Arquivo da Categoria: Fernando Venâncio

Ana Paula Tavares

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Estou em Roterdão, onde esta semana decorre a edição 37 do festival da Poetry International. Em anos anteriores, sobretudo nos anos 80, muitos poetas portugueses, ou de língua portuguesa, por aqui passaram. Lembro-me sempre de Fernando Assis Pacheco, de Egito Gonçalves, de Sophia.

Este ano, o nosso idioma está representado por Ana Paula Tavares, angolana, a residir neste momento em Portugal. Alguma informação sobre ela e os seus livros está no site da Editorial Caminho.

Aqui fica um pequenino poema que – no workshop de tradução que, este ano, aqui dirijo – foi, como outros poemas seus, traduzido para inglês, francês, castelhano, neerlandês, frísio, dinamarquês, africânder e croata.

O Viajante

Parou para traçar as sandálias
E olhar a terra arrepiada
A dar à luz
Luas de prata.

Você

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Há o «você» tímido. Julgávamos poder usar «tu», mas receamos ferir. «Você podia baixar o som?»

Há o «você» jogando pelo seguro. Usar «o senhor» parece-nos exagerado respeito, mas falta-nos descaramento para o «tu». Costuma durar pouco.

Há o «você» prepotente. É o do patrão com o trabalhador. O do mandão das berças com o empregado de mesa na cidade.

Há o «você» desdenhoso. Quando substitui um «tu» já instalado, é assassino.

Há o «você» carinhoso. O que usamos com as crianças. Evita-se o pronome, mas usam-se as formas verbais. «Ande, coma a papinha».

Há o «você» filial. É comum no Norte, mas raríssimo no Sul.

Há o «você» anti-autoritário. Usam-no os pais para os filhos. Mesmo quando os filhos os tratam por… «tu».

Há o «você» telenovela. Ninguém se lembraria de usá-lo, não soasse ele tão brasileiro. Sente-se a gente um pretendente duma sinha moça, ou ela própria.

Há o «você» publicitário. «Existimos para você».

Há o «você» snob. Usam-no em boas, mas muito boas famílias, o homem para a mulher, a mulher para o homem. O irmão para a irmã, a irmã para o irmão. «Maninha, traga-me o jornal, seja simpática».

Há o «você» de escritório. Dez, vinte, trinta anos, dia após dia ao lado daquele tipo. Mas nunca lhe hei-de dar confiança. Mesmo quando sairmos daqui velhinhos.

Há o «você» quem-quer-que-você-seja. Um mapa, uma setinha e a informação «Você está aqui»

Conhece você outros «vocês»? Diga quais.

Estação terminal [actualização]

O nosso TT achou-o um texto à Valupi. Não se podendo negá-lo, tem de reconhecer-se-lhe grande classe. Apareceu num comentário ao post anterior e foi modestamente assinado por «Zé das Couves». Merece estar aqui. Título da minha responsabilidade.

Não existe nada mais triste do que uma estação terminal. A beleza de uma linha férrea é a sua continuidade, o padrão interminável, madeira sim, madeira não, a estender-se para um lugar que os olhos não vêem mas o coração adivinha. Fico de pé, junto ao carril, e imagino aquela força que passa sem se deter, o delicioso impacto do vento que me empurra para trás sem me tirar do lugar; o som, depois o som perdendo-se enquanto galga os espaço de uma descoberta constante, lado a lado com o adolescente que nos olha do banco de trás de um carro. Uma revista aberta, um sono em recuperação, um olhar para o horizonte sem sincronia possível com o pensamento.
Uma estação terminal é um lugar triste. Uma parede que é um nada. Há-de haver um. Há-de haver um dia um comboio que, com a sua pesada vontade, não se deterá. Há sempre um. Por cada comboio que passou vem sempre outro a caminho.

