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«O louco global» de Paulo Moura

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Não sei se repararam em Paulo Moura, se repararam já. É um jornalista do Público, e de há uns meses que não o dispenso. Já lia reportagens suas na «Pública», mas convenceu-me definitivamente o seu contributo na Antologia Grande Reportagem (Oficina do Livro), organizada por José Manuel Barata-Feyo.

Paulo Moura, se é um repórter vigoroso, não é menos um interessantíssimo cronista. Aqui abaixo, a sua crónica no Público de hoje (vai assim mesmo, não permite link).

Além disso, publicou há pouco um romance, 1147, O Tesouro de Lisboa (A Esfera dos Livros), que ando a ler, que não é de deitar fora (há muito e muito pior), mas ainda não me entusiasmou. Possivelmente, a narrativa longa e ficcionada não é a exacta ‘medida’ deste, de resto, grande escritor.

Divirtam-se, e reflictam, com

O LOUCO GLOBAL

O homem entrou no metro mas não começou logo. Esperou que pensassem que era um utente normal. Então lançou, aos gritos: “Mais 20 mil soldados para o Iraque? Vão regressar todos em sacos de plástico. Todos!” Estava a falar com alguém? Não. Gritava para quem quisesse ouvir. “Acabaremos também por ir lá parar!” E continuou, sem baixar o volume, num discurso ininterrupto, como se se dirigisse a uma plateia interessada. E talvez fosse o caso.

O homem tinha a barba por fazer e vestia roupas sujas e rotas. Levou escassos segundos a que os passageiros o classificassem mentalmente como um “louco do metro”. Como tantos outros do género, no metro de Lisboa. Entram numa estação, fazem um discurso e saem na seguinte. Ninguém reage, obviamente. Ninguém o interrompe para dizer “desculpe, não concordo inteiramente com esse ponto…”. Também ninguém diz: “Cale-se, que me está a incomodar”. As pessoas evitam até cruzar o olhar com o dele. Se identificasse um interlocutor, o homem poderia desatar a falar para ele, a fazer-lhe perguntas, ou a insultá-lo, o que seria muito embaraçoso. Ou poderia mesmo desferir-lhe um murro certeiro no nariz, caso lhe ocorresse interpretar o silêncio aflito do transeúnte como prova irrefutável da sua conivência com a política de Bush para o Iraque.

Era um louco do metro e portanto o melhor era não ligar. Falou mais um pouco sobre o Iraque e depois passou para a reforma da administração pública em Portugal, não sem antes se deter brevemente no problema do nuclear do Irão. Podia ser maluco, mas não havia dúvidas de que estava muito bem informado. Mais do que as pessoas normais.

Lembrei-me de entrevistas que ouvi do Gato Fedorento ou dos redactores do Contra-Informação, em que descrevem o seu método de trabalho: sentam-se todas as manhãs a uma mesa, com a imprensa do dia, e estudam as notícias e os temas sobre os quais vão depois construir o discurso humorístico. Será que o maluco do metro faz o mesmo? Começa a manhã com uma pesquisa exaustiva em jornais e revistas, na internet, em livros especializados, sublinhando, tirando notas, para depois elaborar o seu discurso louco do dia?

Tenho pensado muito nesta questão. Porque andam os loucos hoje tão bem informados? Por serem loucos? Ou foi a informação que os enlouqueceu? Uma coisa é certa: a demência não impede um discurso articulado e crítico sobre o mundo. Impedi-lo-á a sanidade?

Será a imposição de limites ao horizonte uma condição para a nossa saúde mental?
Ninguém sobreviveria se soubesse de tudo o que se passa no mundo. Hoje, as informações estão disponíveis em doses capazes de nos destruir. Não é possível compreender a sociedade global sem o recurso a teorias da conspiração, projectos terroristas, filosofias paranóicas. O nosso modelo axiológico apenas está preparado para o universo do indivíduo e do seu reduzido ângulo de visão. Não mais. Em todas as épocas há lendas sobre homens que subiram ao topo de uma montanha e enlouqueceram.

Talvez a ignorância seja, portanto, um recurso dos mais aptos. Fechamo-nos, por instinto de sobrevivência. A liberdade tornou-se um handicap evolutivo. Privilégio dos loucos, que só têm a perder uma audiência muda de curiosidade. “Cambada de estúpidos”, rosnou entre dentes o louco do metro antes de se apear na estação seguinte.

Mais informação sobre Paulo Moura aqui.

