Arquivo da Categoria: José do Carmo Francisco

O Mundo começa nas Escadinhas do Duque

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No já distante ano de 2004, mais precisamente no dia 9 de Outubro, o poeta brasileiro Alexei Bueno andou por aqui e escreveu um poema com o título de «Lisboa». Trata-se de um soneto que termina com estes versos:

Poço dos Negros, Praça da Figueira
Escadinhas do Duque. Com os amigos
Mortos, vivos, é andar a noite inteira

No sonho, em meio aos planos e perigos
Ou será já verdade, ou bebedeira
Tal dor dos dias límpidos e antigos?

O curioso de tudo isto é que o seu livro A árvore seca vai ser publicado em Portugal dentro de pouco tempo pela Editora Bonecos Rebeldes que (por notável coincidência) fica situada nas Escadinhas do Duque, no número 19-A. No mesmo lugar onde se estão a publicar, a um ritmo paulatino e decidido, todas as aventuras do Príncipe Valente. Pela primeira vez em Portugal e com tradução directa do original, sem traduções transversais do francês ou do castelhano.

Mas esta de um poeta brasileiro ter ficado encantado em 2004 com um designação toponímica invulgar, escrever um poema no qual regista esse encanto e esse poema ser editado em 2007 por uma jovem editora situada nesse lugar, é obra!

José do Carmo Francisco

O homem que não lia livros

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Eduardo Gageiro, Bairro Alto

Moro no Bairro Alto desde 1976, mas vivo em Lisboa desde 1966. E comecei por viver em Campolide uns meses e em Santa Catarina vários anos. Quer isto dizer que são já 40 anos de convívio permanente com alfarrabistas, leilões de arte, antiquários, livrarias, bibliotecas, etc.

Outro dia fui ver a exposição de mais um grande leilão no Palácio do Correio Velho, ali na Calçada do Combro. Claro que não tenho dinheiro para mandar cantar um cego, mas vou lá pelo prazer de ver. Neste caso descobri um quadro de Sousa Pinto, um notável pintor paisagista que nasceu em Angra do Heroísmo no ano de 1856 e faleceu na região da Bretanha francesa em 1939. Trata-se de «Acendendo o cachimbo pela madrugada», um quadro muito famoso que vale pelo menos 30 mil euros. Vejo a seu lado quadros de Silva Porto, Dominguez Alvarez, Jaime Murteira, Isaías Newton e muitos outros. Não posso comprar, mas venho feliz com o que vi.

De repente, suspendo a marcha porque descubro um jornalista dito cultural, numa minúscula galeria de arte, a falar para uma pequena plateia. Paro e fico a pensar. É este o homem que no seu jornal viu os meus livros um a um e sistematicamente dizia «este não interessa nem ao Menino Jesus» Bastava-lhe olhar o nome do autor e o título.

Este pobre e pequeno homem não percebe que a história da literatura não passa por ele. No tempo de Cesário Verde quem era conhecido era Cláudio Nunes, no tempo de Eça de Queirós quem era popular era Pinheiro Chagas e no tempo de Camilo Pessanha o poeta era Augusto Gil.

Olho para o homenzinho sem nenhum rancor. Ele está, como sempre esteve, a falar para o boneco. Eu, pelo contrário, estou vivo e tenho pessoas que tomam a sério o que eu escrevo. O resto é conversa.

José do Carmo Francisco

Eduardo Mourato ou as emoções pressentidas

Eduardo Mourato (fotógrafo nascido em Portalegre no ano de 1966) expõs no Centro Comercial Fonte Nova de Lisboa um conjunto de fotografias sobre uma actividade artesanal que está hoje em dia quase em vias de extinção. As salinas são locais onde se desenrola uma espécie de serena liturgia da paciência. Numa solidão extrema e com a utilização de utensílios muito rudimentares, homens sem rosto e quase sem voz, organizam de madrugada o trabalho que os raios de sol são convidados a realizar durante o dia. A água salgada vai, num processo muito lento, dar origem ao sal, um produto tão velho na Terra como o próprio Homem. Tão antigo que a palavra salário deriva do seu nome, um nome assim antigo e cheio de peso. Muitos soldados recebiam o seu pré em sal e o salário nunca mais deixou de ser uma palavra nobre, o preço do suor, o valor do esforço, a contrapartida para a silenciosa abnegação de quem trabalha junto às matérias mais elementares do Mundo – a água e a terra.