«Zé das Couves»

Actualização
Pois é. Indirectamente alertado, fui dar com este texto no blogue A Origem do Amor de Miguel Tomar Nogueira. Estamos agora informados do seu autor. Sirva a oportunidade para sublinhar de novo a qualidade do texto. E para se nos permitir guardá-lo, já agora, também aqui
.

Passeio bloguítico

Não é que eu tenha – e, a meu pesar, não tenho – tempo de mais para estas coisas. Mas acontece-me. Pego em mim, e vou por essa bloguítica portuguesa afora, debico aqui, debico ali. Há sítios de passagem já crónica, diária, maníaca. E há outros, esses ao calhas, fortuitos, para onde o vento soprar. Não vou revelar quais uns e quais outros. Este não é um blogue confessional (digo-o, repito-o, mas também já começo a duvidar).

O passeio de hoje leva-me à Floresta do Sul. É o blogue de António Manuel Venda, jornalista (é director da revista Pessoal, onde tem a rubrica «Os dias do blogue») e ficcionista (romance e conto, volume mais recente «O Amor Por Entre os Dedos»). Desvio ameno e instrutivo, este. Fico a saber muita coisa: que o anterior ministro das finanças amou sempre a legalidade, que ainda há confiança em Scolari (against all odds, e eles são tantos), que Salazar, e isto nem há muito tempo, entrevistou um Vermelho, enfim, que nem o George, o nosso, o tal, está livre de se ecoar a si mesmo.

Depois, passo pelos Canhões de Navarone, criação de Rui Ângelo Araújo, que até há pouco dirigiu essa agora para sempre chorada revista Periférica. Ali prossegue o Rui a sua sina de despertar-nos, sempre sério, sempre divertido, mas abandonou as railleries com que nos falava, no papel da revista. Cada médium o seu tom? Quem saberá dizê-lo? Está, de resto, na melhor companhia, a de J. Rentes de Carvalho, um dos maiores estilistas vivos do nosso idioma, segredo que não é de hoje, e não serei eu a revelá-lo. Passem por ali e verifiquem.

Os links? Para quê! Eles estão aqui mesmo à direita. Já estavam, aliás. Você é que, apressado, não reparou.

Longe de Manaus, o prémio

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Francisco José Viegas anda há bem quinze anos a escrever romances. Alguns foram do melhor que, no ano deles, se escreveu. Agora, finalmente, surge o prémio, o reconhecimento (modesto, eu sei) dum autor que a crítica mainstream sempre olhou de alto. Porque ele nunca alinhou em snobismos? Vá-se lá saber. E nem interessa agora muito.

Longe de Manaus acaba de receber o grande prémio da APE. Acerca do romance escrevi, a 20.08.2005, um apontamento no Expresso. Aqui vai o final.

«No mundo de Viegas, há a ambiência de tranquilas épocas. Isto condiz com a imagem insistente de Portugal nos seus romances, sempre muito insular e interior norte, ou pacatamente portuense, banhando num “azedume triste, português”.

«O contraste com o buliçoso, cheiroso, sonoro Brasil é quase pungente, acentuado pela gramática e pelo boleio frásico brasileiros em que as narrações além-oceano saem redigidas. Depois de experiências de Almeida Faria e de Agualusa, temos agora um romance em que se revezam, extensamente, as duas variedades do idioma. E é facto: Viegas domina a sintaxe e a fraseologia brasileiras, ao ponto de usar giros (‘assistindo televisão’, ‘a faculdade lhe espera’) que, fraternamente, os gramáticos desaconselham.

«Esse vivo alerta linguístico produz excelentes diálogos. Naturais, chistosos, percucientes. Admire-se a tranquila cena do pequeno-almoço de Ramos [investigador da polícia portuense], num hotel de Manaus, com o colega local Osmar Santos. É um topo de elegância e virtuosismo. É também, para o inspector português, o apaziguamente merecido, para mais em pleno Brasil, essa “galeria de malandros simpáticos com quem não queria viver para não lhes aturar a alegria excessiva”. Jaime Ramos dirá mais tarde, já em Amarante: “Tenho uma forma muito estranha de ganhar a vida”. Nisso já havíamos reparado.»