A açoriana de Grândola e os fundamentalistas do Norte

Entre 1979 e 1989 organizei a antologia O Desporto na Poesia Portuguesa, editada pelos Sindicatos Bancários – Norte, Centro, Sul e Ilhas. Um dos poemas antologiados é de Ivone Chinita e está na página 101. Pois no livro História Natural do futebol de Álvaro Magalhães (Assírio & Alvim) aparece nas páginas 228 e 229 a citação parcial desse poema. Sem qualquer indicação de onde foi retirado e com um erro. O autor chama-lhe escritora açoriana, mas Ivone Chinita nasceu em Grândola, onde está sepultada desde 1983. Na página 235 surge uma nova citação do mesmo poema, mas desta vez nem sequer aparece o nome da autora.

Quando se cita um poema deve referir-se sempre qual o livro do qual esse poema foi retirado. O autor enche sete páginas de notas, mas aqui saltou como gato em telhado de zinco quente.

Noutro livro, com o ambicioso título de A paixão do Povo – História do futebol em Portugal, publicado pela Editora Afrontamento e da autoria de João Nuno Coelho e Francisco Pinheiro, acontece algo parecido. O meu nome foi rasurado na bibliografia, pois sou um dos três co-autores do livro Glória e vida de 3 gigantes, editado em 1995 por «A Bola». Mas na página 692 deste volume aparecem só os nomes de António Simões e Homero Serpa.

Sobre o S. L. e Benfica escrevem os autores: «Decidiu bem quem decidiu pela data oficial referindo-se a 1904 por oposição à de 1908 que essa sim é verdadeira. Só há história com documentos, e não há nenhum documento com data de 1904 a referir-se ao S. L. Benfica». Escrevi uma carta, mas não obtive resposta.

Mas nem tudo é mau. O meu exemplar está autografado pelo Toni e pelo Humberto Coelho. Um com amizade, outro com admiração. E isso tem muito valor.

José do Carmo Francisco

José Cid canta JCF

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Café contigo

Misturas no café os teus sabores
A campo, celeiro e a pomares
Na verdade, vás onde fores
Tudo se modifica ao chegares.

Dispensas o açúcar que te dão
E fica abandonado sobre a mesa
Tens doses de doçura em tua mão
E nos olhos a espuma da beleza.

Mas não dispensas a colher pequena
Capaz de equilibrar a mistura
Entre a força africana tão serena
E a luz tão doce da Estremadura.

Misturas no café o teu sorriso
Que trazes na pele do teu dia
Beber café contigo é o paraíso
E estar na capital da alegria.

José do Carmo Francisco

O jornalista e poeta vem reforçar as hostes aspirínicas. Bem-vindo, Zé do Carmo.

Prazeres da língua – 1

Aqui em casa, no Aspirina, não há ninguém com o periúdo. Somos um blogue masculino. Exorbitantemente masculino.

Mas não somos mediúcres, julgo eu. Haverá, no máximo, quem nos ache miúpes.

A sério. Se souber de mais retorcimentos vocabulares deste tipo, informe o pessoal. Fazemos colecção. Mais: se achar que a nossa língua é «mesmo assim», diga também. Um gajo já está por tudo. Mesmo rilhando os dentes.

Crónica triste para o pobre diabo que trata a neta por você

Quando te encontrei no Jardim da Estrela e me disseste que não tinhas tempo para falar comigo porque estavas a tomar conta da tua neta o que mais me revoltou não foi a tua negativa em continuar uma conversa que nem sequer tinha começado. Foi sim o facto de tratares a tua neta por você. Tu, um pobre diabo que veio um dia lá de uma terrinha perdida na Beira Alta onde não passa o comboio nem a camioneta da carreira nem verdadeiramente se passa nada. Tu que só chegaste a chefe de secção porque conheceste algumas pessoas na Comissão de Trabalhadores e aproveitaste esses conhecimentos para subires na tua carreira. Não sei como não és capaz de perceber que não tiveste berço para essas poses nem para essas falas. Não há na tua família nem vice-reis da Índia nem embaixadores plenipotenciários nem, muito menos, governadores mandados para o Brasil para acertar as contas das cobranças dos quintos do ouro. Tratares a tua neta por você é muito mais do que ridículo. Porque é, na verdade, absurdo e contra a tua natureza. Tu não és um aristocrata. Apenas fizeste uma carreira de burocrata no departamento comercial de um banco à custa do teu cartão partidário, saltaste da Comissão de Trabalhadores para um cargo de chefia mas não tiveste nisso nenhum mérito teu. Apenas aproveitaste a onda da rosa e da mãozinha. Depois vieram os outros e já lá estavas. Por isso ficaste. Tu não és um aristocrata mas sim um pobre diabo perdido numa cidade desconhecida e onde nem nasceste sequer. Não podes tratar a tua neta por você. Para a próxima vez que passares por mim no Jardim da Estrela não digas nada, finge que não me viste. Porque se disseres alguma coisa como a do outro dia eu atiro-te logo para dentro do lago dos patinhos.