As fotografias de Eduardo Mourato são uma serena recusa do bilhete-postal. Nelas não surgem salineiros em esforço mas antes as lentas etapas da construção das pirâmides brancas, ponto de encontro entre a força dos homens e o poder da Natureza.

São essas as emoções pressentidas que, qual música sem nome nem destino, povoam as salinas do Algarve que estas fotografias trazem de volta para todos nós numa cidade onde tudo (ou quase tudo) é hostil, frenético e veloz.

José do Carmo Francisco

Nova livraria, livro excêntrico e piada sobre holandeses

Soube por acaso, mas foi bom saber. Depois de a zona onde vivo ter perdido duas livrarias (Romano Torres em São Mamede e Diário de Notícias no Chiado), gostei de saber que nasceu uma nova livraria entre São Bento e o Príncipe Real, mais em concreto na Travessa de S. José, nº 1.

Foi também por acaso que nela descobri o livro Dicionário Excêntrico , de Amadeu Ferreira de Almeida, uma edição da Portugália. Organizado (como é natural) de «A» a «Z», este livro tem uma entrada curiosa em «Idade»: «Não se deve confiar nunca na mulher que nos diga a sua verdadeira idade. A mulher que o faça é capaz de dizer tudo.» O autor é Óscar Wilde. O mesmo autor surge em «Mulheres»: «As mulheres foram feitas para serem amadas, não para serem compreendidas.»

Já na entrada «Vinho», trata-se de um provérbio holandês que diz o seguinte: «O primeiro copo para a sede, o segundo para o alimento, o terceiro para o prazer, o quarto para a loucura.» Sobre «Poesia», há uma frase de Camilo Castelo Branco: «A poesia não tem presente; ou é esperança ou saudade.» A propósito de «Falar», surge esta frase de Samuel Johnson: «Um francês tem sempre que falar, quer conheça o assunto quer não; um inglês fica contente e calado quando não tem nada que dizer.»

Sobre a palavra «Açúcar» temos esta história engraçada: «Um convidado ao tomar o chá, pede açúcar à dona de casa. Se ela é irlandesa, entrega o açucareiro. Se é inglesa, pergunta: ‘Uma pedra ou duas?’ Se é holandesa, diz: ‘Mexeu bem? O açúcar está no fundo’». O texto aparece como ‘anónimo’, mas a minha surpresa é devido a não serem habituais piadas sobre holandeses. É curioso. Fui ver a data do livro – é de 1961. Tinha eu 10 anos. Cedo para ler livros excêntricos.

Os galegos não são tartamudos, estúpidos ou tontos

Na sua edição mais recente, o Dicionário da Real Academia Espanhola chama aos galegos «tartamudos, estúpidos e tontos» e isso, naturalmente, está a provocar reacções negativas. O filólogo Román Raña, o poeta Salvador García Bodaño e o escritor Xosé Luís Méndez Ferrín juntam-se ao deputado Francisco Rodríguez nos protestos. Querem que a Real Academia Espanhola volte atrás nas palavras do verbete.

Eu, que tenho amigos galegos, frequento restaurantes galegos e gosto de literatura galega, também fico indignado. Há quarenta anos, quando cheguei a Lisboa para trabalhar, via todos os dias um galego segurando um molho de cordas no alto do elevador da Bica à espera de ser chamado para transportar móveis. «Galego» era sinónimo de moço de fretes. Hoje esse trabalho é feito por empresas. Quando vim há trinta anos morar para a Travessa de S. Pedro, ocupando o espaço que em tempos foi da revista «Távola Redonda», ia muitas vezes comprar vinho a granel a uma taberna de um galego que também vendia carvão. «Galego» era sinónimo de taberneiro. Hoje o vinho é vendido por empresas e em garrafas.

Os dicionários devem respeitar as mutações da história da língua e das pessoas que usam essa mesma língua. Mas, vendo bem, este problema não acontece só com a palavra «galego». O mesmo dicionário da mesma Academia chama aos ciganos «alguém que rouba ou tenta enganar os outros» e às sinagogas «reuniões com finalidades ilícitas». Sendo assim, estamos conversados…

José do Carmo Francisco

SPORTING – Os que escrevem com os pés em cima da mesa (II)

Escrever com os pés em cima da mesa tem sempre más consequências. Para além de tudo o mais, tal atitude demonstra uma enorme falta de respeito pelos outros que são assim obrigados a conviver com estes xerifes sem estrela. Sem estrela e sem grande capacidade para escrever textos que os outros percebem.

