
Ontem na rubrica Pisa-Papéis do «Expresso»
Nos planos de José Sócrates, as relações da Europa com o Brasil devem primar pela «compreensibilidade» e pela «coerência». Assim o disse, há dias, na RTP. A coerência entende-se. Mas terão essas relações de ser, também, compreensíveis, transparentes? É o óbvio, para além de ser redundante. Ora, o contexto indicava que, ao pedir «compreensibilidade», o actual presidente europeu desejava que as relações fossem amplas, multiformes, abrangentes. Aquele «compreensível» português está, ali, sugando tranquilamente semântica ao «comprehensive» inglês. Em Bruxelas, isto facilita a vida aos intérpretes. Mas, numa televisão portuguesa, semeia a perplexidade.
Esta deriva semântica vem atingindo, de há tempos, outras palavras portuguesas, sobretudo adjectivos e advérbios, sempre sob a pressão do inglês. É o caso de «específico», usado em vez de «concreto». «Houve várias ameaças específicas», lia-se há pouco no «Público». E é corrente lermos e ouvirmos «neste caso específico» por «neste caso concreto». Observe-se, também, o uso de «dramático» por «drástico», «radical». «O mundo mudou dramaticamente», dizia um locutor da TVI, no sábado passado, apresentando as 7 Maravilhas. Ele queria dizer «radicalmente», «drasticamente».
Assentemos nisto: o mal não é importarmos do alheio. No passado, chegaram-nos milhares de vocábulos, primeiro por via do castelhano, depois do francês, recentemente do inglês. O que transtorna o idioma é a pacóvia importação da semântica.
Assim, quando lemos que alguém chegou ao fim da vida «virtualmente cego», ou que certo político soube «virtualmente pela imprensa» da sua demissão (tudo de novo no «Público», o nosso diário de qualidade), que entendemos? Nada. Até vermos que há um decalque de «virtually», que significa «praticamente», «quase». A balbúrdia agrava-se com «eventualmente», usado no sentido inglês de «finalmente», «por fim». Diz-se-nos que um doente «eventualmente morreu», quando o pobre senhor «acabou por morrer». Já o novo sentido de «aparentemente» estabeleceu, esse, a confusão total. Detenhamo-nos aqui.
O inglês «apparently» (tal como o francês «apparemment») não corresponde ao nosso «aparentemente», que quer dizer «só na aparência, não na realidade». O termo inglês (e o francês) é bem mais positivo e significa «como tudo indica», «pelos vistos», «ao que se sabe», «segundo consta» e mais formosíssimos giros pátrios. A cópia apatetada da semântica alheia conduziu, hoje, à perfeita indefinição. Quando ouvimos que «o incêndio aparentemente está dominado», ficamos hesitantes entre o alívio e o desassossego. E quando se pergunta a alguém «O Zé é rico?» e nos respondem «Aparentemente», o Zé continua o mistério que era.
Que fazer, pois? Isto, que é decisivo: percebermos que este nosso idioma, sendo primoroso, é também frágil e requer vigilância. Que, deixado a si, não se safa.
Fernando Venâncio