José do Carmo Francisco

As silenciosas salas da memória

Fosse pelo que fosse, a verdade é que nesta passagem do ano lembrei-me muito do jornal O Século. Quando se é novo, um ano representa muito pouco na percentagem do vivido. Um miúdo com dez anos, se pensa num ano, esse ano representa um décimo da sua idade. Mas o mesmo miúdo quando chega aos cinquenta já percebe que um ano é apenas um cinquenta avos da sua existência e tudo é mais veloz e fraccionado.

É um facto que a minha casa é muito perto da Rua de O Século, mas se não fosse essa aproximação eu lembrava-me na mesma. Porque quando eu era jovem pensava que o majestoso parque gráfico do jornal O Século nunca iria parar nem, muito menos, morrer. É que, além do jornal propriamente dito, havia as revistas O Século Ilustrado, Vida Mundial e Modas e Bordados – esta, uma revista para senhoras que muitos homens não dispensavam, pois nela escreviam escritoras importantes como Maria Lamas, Maria Ondina Braga ou Maria Judite de Carvalho. E como era assim, eu pensava que tudo aquilo nunca ia acabar. O Século era um mundo que fazia parte da minha vida, mas um dia, de um dia para o outro, deixou de fazer.

Esta fragilidade das coisas fortes, esta inesperada morte de um império de palavras, tudo isto me veio à memória no momento em que um ano mais se despede e um ano novo se apresenta na nossa vida. Agora só existe uma maneira de recuperar essas palavras perdidas. É nas prateleiras da Hemeroteca de Lisboa que as palavras do jornal O Século não morrem e vivem de novo sempre que alguém as recupera do sono do esquecimento. E projectam um pouco de vida e de alegria num lugar onde só a morte e a tristeza dominam as enormes e silenciosas salas da memória.

José do Carmo Francisco

Capítulo vinte, versículo treze

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Fui ver 20,13. Ver um filme português em estreia, e tanto nas bocas do mundo, é luxo a não desprezar levianamente. Para mais, a presença dum desertor da Guerra Colonial sempre enfeita uma sala, sobretudo quando está às moscas, como estava aquela no passado dia 21.

Deixo umas perguntitas para quem viu. Fazem as vezes de outras tantas perplexidades.

1. Em que momento (assim por alto) se deu conta de quem é o protagonista?

2. Em que momento (com mais exactidão) percebeu quem é, ou era, «o» amante?

3. Numa escala até dez, que classificação deu a Marco d´Almeida, o alferes?

4. Agradou-lhe a subtileza bíblica, ou exactamente ela irritou-o (a)?

5. Considera que este filme aponta caminhos recomendáveis para o cinema português?

Pense. Diga. Debata. Esqueça essa chatice, sempre igual, da passagem de ano.

Grande arte, pequenas formas

A «pequena história» é uma arte. Direi mais: não se a julgue uma arte menor. Cada vez que dou com mais um bom cultor dela, vários alarmes soam em mim.

Foi o caso de João Leal, de que conheci o grande talento na matéria, graças a um comentário há dias deixado num «post» abaixo. O seu blogue, Transmissão Especial contém vários contos brevíssimos.

Leia-se o espectacular «A primeira vez» e pasme-se.

Você é fantasma? Eu pago.

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Foi ao ler, na Origem das Espécies, o blogue (um dos) do caro Viegas, este texto da Lusa sobre «escritores-fantasma» que as ideias me vieram em catadupa. Costuma acontecer-me debaixo do chuveiro, com a dificuldade de apontá-las que se imagina, quanto mais de dar-lhes logo seguimento. Desta vez foi a seco.

Parece que há por aí vários e activos «ghost-writers». Nos estudos universitários, na ficção. Devo acrescentar que desconfio, de há muito, de certo e conhecido cronista, de muito imitável estilo. Cada semana, mais me convenço de que anda ali «negro» na costa.

Mas ao que íamos.

Eu tenho um romance, o meu terceiro, parado há vários anos. Há-de chamar-se Deus chega no próximo avião. Falei nele a amigos, e a revista da APE publicou dele, até, as primeiras páginas.