Por exemplo, a jornalista que escreve com os pés em cima da mesa chama duas vezes Vasco Campos a um jogador cujo nome é Vasco Oliveira. Sobre o jogo Sporting-Alverca em «juvenis», escreve em dois parágrafos diferentes duas opiniões distintas. Começa por escrever que os leões «tiveram pouca sorte na finalização» mas, mais à frente, afirma que os leões acabaram por empatar «por falhas na finalização». Ora «sorte» é uma coisa mas «falhas» é outra e bem diferente. Sorte tem a ver com felicidade, com fortuna, com acaso e tudo a correr bem. Ora falhar é errar o alvo. Portanto se a ideia é justificar o empate com a falta de sorte não se utilizam argumentos como falhas na finalização. Porque quem falha na finalização não pode invocar a falta de sorte. Falta de sorte para um atacante é uma bola que bate num poste e vai até ao outro poste e salta para as mãos do guada-redes. Isso sim, é falta de sorte.

O outro jornalista que também escreve com os pés em cima da mesa faz grossa confusão na ficha do jogo Barreirense-Sporting em «iniciados», ao repetir as substituições do Barreirense que assim surgem como se fossem dez e não cinco. No que diz respeito ao Sporting a confusão aparece quando se escreve «35m saiu Daniel Pereira e Ariclene Oliveira», quando deveria estar escrito «saiu Daniel Pereira e entrou Ariclene Oliveira». Coisas que acontecem a quem escreve com os pés em cima da mesa.

José do Carmo Francisco

SPORTING – Os que escrevem com os pés em cima da mesa (I)

A jornalista que escreve com os pés em cima da mesa não pára de surpreender. Como fuma muito, o fumo complica no cérebro o valor das palavras. Usa uma expressão sem sentido para descrever uma festa de adeptos de um clube. Escreve «o bom ambiente e a alegria foram a tónica dominante» e no parágrafo seguinte repete «a música foi sempre a tónica dominante». A jornalista que escreve com os pés em cima da mesa não sabe que a tónica é a primeira nota numa escala e a dominante é a quinta. Logo não pode haver uma nota que seja ao mesmo tempo duas coisas. O que ela queria escrever se soubesse era a palavra «leitmotiv», mas o fumo não a deixou.

Escreveu que os adeptos assaram um porco «no local» como se não fosse óbvio que o porco não podia ser assado a vinte quilómetros. Mais à frente repete-se num confuso parágrafo: «Os dois técnicos aproveitaram para conviver com os adeptos e aproveitaram para pedir o apoio de todos». Como escrever é ‘revelar o pensamento’, a jornalista que escreve com os pés em cima da mesa escreve textos confusos porque confusos são os seus pensamentos.

O jornalista que escreve com os pés em cima da mesa não fica atrás da colega. A propósito de um jogo de futebol entre os juniores do Sporting e os do Alverca, assinala na ficha que o resultado ao intervalo era de 6-1, quando era de facto 3-0. E confunde os nomes dos jogadores, chamando Bruno ao Marco Matias. E confunde os leitores quando escreve: «O Alverca visitou a Academia com o objectivo de prolongar o primeiro golo leonino», o que significa que o Alverca queria que o primeiro golo se prolongasse até ao minuto 90. O que ele queria dizer era «com o objectivo de prolongar o aparecimento do primeiro golo». São assim os que escrevem com os pés em cima da mesa.

José do Carmo Francisco

Da pastorinha de Fátima ao rei D. Duarte

Sou um prático das notas de leitura; não tenho qualquer diploma. Escrevo sobre livros em jornais e em revistas desde Agosto de 1978. Comecei no Diário Popular com Carlos Pinhão e Jacinto Baptista. Sou do tempo em que não havia computadores e os jornais eram feitos com granéis de chumbo. Tenho 56 anos e sou um velho.

