco de Guidaje, colado à fronteira do Casamansa. Há semanas que a tropa não respirava, com tanto fogo em cima. Mandaram forças de Bissau invadir o Senegal, a ver se calavam a base de Cumbamori, ali a um par de quilómetros. E tudo se resolveu. Os assaltantes trouxeram 10 mortos e 22 feridos, mais três que desapareceram e ficaram por lá. Aos assaltados contaram-se, por estima, 67 mortos.
Monsieur Sambá não vem nas estatísticas, ia só a passar na picada. Livrou-se da gangrena e dá-se por satisfeito.

Jorge Carvalheira

O país sem sossego

Três quartos de Portugal não existem há muito. Criaram-se à lei da natureza, serviram de lastro às caravelas, formigaram como bichos na paisagem, e fugiram a salto para a Europa a ver se matavam a fome.
Agora deram-lhes carta de alforria, como se a vida se fizesse por milagre. O orçamento é curto, a justiça ressona atrás das togas, a educação multiplica iletrados, e a saúde nacional não faz fortunas.
Um Portugal assim não tem sossego. Ou volta ao nada que já foi, durante cinco séculos, ou encontra o portão do 5º Império, que uns visionários lhe dão por garantido.

Jorge Carvalheira

Gessos e bolandas

O viajante vai a subir as escadas dum alpendre belíssimo, numa casa velha de telhado a cair, quando os acordes vibrantes dum carrilhão electrónico se põem a gritar o meio-dia na capela de S. Sebastião, que está escondida ali ao lado. Indústrias de Braga, pensa o viajante, que decide afastar-se a ver se salva os tímpanos. A esta hora o sol é já duríssimo, e rua está deserta. Mas o viajante sente o peso duns olhos que o espiam, se não forem enganos dum instinto antigo que lhe parece conservar. Há um portão de folha que se entreabriu, e dele sai um homem abrigado num chapéu de palha. Apesar da barulheira do carrilhão, a retumbar nos ares um avé de Fátima que ameaça não ter fim, o encontro é inevitável.
Os modos do homem do chapéu de palha são os de quem sofreu uma invasão. Quer saber de que é que o viajante anda à procura.
– Procurar, procurar, não procuro! Ando a ver! As pessoas, as casas, o mundo…
Ao homem parece que agradou a resposta vaga de filósofo barato, porque se abriu num sorriso. Quanto ao viajante, depressa se deu conta da sorte que teve neste encontro, porque o senhor Albino não é uma personagem vulgar. O senhor Albino é uma figura que saiu agora mesmo dum quadro campestre de há um século atrás, para vir encontrar-se aqui com o viajante. Usa o mesmo vestuário, conserva os modos antigos do falar, espalha em volta o cheiro dum suor que há muito tempo se vai lavando a si mesmo, e cobre a cabeça com um chapéu de palha que já não existe. O viajante não vinha à procura do Portugal antigo, que o guarda na memória com grande utilidade, mas fica satisfeito por encontrá-lo aqui. Melhor pode cotejá-lo com o Portugal moderno, se não é isto forçar as palavras, e tirar a prova aos dois.
O viajante observa melhor o seu interlocutor, de aspecto já um tanto alquebrado.
– Vida dura, amigo!
O homem ufana-se de ter já tantos anos como sessenta e sete, e de manter a sua actividade, mas lamenta a dureza dos seus ingratos trabalhos. E muitas vezes vãos, o que é pior. Ao contrário de muita gente, teve sempre terras suas onde trabalhar, e foi por isso que não emigrou, no tempo certo. Tem filhos ainda novos, que andam a estudar, e à surpresa do viajante confidencia que se casou tarde.
– Pois antes tarde e bem que cedo e mal, como às vezes se vê!
A escolha do senhor Albino foi tardia mas boa, como o viajante há-de confirmar. E trouxe-lhe cinco filhos, entre eles um varão. Mas o viajante não sabe distinguir se isto é causa de alegria ou de contrariedade, porque todos lhe deram consumições e sobressaltos cabondes. Uma teve problemas de nervos, parece que era fraca do cérebro, foi uma trabalheira. A outra a seguir teve aquele grande susto com uma tia, por causa duns piolhos. A boa mulher aplicou-lhe na cabeça o insecticida que usava no campo. E a doente, se ia resistindo à moléstia, por muito pouco se não finou da cura. Depois veio a do meio, e logo lhe havia de cair uma panela de água quente num pé, foi um mês inteiro a correr para os tratamentos. O varão, ainda criança de escola, partiu um dia um braço. Lá andaram com ele em gessos e bolandas, mas ainda hoje não está bem, que ficou com defeito. À mais novata apareceu-lhe uma coisa ruim no ventre, até parece impossível, de tão nova. Agora já está bem, graças a Deus, só tem que ir aos hospitais de Coimbra uma vez por ano.
O viajante escuta com toda a atenção o rosário das queixas do senhor Albino, há muito que sabe que todos os milagres nascem apenas duma boa palavra. E bem gostava de a conhecer agora, para a poder usar, porque o rol das desditas do seu amigo ainda não terminou. Quando começou a trabalhar no comércio, a sua mais velha precisava dum carro, para se movimentar. O senhor Albino aceitou que não há modos de se viver sem ele, e lá lhe deu mil contos por um. Até ao dia em que sucedeu não sei o quê num cruzamento, e o carro acabou na sucata. O pobre homem teve que comprar outro, e agora não sabe bem o que fazer quando os outros filhos começarem todos a trabalhar, e precisarem também dum carro, para se movimentarem.
O viajante já sabe, por experiência pessoal, que filhos e cadilhos são uma e a mesma coisa, embora nuns casos mais que noutros. Começa a pensar que não lhe bastaria conhecer aqui a senha deste milagre, indispensável e urgente era que fosse um santo milagreiro, dono das senhas todas. Como nem uma conhece, desvia a conversa para o rumo que mais lhe interessa.
– Vai votar, no domingo?