10.000

Que é que pensavam? Acabamos de passar mais um marco no Aspirina. E isto sem termos feito nada, nós os autores. Pois é. Ninguém reparou, eu também não, mas o comentário número 10.000 foi recentemente colocado aqui.

Concedendo: nesse sector, há um vaivém razoável, já que somos imensamente queridos pelos semeadores de spam. Eles põem, nós apagamos. Mas lá se vai conseguindo uma seara limpa.

É essa seara, que um dia a História lerá (às vezes, um mestrando aflito chama-se «a História»), é a ela que os nossos comentadores andam fazendo. Para nosso prazer e nossa instrução. Mandem sempre.

Sena, Sophia, Pacheco e quem os vê

De um amigo meu, magnífico poeta, seguríssimo ficcionista, excelente ensaísta, recebi um e-mail. Era a propósito do meu post de há dias, «As gavetas lá fora», que comentava um post do Abrupto. Porque eu não sou digno de ser o único a ler os juízos do meu amigo, e porque eles podem não ser desastrados de todo, e porque seguramente haverá quem não condivida os seus pontos de vista e saiba dizê-lo, aqui vai o que eu li esta manhã.

«Fernando…. E então as Três Marias não publicaram o livro delas durante a ditadura? E a Natália Correia, se não erro, uma antologia de poesia erótica que também foi apreendida? E não havia putas no país, coisa indecente?

«O tipo de conversa do P Pacheco pode reduzir-se a: este ano, por causa do frio, a natureza não fabricou boa fruta… Só que a perspectiva que ele adopta é no fundo a neo-realista e perfeitamente antiga e inútil e despropositada, hoje já não tem sentido falar-se assim… O que é uma obra-prima, aliás? Para o Pacheco e para nós são as mesmas? O Pacheco simplifica tudo, pensa que é um político clássico culto, o incorrupto inteligente… Mas tudo o que ele diz é inútil… só teria interesse eventualmente há 30 anos… O P Pacheco acredita que está a fazer história e que é personagem importante dela, por isso convém-lhe acreditar que a correspondência do Sena e da Breyner, tão líricos e revolucionários que eles eram, é que conta a história secreta do fascismo e retrata o país… E se conta só a mitomania de cada um dos autores, seres de eleição e narcisos na pátria miserável e miseravelmente habitada por gente que nunca ia à Grécia nem tinha uma visão metafísica da pátria? Nisso o P Pacheco e eles coincidem: dá-lhes jeito a todos que exista um espaço geográfico e imaginário onde eles podem situar-se como pensadores e heróis subjectivos, onde eles poderiam ser admirados se o povo fosse mais fino, onde eles apesar de tudo são figuras de excepção incompreendidas e exiladas… quando tudo o resto é vil… Sabes que mais, Fernando? Puta que os pariu a todos sem excepção… :-) ».

Há editores por aqui?

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Hoje, na crónica que tem no «Expresso», escreve Inês Pedrosa sobre livros e editores, e diz algumas coisas duras e certeiras. À atenção de editores que, não a tendo lido, passem por aqui, destaque-se isto:

«Em Portugal ainda não houve coragem para a cultura democrática do meio termo: dos livros e autores criados nas estufas dos grémios e só para agremiados passou-se para a tabloidização descarada do livro-produto, com o corpo sorridente do autor recortado em cartão de tamanho natural rindo-se para nós e tapando o resto da «mercadoria» nas lojas de livros. É uma situação que convém sobretudo aos editores: aos ditos sérios, dá-lhes desculpa para reduzirem os sectores de filosofia e literatura, ou para manterem os escritores a pão e água de açúcar, recordando-lhes permanentemente a extrema generosidade que fazem em editá-los, neste mundo cruel de «best-sellers» de má vida, dominado pelo poder do capitalismo selvagem e dos hipermercados trituradores. Omitem pequenos pormenores, como esse, central, de que os custos de edição baixaram extraordinariamente com as novas tecnologias. É mais simples convencer os autores ditos difíceis de que a vida nunca lhes será fácil do que trabalhar para os tornar populares.»