Mas, se alguém me perguntasse o que é que mudou para pior nos livros que todas as semanas se publicam no nosso país, eu diria que é a arte final. Hoje fazem-se contracapas arrepiantes, cometem-se erros terríveis no «miolo» dos livros. Parece que ninguém se preocupa em ler os textos de ninguém. A figura do revisor está em vias de extinção. Um certo «engenheiro», administrador de uma empresa jornalística, disse sem partir os dentes: «Isso não é preciso; os computadores fazem tudo!». O parvo…

Pois acabei de ver algumas coisas curiosas em dois livros – Máscaras de Salazar de Fernando Dacosta e D. Duarte de Luís Miguel Duarte.

Na contracapa do primeiro, refere-se que Álvaro Cunhal fugiu de Caxias, quando foi de Peniche [já sobre isto escrevi no Aspirina]. Na página 250, aparece a pastorinha de Fátima como Francisca e não como Jacinta, seu nome real, que até tem uma rua em Lisboa. Na página 107 e em outras páginas desse livro, aparece uma infecção que se chama «colecistite» tratada como «coleciste». Na página 254, refere-se «uma bala na câmara» quando se fala de um crime, mas na página 257 já aparece «não tinha bala na câmara».

Na biografia de D. Duarte, lê-se na página 116, a propósito do seu casamento: «As dificuldades causadas pela transferência apressada das celebrações de Coimbra para Évora pareciam parcialmente ultrapassadas». A verdade é outra: o casamento era para ser em Évora, e foi mudado para Coimbra.

José do Carmo Francisco

Não se pode chamar madeirense a um clube da São Miguel

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Não bastava ao Sporting Clube de Portugal ter um director de jornal que aparece sempre de braços cruzados e se assumiu como director de comunicação pouco tempo antes de serem divulgados em praça pública os ordenados dos jogadores da equipa «A».

Agora surge uma notícia errada chamando madeirense ao Marítimo Sport Clube de Ponta Delgada. É ver o site «www.sporting.pt» para ler o texto do enviado especial do site e do jornal à Academia em Barroca de Alva no dia 25-3-2007 para ver como designam como madeirense a equipa açoriana. Na página 10 do jornal de 27-3-2007 o erro surge repetido e percebe-se porquê: nem o redactor nem ninguém leu o texto errado que assim passou do site para o jornal.

Ora a Calheta é uma freguesia muito especial em Ponta Delgada e diz muito aos sportinguistas. Ali nasceu Mário Jorge, jogador leonino e internacional que nunca esquece de referir o facto de ter nascido na Calheta. Esta confusão de atribuir um bilhete de identidade diferente ao clube micaelense tem a ver com uma questão que é transversal à sociedade portuguesa actual: os jovens nunca perguntam – nem quando sabem nem quando não sabem. Bastaria ter estado atento à maneira de falar das pessoas do banco dos suplentes pata perceber que eram dos Açores.

Eu próprio vi jogar essa simpática agremiação desportiva no dia 18-3-2001 em Alcochete num jogo cujo árbitro foi Luís Rato, o treinador Rui Palhares e o delegado António Atanásio. O resultado foi 19-0 e marcaram os golos: Bruno Severino (1), Miguel Veloso (1), Emídio Rafael (1), Zezinando (2), Bruno Filipe (3), João Moutinho (1), Bruno Soares (4), Vítor Farinha (3), Amílcar Pinto (1) e Ricardo Dias (2). Qual madeirense qual carapuça…

Dissertação sobre uma pequena baleia azul

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João Camilo

Pego num livro de João Camilo. O título é bonito, apelativo e revelador – Nunca mais se apagam as imagens. A editora tem um nome curioso – «Fenda». Descubro então um marcador assinalando um poema que começa assim:

Os poemas deles falam de poetas e de pintores
das cidades que outra arte tornou inesquecíveis.
Com títulos ingleses e palavras estrangeiras
tentam escapar ao tédio e adoram o bezerro já idolatrado.
Literatura que celebra a literatura, arte que comemora a arte
não nos resta como projecto de futuro senão a aventura alheia?

Para além do poema e das suas perguntas pertinentes, fiquei a pensar no marcador. Trata-se de uma sorridente baleia que atira para o ar a água azul que acompanha a sua respiração. Mas é tudo artesanato. A minha filha Ana Maria tinha ao tempo o saudável hábito de não deitar nada fora e por isso, em vez de comprar marcadores na Papelaria Fernandes, fazia ela própria os marcadores com aquilo que sobejava dos seus trabalhos de estudante de arquitectura.