Jorge Carvalheira

Rocinante

O viajante já se prepara para partir, quando entra um fulano atarefado a pedir uma cerveja em altos berros, parece que está zangado com o mundo. A locandeira bem lhe repreende os modos, mas ele continua a falar tão alto que é impossível ouvi-lo. Como se estivesse a falar connosco além do cimo da serra do Galgueiro.
O homem está muito apressado, porque tem que ir abrir uma cova no cemitério duma aldeia vizinha. Para um rapaz de mota, que vinha da casa das brasileiras, às quatro da manhã. E não viria muito mal cuidado, porque, a páginas tantas, os colegas olharam para trás e já o não viram, que já estava todo estrampalhado na valeta, ali à curva da quinta do Forcas. Ficam duas filhitas, uma mulher nova…
O viajante fica impressionado só com o pouco que lhe traduz a dona Blandina, por si não entendeu uma única palavra. O falador tem um ar estranho e visionário, faz lembrar uma figura qualquer, mas o viajante não sabe qual é. E só encontra a resposta quando sai do café, ao dar com um rocinante preso a uma carroça, com duas palhas em cima. O cavalicoque está tão magro que os ossos lhe vão furar a pele. Está tão abatido e cabisbaixo que parece não aguentar o peso da cabeça, e é de temer que se fine ali mesmo. Mas o dom quixote continua lá dentro a beber a sua cerveja, indiferente à sorte do companheiro, a contar as suas histórias inaudíveis, e a barafustar contra os moinhos de vento que há no mundo.

Jorge Carvalheira

O país partido

Portugal teve um estado antes de ser uma nação. Teve um esqueleto, antes de ganhar corpo. E quando começava a ganhá-lo, deslocalizaram-no para a Índia. Desacertou o passo e agora é o que se vê. Um país partido em dois países.
Um ficou com a história, mas perdeu o futuro. Arqueja debaixo dela. O outro é o país do sucesso, alheado do passado, bêbado de ilusões. Um esbraceja para escapar à penúria. O outro agita-se sem destino, como as formigas doidas. Nenhum entende o outro, e ambos mutuamente se desprezam.
O enterro dos dois será no mesmo dia. Até lá, há quem ganhe com isso.

Jorge Carvalheira

Apostas

Não sei bem o que fazer, mas apostas são apostas. E o Maio de 68 ficou-me na lembrança. Passei a tarde inteira a palmilhar a avenida, entre as barracas da feira do livro, à espera dum avião que partia para Angola à meia-noite. De manhã aterrámos no Sal com um motor parado. E a TAP ia trazer de Lisboa uma peça qualquer, um magneto, um pistão. Coisa para durar dias.
A guarnição era exígua e o quartel ainda mais. Um hotel de madeira, que se avistava ao longe, estava fora de questão. Servia as tripulações intercontinentais e era proibitivo. Fez-se do avião um bivaque de campanha.
À cauda uns marinheiros solitários, à frente alguns casais, famílias. Em breve era toda a cabine um porão naufragado, a cheirar a leite azedo, a fraldas de bebé. Bem melhor passei eu na enfermaria, duas noites numa cama articulada.
Havia um quadrado de jardim, ainda o tenho nos olhos. Duas acácias anãs, uns braços de chorão desgarrados ao sol, uns banquitos de pedra. E o luxo dum espelho-de-água, uma terrina da sopa, obra de paisagista. Ao lado o pau da bandeira.
O capitão chegou da nascente da Achada, com umas barricas de água. E trazia num cordel um macaquito, que mandou prender ao poste, numa trela de arame. Eu achei o trabalho uma selvajaria e avisei.
– Um dia o bicho foge, capitão!
Foge não foge, ficou a aposta feita. Um jantar de lagosta.
Há dias passei no Sal. Bem sei que o tempo é fugidio, e as palavras transitórias mais ainda. Mas o macaco fugiu, e apostas são apostas. Agora estou neste impasse. Se eu cobrar a lagosta ao capitão, o que é que vou exigir ao almirante? Um tal que descobriu a Índia, e também perdeu a aposta!