A paragem já deu pretexto a um conto (um gajo tem que continuar nas bocas do mundo), o conto «Um romance perdido», que saiu no Magazine Artes e que a Luísa Costa Gomes disponibilizou aqui. Digo tudo isto porque, se alguém tiver a boa ideia de ler o conto, saberá que o romance anda à volta dum, exacto, dum «escritor-fantasma».

Ora bem, e eu só posso chamar genial ao meu cruzamento, hoje, das duas ideias. É isto: como não consigo achar tempo para prosseguir e acabar o meu romance, já que mil outras coisas importantes me tomam o escasso tempo deste peregrinar pelo vale de lágrimas, eu peço, mas peço instantemente, a algum «fantasma» disponível que tome contacto comigo.

De prazos, de pormenores, de tarifas, essas coisas rasteiras, trataremos depois. Envie já currículo para o email do blogue. Currículo completo, entende-se, sendo indispensável a indicação de actividades anteriores no ramo. Ah, e use pseudónimo. Eu não quero saber quem você é. Escusado acrescentar que nunca nos falaremos, menos ainda veremos.

A literatura nacional lhe ficará grata. Eu não. Pago, calo e recolho os louros.

Coisas que não se desejam a ninguém (2)

Não querendo desfazer, menos ainda comparar…

Mas esta, li-a eu hoje de manhã, num intervalo da publicidade nos ecrãs dos eléctricos cá da aldeia. Contava-se que certo cidadão britânico vai exigir do patrão uma indemnização por certo acidente de trabalho (não especificava) que o tornara viciado em sexo, o que já conduzira ao desentendimento definitivo com a mulher.

Não sei porquê, essa notícia ficou-me. As outras, algumas catastróficas também, esqueci-as.

Não ESTA Espanha

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A «Visão» chega-me no dorso dum muar, o mesmo doce animal que me traz os víveres. Eis porque só hoje li a crónica «O fantasma do iberismo», de António Mega Ferreira, de 16 de Novembro.

Eu leria sempre o Mega, mas o tema gritava-me da página. O pretexto: certa indignação colectiva (que metia acção judicial) contra o iberismo de que o ministro Mário Lino se confessara professante. O cronista goza (e tem direito ao prazer, mas não a este) com o atraso do desagravo: o ministro declarara-se em Abril, e já se estava agora no mês que era.

Ignoro quem seja esse actual «grupo de indignados». Mas convém lembrar que este blogue foi o primeiro âmbito português em que se deu o brado. Fizemo-lo aqui, três dias após a confissão de Lino, pormenorizando-lhe os termos segundo o «Faro de Vigo»:

«Soy profundamente “iberista”, convencido de que España y Portugal tienen por delante un futuro en común porque su historia es también común y su lengua, similar. Soy iberista confeso. Tenemos una historia común, una lengua común y una lengua común. Hay unidad histórica y cultural e Iberia es una realidad que persigue tanto el Gobierno español como el portugués». E acrescentávamos, nós, que haveria por ali alguma «lengua» a mais e, quem sabe, alguma «cultura» a menos.

Mega Ferreira, como Sócrates, oferece larga cobertura ao ministro. Começa por reescrever-lhe generosamente a charla. «O ministro disse» – diz-nos o cronista em Novembro – «que a Ibéria é uma ‘nova realidade’ e que Portugal e Espanha têm tudo a ganhar em entenderem-se no quadro de uma estratégia comum de afirmação no espaço europeu e no contexto internacional».

E concretizará, já só por sua conta, adiante: «Na lógica do mundo globalizado, fatalmente hão-de sobreviver (ou viver melhor) as alianças estratégicas que acrescentem dimensão aos diversos particularismos nacionais».

Um iberismo assim entendido é já outra coisa do que o novíssimo, ou mesmo o tradicional. Não é a fusão de Estados, que uma percentagem pouco exigente de portugueses aceitaria em troca de uma ‘hoja de pago’ viçosa. Também não é a sonhada associação de «povos ibéricos», de estatuto igualitário.

É uma proposta que soa séria, essa das «alianças estratégicas que acrescentem dimensão aos diversos particularismos nacionais», com que, creio também, todos lucraríamos.

Só que a Espanha de Mega Ferreira é uma miragem. E com miragens não convém fazer alianças.