Digo ao tempo, pois presumo que o marcador foi feito em 1996; ainda não era conhecido em Lisboa o Café Peter que só apareceu com a EXPO 98. Esta ideia de manter, poupar e reutilizar tem muito a ver com aquilo que ela aprendeu com a avó Olímpia. A minha mãe tinha uma máquina de costura e já na minha infância fazia muitas vezes para mim camisas novas com camisas velhas do meu pai e calções novos com calças velhas do meu avô que, por ser carpinteiro, as tinha mais poupadas.

Hoje a Ana veste ao meu neto Thomas em Londres jardineiras feitas pela costureira D. Armanda a partir de calças velhas do meu filho Filipe ou da minha filha Marta. Não me canso de olhar este marcador com a pequena baleia azul.

José do Carmo Francisco

O doutor da mula ruça existiu mesmo em 1534

Quando por brincadeira as pessoas se referem ao primeiro-ministro de Portugal como doutor da mula ruça, estão (sem o saber) a utilizar uma dupla ironia. Primeiro o senhor é mesmo pigarço; depois não está registado na Ordem dos Engenheiros.

Pois a graça disto tudo está em que, no ano de 1534, um tal António Lopes exercia medicina, em Évora onde era muito conhecido, mas não tinha diploma. Tinha estudado em Alcalá de Henares e, por falta de verba para pagar o «canudo», saiu de lá sem o respectivo diploma. Vai daí escreveu ao rei Dom João III e pediu-lhe que o mandasse analisar pelos médicos da corte de modo a poder exercer a sua actividade sem qualquer contestação. Em 23 de Maio de 1534, o livro da Chancelaria de D. João III refere:

«Dom Joham 3º a quantos esta minha carta virem faço saber que o doutor António Lopes, físico de Évora, me apresentou ua carta do doutor Diogo Lopes, meu físico moor, de que o theor de verbo é o seguinte: O doutor Diogo Lopes, comendador da Ordem de Christo e físico moor del Rey Nosso senhor em seus regnos e senhorios, faço saber a quantos esta minha carta de doutorado virem como por António Lopes, físico da mula ruça, morador em esta Évora, me foy apresentado hum allvará dellRey nosso senhor, por sua alteza assygnado e passado per sua chancelaria do qual o trellado he o seguinte: Eu ell Rey faço saber a vós Doutor Diogo Lopes seu fisico moor, que António Lopes, físico da mula ruça, morador en esta cidade, me dice por sua petiçam que elle estudou nove ou dez annos no estudo de Alcala de Henares.»

Fui descobrir esta curiosidade num livro de Orlando Neves, intitulado «Dicionário da origem das frases feitas». A edição é da Lello & Irmão Editores – Porto.

José do Carmo Francisco

Dinis Machado, o poeta obscuro

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No dia 13 de Fevereiro de 1994, Dinis Machado ofereceu-me um poema manuscrito intitulado «II Soneto para Cesário», com uma dedicatória: «oferta e celebração a José do Carmo Francisco no dia do seu 43º aniversário». Segundo me explicou mais tarde, sabia os seus poemas de cor, mas nunca os publicou, porque entendia que não valia a pena.

A edição especial de O que diz Molero vai ser apresentada no próximo dia 21 de Março, dia da Primavera e do 77º aniversário de Dinis Machado. Ao que sei (telefonaram-me), a Bertrand vai fazer uma festa no Tivoli nesse dia.

Como o Dinis espalhou alguns poemas no articulado do «Molero», penso que uma boa homenagem a ele (e a todos nós) será divulgar o tal soneto do poeta obscuro Dinis Machado. Espero que gostem:

Se te encontrasse, agora, na paisagem
Nocturna dos fantasmas da cidade
Contava-te dos nossos pobres versos
No teu rasto de sombra e claridade.

Contava-te do frio que há em medir
A distância entre as mãos e as estrelas
Com lágrimas de pedra nos sapatos
E um cansaço impossível de escondê-las.

Contava-te – sei lá – desta rotina
De embalarmos a morte nas paredes
De tecermos o destino nas valetas.

De uma história de luas e de esquinas
Com retratos e flores da madrugada
A boiarem na água das sarjetas.