Jorge Carvalheira

Chuva de verão

Tivesse eu ficado na Sibéria, onde há ventos, e nuvens, e bosques de vidoeiros. E bolcheviques a sério!
O servidor sentiu-me lá por fora e interditou-me a página. As gaivotas entupiram-me de filhos as caleiras, entrou-me em casa uma chuva de verão. O alarme ligado parasitou a bateria, o carro nem se mexe. A paragem do 30 ficou desactivada, por causa dumas obras. Um amigo chegado tomou-se de maleitas, resolveu ir-se embora. Pontual só o talão registado, do imposto de Setembro.
E ainda não fui ver da metafísica, a alma da família, o estado da política. E as pechinchas literárias, nalgum escaparate.
Sai um homem à procura do exotismo do mundo, e ele a dormir-lhe em casa.

Jorge Carvalheira

Retardantes

De modo que resolveram organizar um simpósio. Não digo internacional, seria exagerado. Uma coisa assim transfronteiriça, para ser mais rigoroso. Custeada a fundos de coesão.
Vieram alcaldes espanhóis, bombeiros dum lado e doutro, delegados da protecção civil, e autarcas raianos ou nem tanto. Estava um representante do centro distrital de operações de socorro e alguns futricas avulsos. A mim, por lhes constar que entendo de palavras, que é uma coisa que não vem nos catálogos, encarregaram-me de resumir as actas.
Alugaram a sala de conferências do hotel Continental, e iniciaram a sessão com um atraso maçador.

– Frequência e dimensão dos fogos florestais na paisagem moderna
– Causas e consequências
– Papel fundamental dos retardadores de fogo no combate à catástrofe

Antes da ordem do dia, o moderador introduz um ponto prévio. Quer saber dos ilustres presentes quem não é membro do corpo social de entidade devotada ao mercado de retardantes do fogo. E fosse ele o imprevisto da pergunta, o intrincado da formulação, ou distração momentânea, o caso é que ninguém se pronunciou. E entrou-se finalmente na agenda dos trabalhos.
Durante o dia inteiro discutiram argumentos, cruzaram fórmulas químicas, compararam resultados. E lamentaram todos não poder fazer milagres.
Eu deixei-os falar e fui tirando notas. E antes de encerrarem os trabalhos já tinha pronta a acta. Eram todos, menos um, industriais do ramo.
Foi ali um pandemónio. Porque afinal eu não passo de iletrado.

Jorge Carvalheira

Famas largas

Depois disso o viajante recolheu à pousada e foi ler os seus roteiros. Logo soube estar em terra de famas muito largas, nem todas neutras, como esta do padre Costa. Parece hoje uma lenda de almanaque, e está na torre do tombo. Mas as terras antigas são assim, guardam histórias que nos não cabem na cabeça.
O padre Costa tinha sessenta e dois anos e era prior desta terra em 1487, quando se viu degredado das ordens sacramentais. E em vistas de ser arrastado nos rabos dos cavalos, esquartejado o corpo e postos os seus quartos em diferentes distritos, cumprindo-se a sentença que da pena do juiz lhe veio cair em cima. Dando hoje de barato a barbárie dos tempos, tão diversa da brandura com que se vêem tratados diferentes malfeitores, é de crer que houvesse no caso maroscas de relevo. Fiquemo-nos nós pelos quesitos provados, que o caso espanta, se não arrepiar.
O padre Costa dormiu com vinte e nove afilhadas, e fez nelas noventa e sete fêmeas e trinta e sete varões. Em cinco irmãs engendrou dezoito meninas. De nove comadres teve dezoito raparigas e trinta e oito rapazes. Sete amas conceberam dele, e deram-lhe cinco filhas e vinte e nove filhos. Duas escravas, que também alcançaram, pariram sete fêmeas e machos vinte e um. Falando biblicamente conheceu Ana da Cunha, uma tia de quem teve três meninas. E nem a própria mãe se viu desobrigada, que dele acabou a conceber dois varões.
Ser pai dos próprios irmãos era exagero que nenhum cânone tornava obrigatório. Do virtuoso preceito constava apenas ser pai na generosidade, e irmão no sofrimento. Porém em separado. Mas o padre Costa não entendia assim. E o viajante, metendo o nariz onde não é chamado, acha cruenta a sentença mas acaba a concordar com o tribunal. Muito melhor decidiu el-rei João II, que tinha um reino inteiro a governar e poder para o fazer. Perdoou a morte ao padre Costa e mandou-o libertar, por tanto se esforçar a povoar a região das altas beiras, tão ermadas ao tempo como agora voltam a estar.
É caso para dizer que um forte rei fortalece a fraca gente. E não faltarão cobiças por aí, de tais cometimentos. Não é o caso deste viajante, que finalmente adormeceu tranquilo.

