Dei com ela no passeio, ao fim da tarde, saíra há pouco da caixita de rodas. À frente, num tapete sobre o empedrado, tinha a dormir um gato de peluche, abrigado a uma sombrinha de bonecas. Ao lado um bouquet de plástico e a caixa do violoncelo, para recolher as moedas.
A violoncelista lembrava os trinta anos e tinha uma flor no cabelo, a derramar-se em cachos pelos ombros. Vestia a indumentária da função, ampla saia bordada até aos pés, uma blusa de cetim, o coletito preto a aconchegar o peito. E era diferente das outras porque tocava de pé. Fixou o espigão numa prega da calçada, acomodou no ombro o braço do instrumento, correu a mão esquerda nos bordões. E ficou ali suspensa, de arco enristado na direita, a afagar num trejeito um caracol rebelde.
O maestro é alemão, vem do Oberhammergau, vai dizer-mo no fim do recital. Ampara-se a uma muleta e reclina sobre a artista os alongados braços, a bafejar-lhe o sopro demiúrgico de quem vai repetir a criação. Das pontas dos dedos enluvados sete fios o ligam ao corpo da mulher, que volta a sujeitar o caracol. E quando liga a máquina do som, desliza ela os dedos sobre o ponto, tange nas cordas o rufar do arco, cresce na rua a melodia da Scarborough Fair.
Começou por hesitar, a multidão, apanhada de surpresa. Depois, à melopeia ondulada do El condor pasa, rendeu-se de encantamento. Até um grupo de catraias que passava ali ficou, a ondear os quadris. Lá para o final, mesmo com falta de naipes, o maestro aventurou uma sonata célebre. E a plateia, que lhe não sabia o nome, perdeu a compostura e desatou a aplaudir.
Nos intervalos choviam as moedas na caixa do violoncelo. Quando as ouvia cair, almofadado na caixita de rodas, um caniche abria o olho e ladrava uma alegria.
Jorge Carvalheira
Ladrar a alegria: bom. Repito: bom.
Abraço.
Excelentíssimo senhor,
Criei um blogue de opinião que agora estou a divulgar.
Se tiver interesse, não deixe de fazer uma visita:
http://www.cegueiralusa.blogspot.com/
Caso goste, por favor divulgue, pois pretende ser mais um espaço de discussão em busca de uma cidadania mais activa.
O meu muito obrigado.
Com os melhores cumprimentos,
José Carreira
Finalmente vejo que em Portugal a cultura da música clássica de rua ganha raízes! Cegueira – cegueira mesmo – é esse medo contínuo do ridículo que se incute sistematicamente nos jovens. A todos eles, e a todos os momentos. Há coisas que a inteligência, o amor e a esperança mandam muitas vezes que não vejamos. Outras, o país que as veja, finalmente! Mesmo que tenha de engolir um sapo. Jovens tocando violino, violoncelo ou outro instrumento qualquer, no meio da rua, é algo para ser apreciado. É uma bênção de Deus, a não destruir com essa ignóbil fé na tecnologia que nos vem instrumentalizando e, seguramente, cegando. A música pode continuar a ser artesanal. Como as melhores coisas da vida.
Adelaide Chichorro Ferreira