José do Carmo Francisco

Álvaro Carvalheiro ou os limites da terra e da água

Há nas fotografias de Álvaro Carvalheiro (Torres Novas, 1938), em exposição no Centro Comercial Fonte Nova de Lisboa, a insistente presença do Homem em diálogo com a Natureza. Desde 1999 que acompanho com interesse e emoção o seu percurso de poeta da imagem. Autor de poemas. Que outra coisa não são as suas fotografias destinadas a ligar de novo aquilo que o tempo separou. E todo o poema é esse projecto de religação.

Nas fotografias de Álvaro Carvalheiro, o Homem defronta o Mundo e as suas mais inquietas perguntas em três Cabos (o Cabo Carvoeiro, o Cabo de São Vicente e Cabo da Roca) e numa praia – a mítica Praia da Consolação. A praia para onde ia todos os anos o poeta Ruy Belo. As silhuetas que enterram os pés na areia ou que fazem a pontuação humana junto aos limites da água e da terra são vírgulas, reticências e pontos de interrogação em forma de gente. A vida e a morte, a alegria e a tristeza, a luz e a sombra, a memória e o esquecimento – são estas as quatro linhas de força que empurram para a ribalta os protagonistas das fotografias de Álvaro Carvalheiro. É um mundo envolto em harmonia, em paz, em bem-estar.

A objectiva do fotógrafo captou não apenas um registo mecânico, mas a carga subjectiva dum ser humano nas perguntas mais essenciais: quem somos, donde vimos, para onde vamos? Não por acaso entre terra e água, em silhueta porque somos pó da terra, mas é a água que nos dá a vida.

Raúl Brandão dizia que a ternura é húmida. Álvaro Carvalheiro vem dar razão ao nosso escritor de há cem anos. Porque as suas fotografias respiram a humidade da ternura com que a sua objectiva aborda e regista o homem entre a terra e a água.

José do Carmo Francisco

Coisas infelizes numa revista chamada Happy

A revista chegou-me às mãos de modo gratuito, embora ostente na capa o seu preço, que é 1 euro e meio. Esse foi o primeiro aspecto insólito. O segundo foi o título em inglês, sendo a revista portuguesa.

O terceiro ponto insólito foi o editorial assinado por Carla Ramos, no qual recorda o dia 20 de Janeiro, dia em que o prédio onde esta revista é feita – o número 11 da Avenida António Augusto de Aguiar, em Lisboa – foi cercado. Escreve a directora que o prédio ficou «seteado» por ambulâncias, bombeiros e polícia. Sitiado é que é, mas passou. Está nos dicionários, mas pelos vistos a revista não tem revisor. Na página 160, surge uma reportagem com um título insólito, também ele: «Um farol no Oceano». Ora se o hotel aí descrito está em Cascais, não me parece que seja no Oceano. Quando muito vê-se do Oceano, que não é a mesma coisa. Mas, adiante.

Sobre o quarto que lhe foi destinado, a jornalista escreve: «Clean é a palavra que melhor define o quarto que me foi atribuído.» Clean, assim sem mais nem menos. Não aparece em itálico nem em negrito. Nem em comas. Segue-se uma frase curiosa: «O barulho do mar chama-me a atenção e ao espreitar vejo que estou a dormir mesmo em cima da rebentação das ondas.» Se está a dormir, não pode perceber o barulho que – deste modo – não pode chamar-lhe a atenção. Por fim aparece o nome e a morada da tal Estalagem do Farol, o telefone e o site na Internet, mas (ó inclemência…) sendo a morada de Cascais aparece a palavra Lisboa a seguir ao código 2750-461.

Não pode – como muito bem diz o Gato Fedorento imitando o professor Martelo. Não pode – tento dizer eu. Mas a minha voz é muito fraca e talvez não chegue lá. De qualquer modo, teimosamente, continuarei a dizer: Não pode. E a repetir: Não pode. Não pode.

José do Carmo Francisco

A serpente cega nos dedos de Fernanda

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E de súbito descubro o rosto de Fernanda na pequena multidão que cruza o Largo das Duas Igrejas, no Chiado. De um lado a Paroquial da Encarnação; do outro lado a igreja privativa dos italianos de Lisboa. Reparo numa serpente cega num dos dedos de Fernanda e lembro-me, de imediato, da Margarida, a heroína do livro Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio.