Jorge Carvalheira

Portugal profundo – 4

A feira é todas as sextas, mas na quinta à noite começam a chegar. Carrinhas às dezenas, com vidraças cegas para se dormir lá dentro, na tarimba de cima. As mulheres têm saias compridas e acendem fogareiros, os garotos correm entre as árvores, e os homens têm bigode e fumam, conversando. Alguns montam as bancas, espetam no chão os prumos dos toldos, a adiantar serviço. Outros ficam-se a ouvir uns lamentos gitanos, com palmas e castanholas, debaixo dos negrilhos. Depois a noite cala-se, e ao amanhecer o campo está todo mudado. As carrinhas são mil, arrumadas a esmo, e ninguém as viu chegar.
Despejaram caixotes de roupas contrafeitas, e botins de vaqueiro, e sapatos de borracha de fabrico artesanal, e camisas de algodão temos os números todos, e sutiãs de peito avantajado, e saias a cinco euros, e sapatos de pele genuína porque o nacional é bom, e meias de fibra à dúzia, e óculos que protegem dos raios violetas, e perfumes Chanel e Dune e Armani, e serviços de faiança, e cutelarias finas, e bouquets de flores que parecem verdadeiras, e ventoinhas de pé alto, e relógios de parede para pendurar lá na sala, e colares de pechisbeque dos artistas de Marrocos, e bonés de bico de pato à maneira americana, e chás para o costerol, e os problemas da prosta, e para as pernas cansadas e a má circulação, e este pau de cabinda para acabar com as tristezas, e as artroses da coluna, e este chá de quebra-pedras, e frascos de emagrecer, e ténis de boa marca, e chapéus de palha à antiga, e facas de serra alemã, e suportes de garrafas e tudo o mais que é preciso no lar, e discos do Leonel ó Maria dá-mo tu, e tapetes de gazelas, e vergas feitas à mão, e canapés de bambu, e flutes para a champanha, e gomas e caramelos, e DVD’s com dinossauros, e cassetes da Romana aperta aperta com ela, e fatos de casamento, e masseiras de madeira, e sandálias ortopédicas para quem sofre dos pés, e boinas à espanhola, e bermudas para o calor, e vestidos indianos, e buganvílias em vasos, e azeitonas andaluzas, e cintos de cartucheira, e tesouras de podar, e mochilas de viagem, e cantis de caçador, e ancinhos de jardinar, e carpetes de leões, e mobílias de salão, e motas-miniatura para maiores de 14, e canas para ir à pesca, e medidores de tensão, e narguilés de berbere, e ratoeiras de mola, e oliveiras cordovil, e panelas de três pés, e enxadas de cinco arráteis, e queijos de cabra caseira, e barbies que dão à perna, e almofadas de coração, e discos da Floribella mexe mexe que é tão bom, e meadas de algodão, e helicópteros apache, e óculos de visão nocturna, e casacos camuflados, e atafais para o jumento, e ferros de picar pedra, e melões pele de sapo que chegaram de Almeria, e molhos de couve troncha, e sacos de hipericão, e camisolas do Ronaldo, e presuntos de Lamego, e o melhor lombo para assar, e bandeiras da selecção, e toalhas de Barcelos por dez euros leva quatro, e pipas de carvalho francês, e manjedouras de ferro, e pimentos do Padrón, e tanques americanos para ir à guerra dos mouros, e cassetes do Tó Costa tu tens que me dar o pito, e figos lampos do Douro, e gaiolas de plástico que já trazem melro dentro, e bordados da Madeira que isto hoje é para rebentar…
O povo discute preços, e às vezes fala francês enquanto vai passando. Os pregões afogam-se uns nos outros e a gritaria não pára. Mas ao meio dia a energia esmorece. Há corpos transpirados que abancaram sob os toldos, mandam vir frangos assados. Eu encolho-me num banco, peço um jarro de palheto e escrevo as minhas notas. Que remédio, se estamos no mesmo barco. Ficou-nos este esqueleto sem chegar a ganhar corpo, e o comboio da Europa passou por cá sem parar. De alguma forma temos que viver.
À tarde o campo está outra vez vazio, durante uma semana. E os lixos ficam para a câmara, que se cobrou das derramas.

Jorge Carvalheira