As gavetas lá fora

José Pacheco Pereira republica no Abrupto a sua crónica de ontem no «Público» sobre as gavetas literárias vazias. É um texto interessantíssimo, onde se comenta a correspondência, recentemente publicada, entre Sena e Sophia. Mas é a segunda vez (pelo menos) que JPP aborda o tema das gavetas. Quando o fez anteriormente, a 13.2.2003, no mesmo diário, escrevi no suplemento literário (dirigido por Vamberto Freitas) da revista «Saber Açores» a crónica abaixo. Parece-me, de novo, actual.

***

O texto de José Pacheco Pereira, «Revisitando a censura em tempos de selvajaria», no Público de 13 de Fevereiro passado [2003], era um apontamento excelente. Sobre os nossos medos. Sobre as nossas ilusões. Sobre o nosso pouco remédio. Tudo autêntico, tudo triste. Mas havia, no meio de tanto acerto, uma afirmação algo desatenta. Era a propósito de obras ‘na gaveta’, por receio da Censura. O cronista escrevia:

«A verdade é que, depois do 25 de Abril, essas gavetas estavam vazias e não se conhece praticamente nenhum livro (com excepção do “Até Amanhã Camaradas”… de Cunhal), nenhum ensaio político ou filosófico, que tenha saído dessas gavetas».

Essas reticências são já problemáticas (não se sabe aonde apontam), e rasam mesmo o inconcebível na pena de um biógrafo do autor.

Mas a questão importante ficou naquele «não se conhece praticamente nenhum livro», e constatemos que essa precisão, «praticamente», é nítido favor. Só que, do ponto de vista da história literária, está aí uma afirmação leviana. E por isto: pelo menos quatro romances importantes estiveram realmente na gaveta, aguardando melhores dias.

Um foi O Milagre Segundo Salomé, de José Rodrigues Miguéis, pronto para publicação desde 1970, mas arrastando-se na editora por alguma (de resto justificadíssima) inoportunidade política. Apareceu no Verão de 1975, no auge da confusão, passando quase despercebido. Um segundo foi Directa, de Nuno Bragança, romance que chegou a adiantados planos de impressão em Paris, para ser depois contrabandeado para Portugal, por mala diplomática. A revolução veio para esse livro cedo de mais. Quando finalmente surgiu, em 1977, poucos já conseguiam interessar-se por mais uma história da clandestinidade, e menos eram ainda a dar-se conta de que esta era a melhor de todas. O terceiro livro saído da gaveta foi Espingardas e Música Clássica, de Alexandre Pinheiro Torres, esplêndido romance, só aparecido em 1987 mas escrito em 1962, quase contemporâneo dos factos a que se reporta. Seria vítima, ele também, da saturação que atingiu as histórias da resistência. Só o romance póstumo Sinais de Fogo, de Jorge de Sena, de 1980, mas redigido nos anos 60, persistiu na memória dos leitores, possivelmente sensíveis aos excessos sexuais aí descritos, que sempre ajudam a salvar uma obra-prima exigente.

Que todas as quatro obras (ou as cinco, com a de Cunhal) tenham sido escritas e mantidas no estrangeiro, aí está o que pode, e deve, servir de estupefacção e humildade para os filhos que não deixaram a pátria. Porque a verdade acaba sendo esta: se havia coisas verdadeiramente importantes por publicar, era lá fora que estavam.

10.00 h

José Pacheco Pereira acaba de fazer uma nota com link para este post.