Margarida no convés de um navio em viagem entre a Horta e Lisboa a conversar com um dos Serpas que fez parte, em tempos, da melhor linha de backs do Fayal Sport Clube nas tardes sem fim do Relvão da Doca. O mítico lugar onde os pioneiros do futebol na Ilha lançaram as raízes do Sporting Clube da Horta, do Fayal Sport Clube e do Angústias. Este lugar onde nos encontramos e eu admiro a beleza da serpente cega num dos dedos de Fernanda, era ponto de passagem de João Garcia quando o jovem aspirante regressava do quartel na Junqueira e, depois de ouvir os últimos boatos nos vários cafés do Rossio, subia por aqui até à Rua da Rosa, ao quarto alugado por cima da capelista, sempre à espera de uma carta de Margarida.

Agora reparo que hoje é dia internacional da mulher. Não sei porquê, mas a verdade é que dos dedos de Fernanda sai um suave cheiro a massa sovada. Afinal já não estamos no Largo das Duas Igrejas, e sim dentro de um romance. Fernanda está com pressa, olha para o relógio e explica que tem que ir abrir as portas da sua livraria.

Eu tenho as minhas obrigações e os meus compromissos. Mas o cheirinho da massa sovada permanece como se tivéssemos os dois, eu e Fernanda, saído do lugar determinado do encontro no Largo das Duas igrejas e entrado logo a seguir nas páginas dum romance inesquecível.

José do Carmo Francisco

A propósito de uma estrela global

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Cristiano Ronaldo anda nas bocas do Mundo. Não só porque acaba de festejar 22 anos, mas também, e principalmente, porque segundo o Diário de Notícias do dia 10 de Fevereiro vale 50 milhões de euros, não enquanto pessoa mas enquanto «marca». Fala-se da hipótese de ele sair de Manchester por mais de 85 milhões de euros. Gostaria de convocar aqui, não opiniões sobre se ele, Cristiano Ronaldo é ou não, uma estrela global como foram Best e Cantona e como é ainda David Beckham, mas sim um poema. Nada mais. Jornalista que fui da redacção de O Sporting desde Agosto de 1988 a Novembro de 2006, lembro-me bem de ele chegar da Madeira com apenas 11 anos de idade. Foi recebido no lar do jogador por Leonel Pontes e Paulo Cardoso. Percebia-se logo que ele era diferente, pois só era infantil na classificação etária. Como jogador não era nada infantil. Entrevistei-o muitas vezes no fim dos jogos. Mas vamos ao poema.

Fala de Leonel Pontes a Cristiano Ronaldo

Tu comias uma banana dentro de um pão
E nunca paravas de jogar em toda a Ilha
Nos torneios diários de futebol de salão
Dando às equipas um toque de maravilha

Nas férias eu já não era o teu treinador
Mas o amigo sempre atento e preocupado
Procurando que te alimentasses com rigor
E seguindo os teus passos por todo o lado

Em Lisboa eu era então o teu motorista
E pronto a ir buscar-te a qualquer hora
Tu ligavas mal o avião chegava à pista
E nós ficávamos a falar pela noite fora

Agora tu fazes anúncios de publicidade
Não tens tempo para o treinador antigo
Mas nada destrói a força duma amizade
E nunca deixei de ser muito teu amigo

José do Carmo Francisco

Um iate, um cais, um copo de gin

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Voltei as costas ao bulício da parte velha da cidade, aos sacos que já cheiram a compras de Natal, à pressa das pessoas nas escadas rolantes dos armazéns e às iluminações da quadra que já estão nas ruas. Uma pequena viagem de Metropolitano é o suficiente para chegar ao Mar da Palha. Com a ponte Vasco da Gama à direita, o Peter lá está à esquerda à minha espera. Um iate, um cais e um copo de gin – eis o lema que, desde sempre, fixei. Não tenho iate, cheguei aqui muito prosaicamente de Metropolitano, mas tenho à minha frente um cais e um copo de gin. Junte-se um livro e uma tosta mista feita com aquele pão tão especial, e temos programa para uma tarde bem passada no Peter do Parque das Nações. Como já estamos no fim do Outono, o dia começa a cair muito cedo. O cinzento vence o azul. Acendem-se as primeiras luzes do lado de lá. Sei muito bem que tenho à esquerda Alcochete e logo a seguir Samouco, Montijo, Barreiro e Seixal, mas o meu espírito diz-me que ali em frente tenho na verdade a Ilha do Pico. As luzes do lado de lá podem ser da Madalena. Estou sozinho na mesa de quatro, mas tenho à minha volta uma solidão povoada. Estão aqui comigo, mesmo sem ninguém os ver, a Eduardina, o Urbano Bettencourt, a Zezinha Lacerda, o Carlos Lobão, o Sidónio Bettencourt, o Emanuel Jorge Botelho, o Álamo Oliveira, o J.H. Santos Barros, o Emanuel Félix. E todos. E todas as vozes. E todos os livros. E todos os filmes a começar por «Gente feliz com lágrimas» de João de Melo e Zeca Medeiros. Sem um iate, mas com um cais e um copo de gin eu posso convocar a paisagem e o povoamento dos Açores aqui no Parque das Nações. E ser feliz. Mesmo se for apenas nestes momentos de alegria breve numa tarde cor de cinza.

José do Carmo Francisco

Pelos olhos de Célia

Pelos olhos de Célia passa toda a profundidade e todo o silêncio dos caminhos do Sul, toda a solidão dos montes perdidos entre o vento e a luz, todo o longe das planícies secas neste Verão que parece não ter fim.

Emília, a dona da casa onde escuto e contemplo Célia, serve-nos um aromático café que se perfila na mesa ao lado de uma taça de arroz-doce e um prato com algumas batatas doces acabadas de assar no forno.

Pelos olhos de Célia passa uma paisagem povoada pela saudade: o arroz-doce lembra as alegres mondadeiras com lenço e chapéu que regressam a cantar do campo ao fim do dia e a batata doce lembra as jovens campaniças que passam a caminho de casa com o cesto dos mimos da horta fechando assim as portas da tarde.

O lugar onde Célia sorri e fala de mansinho tem o estuário do Tejo à esquerda e a Estrada de Pegões à direita. Entre a água e a terra, entre os pescadores e os camponeses, há neste lugar um intervalo onde apetece ficar. Como se o sal destas velhas salinas sugerisse o prolongamento deste encontro entre água e terra. Assim o encontro ficaria conservado numa espécie de arca onde o olhar de Célia – suas memórias e suas paisagens povoadas – não se iria perder na monotonia e no desgaste de todos os dias.

Pelos olhos de Célia passa uma música suave cruzando, de maneira harmónica, as cantigas das mondadeiras e as melodias da viola campaniça. É essa música, essa mistura da voz das raparigas e da viola campaniça, é essa música que eu continuo a ouvir em todos os cruzamentos da estrada no caminho de regresso às convenções, às conveniências e às obrigações do quotidiano.

José do Carmo Francisco

Ainda a «Justiça de Torres Novas»

Na minha qualidade de juiz social do Tribunal de Menores de Lisboa, já com catorze anos de experiência, não posso calar a minha revolta pela decisão tomada no Tribunal de Torres Novas. O pai adoptivo de uma criança foi condenado por sequestro da mesma quando afinal tem tomado conta dela desde os três meses de idade, quando a mãe biológica lha entregou devido à sua incapacidade para cuidar da menina com um mínimo de condições de conforto. Desempregada e abandonada pelo pai biológico da criança, a mãe brasileira tomou a melhor decisão em favor da vida futura da criança. Entregou-a de boa-fé a quem a recebeu de boa-fé e lhe tem dado todo o carinho ao longo de cinco anos. O superior interesse da criança é que deve sempre pautar todas as decisões do Tribunal, seja ele de Torres Novas ou de outra qualquer comarca. Condenar por sequestro o pai adoptivo que sempre tratou bem a criança desde os três meses de idade não é – seguramente – defender o superior interesse da criança. Se fosse julgado nos juízos onde trabalho, este caso nunca teria este desfecho. Eu nunca assinaria por baixo uma sentença que considera sequestro a recusa de um casal entregar uma criança que tem tratado como filha ao longo de cinco anos a um pai biológico que só agora se interessou pela filha e que não esteve nunca presente nem quando soube da gravidez nem quando a criança nasceu. Como além de juiz social também sou jornalista, ouvi dizer que é uma pessoa da família do pai biológico que está a puxar os cordelinhos. E a pagar a uma equipa de advogados para ganhar a criança como se fosse um troféu de caça. Justiça de Torres Novas: um caso em que o Direito, uma vez mais, é o maior inimigo da Justiça.