O decano de todos nós

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Praia de Moledo (Alto Minho). Ao fundo, o monte de Santa Tegra (Galiza)

«Educámos as novas gerações para que elas fossem mais felizes e, provavelmente, mais apresentáveis. A avaliar pelo retrato de conjunto, não conseguimos nem uma coisa nem outra. Não piorámos substancialmente, mas ficámos com mais dúvidas».

Quem o afirma é António Sousa Homem, decano dos colunistas portugueses, mesmo quando José Pedro Machado ainda vivia. Damos com ele, presentemente, na revista «Notícias Sábado», onde também escreve Francisco José Viegas. Anos a fio, pudemos ler o cronista Homem no «Independente». Essas crónicas foram reunidas, não se sabe por quem, num volume de 2002, «Os Ricos Andam Tolos».

Digo que não se sabe por quem, pois duvida-se de que o venerando dr. Homem se ocupe de actividades tão banais, tão próprias de mais jovens vaidades, e pensando bem tão humilhantes, como a de reunir textos e levá-los a quem os edite. Alguém o terá feito por ele.

Conheci-lhe a curvatura do dorso, mas também a juventude do olhar, quando com ele abanquei, haverá quatro anos, em Moledo, junto à praia. Desejava eu uma autorização para publicar, numa Antologia, uma das crónicas do «Independente». Acabou por ma dar, mas tive que comer com ele uma lampreia, se há coisa que eu mais deteste. Ficámos amigos, mesmo àquela distância de nascimentos («O meu tempo é ainda o do naufrágio do Titanic», escreveu ele), que tecnicamente lhe permitia ser meu avô, bisavô do Luís Rainha e trisavô do Valupi. Do Jorge Mateus não sei, e não ouso imaginar.

O dr. António tem um blogue. Sim, viram bem. Julgava-me eu velho para isto, e há destas alegrias. Verdade seja que o mantém com os textos da «Notícias Sábado» – e, como blogspot, não é nada our cup of tea -, mas continua legibilíssimo. Além de só recomendável para espíritos com estômago. Ora vejam.

«O velho doutor Homem (meu pai) gostava de relembrar, a propósito dos assuntos mais diversos, que nem tudo tem de ter sen­tido na nossa vida; esta afirmação causaria danos fatais nos espíritos modernos, habituados a terem explicações para quase tudo. Mas, felizmente, o velho advogado e bibliómano não chegou a ouvir os psicanalistas da nova geração nem assistiu a nenhuma arenga do dr. Louçã. A minha sobrinha Maria Luísa, que vota no Bloco de Esquerda, acha graça ao ar professoral do cavalheiro e garante que, se é para ser professor, então que seja um destes, convencido de que estudou a lição e de que não pode senão ministrá-la a um auditório de eleitores. Esta forma quase absurda de positivismo enternece-me. Lembro-me do optimismo de cavalheiros de outrora, do demagogo Afonso Costa à alegria suspeita de António Ferro, e reconheço que os sinais se mantêm – a certeza absoluta, um grau elevado de infalibidade, o riso sobre as opiniões que ou não entende ou não Ihe chegam à altitude do seu magnifico cérebro, conservado pelas leituras dos mestres e pela subserviência dos seguidores».

Surpreendente? Pois é, quem nos manda ser jovens. «Um velho conservador», avisou ele, «nunca se surpreende com a história».

Rua José Afonso

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Foto do blogue galego Chiscando un ollo.

Os galegos têm mais uma excelente iniciativa: dar a uma rua de Santiago o nome de José Afonso. Lembram que ele foi sempre um grande amigo da Galiza. E que – facto talvez largamente ignorado – foi em Santiago de Compostela que em Maio de 1972, em estreia mundial, cantou «Grândola Vila Morena».

Encontram-se tais informações aqui, onde, para mais, se pode assinar uma petição em apoio da iniciativa.

Relendo George

Neste país, nunca ninguém lê. Neste país, toda a gente «releu» sempre. Ou ainda o está fazendo. «Estou a reler Camilo…» Camilo, o tal, entenda-se. Está-se a reler «Os Maias», ou «O Milagre Segundo Salomé», ou «A Velha Casa». E cedo relerão toute Agustina, tout Antunes, tout Saramago.

E, está visto, sucede a todos. Estive, e digo-o a corar, estive a reler João Pedro George. Encontrei numa livraria Não é Fácil Dizer Bem (Tinta da China, 2006), e não resisti. Deitei-me, pois, a ler. E – agora vem – eu estava, na realidade, a reler. Uma parte do livro apareceu na «Periférica», o resto, e é muito, está simplesmente online no «Esplanar». Não dou os links, porque me importa, de momento, que prossigam a leitura aqui.

Reli, reli. E só senti uma falta. Duma pequenina nota de rodapé, corpo 8, digamos. É que, das talvez dezenas de atingidos pelo coruscante crítico, só um acusou o toque. Fui eu. Por isso, e só por isso, não teria sido nada de mais que JPG o tivesse assinalado. Ficava-lhe bem. Eu tive esse cuidado, esse bom gosto, quando, há uns anos, publiquei em livro as minhas georjadas, se assim me posso exprimir. Referi as reacções, nem sempre maravilhadas, daqueles que critiquei. (JPG, que abundantemente citou do volumezinho, poderá verificá-lo). Não é por nada, mas poupa-se trabalho aos investigadores, sempre haverá de havê-los, todos precisamos da nossa bucha.

Desse meu texto, fica aqui o essencial. Veio no número 11 da «Periférica», do Outono de 2004. Chamava-se «Aqui não há jantares. Uma resposta a João Pedro George». Dizia outras coisas e também isto:

A peça, «A coutada literária do Expresso», vinha assinada por João Pedro George. Era extensa, como o assunto pedia, e convocava quatro dos mortais que, na celebrada folha, se vêm eternizando. Era uma honra, não a atenção, porque tudo fazemos para consegui-la, mas a assinatura do George. Estava escrito, um dia calhava a nossa vez.

Há muito que o George traz os agentes culturais debaixo de olho. A todos. Anda fazendo a história da literatura actual, a verdadeira, a única realmente importante no futuro. A dos meandros, dos bastidores. É uma actividade meritória, sobretudo porque nunca suficientemente apreciada, sempre antes mirada com desconfiança. Todos quantos em Portugal, e não foram muitos, tentaram um dia a história da literatura coetânea acabaram esquecidos, activamente esquecidos. A universidade e o agenciamento cultural detestam ver-se examinados.

Isso não assustou o George. Continuou rastreando as movimentações de fundo, cartografando os processos e os conflitos, a pequena história que afinal não o era tanto assim. Mapeou, entretanto, alguns sectores da história presente, como as sondas fazem em Marte, criando vistas espectaculares, vertiginosas paisagens. E ali estava eu também, minúsculo relevo na vertigem.

Segundo o George, o Expresso desenvolveu um microclima literário de compadrio, de mútuo elogio, de autocomplacência. Os termos não são dele, sou eu que racionalizo. Nessa refervente calda, dois eixos se lhe desenharam então mais nítidos, mais descarados. Um que liga o filósofo e crítico António Guerreiro ao poeta e crítico Manuel de Freitas. Outro que corre entre o professor e crítico Ernesto Rodrigues e este vosso servidor.

Os medonhos ficheiros de João Pedro George justificam esta topografia. Um pressuroso vaivém de obséquios, de mimos, de conspirações, eis o que transpira da documentação. Ainda um escrevente não esvaziou o bafo, já o outro retoma alento. Dão-se o mote, dão-se a deixa.

Tem de fazer-se a George a justiça de supor nele, sobretudo nele, consciência de que isto é um retrato demasiado composto. É uma organização do caos, uma de numerosas, nem saiu mal feita. As realidades são, ainda assim, mais complexas.

E por aí prosseguia eu. Um dia, a posteridade haverá de ler-me. De reler-me, a desavergonhada.

O Tibete de África

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O primeiro romance de MARGARIDA PAREDES é logo, também, um de violência, de sexo, de traumas. A receita da época? Enganam-se. A história não é de hoje, tem o seu desenlace numa guerra africana dos anos 90 e lança raízes numa Angola colonial, ela também em guerra. Que tudo gire em volta duma jovem gestora portuguesa de telecomunicações, eis o que não se esperava.

Só este pormenor: um dos apresentadores do livro – quarta, 17 de Maio, às 18.00, na Biblioteca Orlando Ribeiro, sita à Estrada de Telheiras, 146, em Lisboa – é este vosso servidor.

Multidão ausente

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A 36.000 pés, e como uma embaladora turbulência, leio um suplemento do NRC-Handelsblad, o diário holandês de referência. Traz um artigo sobre a tese de Kurt Gödel de ser o decorrer do tempo uma ilusão. A tese não convenceu ninguém, nem o seu amigo Einstein. Por um raciocínio que não penetrei totalmente, considerava-se que, a ser realidade o que Gödel intuíra, estaria a máquina do tempo praticamente concebida.

A corroborar tão decepcionante conclusão, o artigo dizia: «Se a máquina do tempo fosse possível, podia ter-se esperado um público considerável na crucifixão de Cristo».

E eu não sei que mais lamentar: se a falta da multidão, com a minha ausência nela, se a inexequibilidade da máquina do tempo. Cristo morreu para nos salvar? É, não se pode ter tudo.

Mais «eduquês»

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Jorge Buescu

Leio no número de Maio de A Página da Educação, excelente jornal de – e para – professores, o artigo de Licínio C. Lima, «O ‘anti-eduquês’ como ideologia pedagógica». É uma crítica, segura e moderadíssima, ao livro de Nuno Crato, O “Eduquês” em discurso directo, da Gradiva. Esse número de Maio, note-se, ainda não está em linha no site da Página.

A questão do «eduquês» e da ideologia que o inspira tinha, em França, excitado os ânimos, e feito estragos, no âmbito do Caso Lafforgue. Já aqui o tínhamos referido, citando Guilherme Valente, que, num artigo no Expresso, se referira ao mesmo Caso.

De uma comentadora nossa, Shyznogud, recebi – e muito agradeço – a referência de um artigo anterior de Jorge Buescu sobre a mesma «affaire». Veio publicado no número de Janeiro/Fevereiro de 2006 na Ingenium, Revista da Ordem dos Engenheiros. O texto foi, informa-se-nos, retirado da página da Escola Secundária de Alberto Sampaio, de Braga.

É um artigo magnífico, como são todos os deste grande mestre da divulgação. Lembram-se de «O mistério do bilhete de identidade e outras histórias» e de «Da falsificação de euros aos pequenos mundos»? É ele.

Destaco a passagem: «Estas políticas foram inspiradas por uma ideologia que consiste em passar a não valorizar o conhecimento, associada ao desejo de fazer a escola desempenhar outros papéis que não a instrução e transmissão do saber, à crença em teorias pedagógicas delirantes, ao desprezo das aprendizagens fundamentais, à recusa do ensino construído, explícito e progressivo, à doutrina do aluno “no centro do sistema” que “deve construir ele próprio os seus saberes”».

Trata-se da mesma visão das coisas – digo eu – que, na teorização literária, afirmava que «o leitor é que constrói o livro», a mesma que, portanto, permitia, e avalizava, monstruosidades, publicadas ou por publicar. Era a mesma, também, que proibia qualquer afirmação de gosto. Sim, proibia-se (e ainda se proíbe, senhores) dizer isto: «Gosto deste livro». Pois, a literatura é para ser ‘analisada’, não propriamente lida, e por nada deste mundo degustada.

Parecendo promover o aluno, essa pedagogia não faz senão abandoná-lo.