Quando o cronista afirma, tranquilizador, que «nem a Espanha de hoje é a dos ‘castelhanos’», causa-nos arrepios. Porque tudo indica que ela o é. Mesmo comandado às claras por um galego como Rajoy (e às escuras por outros indivíduos, o que é de ciência comum), o PP é um partido profundamente «castelhano», centralista até à medula, defensor duma Espanha governada ‘desde la Meseta’. O partido de Zapatero não o é menos. Mas habita nela alguma maior inteligência. O PSOE chega a falar numa ‘España plural’, e em ocasiões de desbunda lírica mesmo numa ‘Nación de Naciones’. Mas, podendo (e pôde), redigiu um novo Estatut catalão, e foi esse o adoptado nas Cortes de Madrid.

Quem estiver precisado de ainda mais calafrios leia esta inacreditável entrevista com Pío Moa numa estranhíssima (mas, aqui, oh tão útil) Alameda Digital.

Esta é a Espanha real, aquela de que convém manter-nos afastados. É por isso que a tirada de Mega Ferreira – «o iberismo contemporâneo parte da constatação da multipolaridade ibérica» – soa como de um mundo estranho, espectral.

Ao sensato Mega falta, quem o diria, só algum cepticismo.

Venha curar-se aqui!

Será só impressão minha? Pode, claro. Mas vou dizer, ainda assim. Trata-se da caixa de comentários. A nossa. Ou as de outros, onde calho espreitar.

Digamos assim. Quando o blogue é «de causas», quase sempre amáveis, e oportunas, a caixa de comentários é duma respeitabilidade que faria pensar, se não olhássemos para o lado, que o mundo era afinal um oásis, descontraído e estimulante.

Mas quando o blogue não tem causas, como este, está um fulano à mão de semear de uns tipos soturnos, regularmente (mas nem sempre) basto sucintos, que desembestam contra uma novidade que se conta, uma proposta que nos surgiu, uma visão geral do mundo que um conhaque tinha dentro.

Não brilham ali, na intempestiva reacção, um raciocínio, uma chalaça, um cinismo sequer. É só recusa, é só rejeição, é um grito de alma em estado puro.

Constitui, sempre, uma surpresa – e, quase sempre, um susto. Com quando nos fazem uma injustiça, a sensação é esta: «Isto não pode estar a acontecer-me». É a salutar fase da negação, que nos impede a entrada no vórtice do disparate, ali tão convidativo.

Vem, depois, a fase, essa supremamente irónica, da razão. Aquela que nos diz: «Também, meu velho, quem te mandou meter nisto?»

Entretanto, o outro, que até já te esqueceu, está mais perto da cura.

«Faz-me o favor…»

Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supor o que dirá
Tua boca velada
É ouvir-te já.

É ouvir-te melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das caras e dos dias.

Tu és melhor – muito melhor!
Do que tu. Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.

Mário Cesariny
1923-2006

Lisboa 2026?

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À atenção de um ou outro dos 28% de portugueses que se desejariam espanhóis

CARTA DOS DOS DOUS JOVENS ESTUDANTES DA USC [Universidade de Santiago de Compostela] DETIDOS E TORTURADOS EM 21 E 22 DE NOVEMBRO

Ante a gravidade dos factos acontecidos na capital de Galiza entre os dias 21 e 22 de Novembro, Aurélio L. e Iago B., detidos e torturados, queremos relatar o seguinte:

1) Efectivos antidistúrbios coordenados para defender da ira popular internacionalista a charla do ex-ministro dos Asuntos Estrangeiros do Estado de Israel detivérom-nos irregularmente a propósito de presuntos [presumíveis] actos de desobediência e injúrias à autoridade.

Minutos antes de começar a convocatória dumha concentraçom de protesto diante do prédio da Aula socio-cultural da Caixa Galicia onde Shalom Ben-Ami haveria dar umha conferência, dous agentes solicitárom o deslocamento dum carro para a nossa detençom alegando:

a – Ter sido chamados “terroristas” por um de nós. Várias testemunhas presentes defendérom-nos conhecendo que tal feito nunca tivo lugar.

b – Desobediência à autoridade por requerirmos umha justificaçom no momento em que, sem razom algumha, se dirigírom a nós para solicitar-nos identificaçom. Esta petiçom, realizada dum jeito intimidatório e prepotente antes inclusive de ter começado a concentraçom, seria a seguir satisfeita, motivo que nom saciou a sede repressora dos membros da Polícia espanhola.

2) Aproximadamente 20 minutos depois, fomos introduzidos numha carrinha policial compelidos por umha violência desproporcionada em que participárom umha dúzia de efectivos. Estes, arrastando-nos e agredindo-nos com patadas, forçárom-nos sem mediar palavra a penetrar no veículo. Antes de consegui-lo, I.B. foi brutalmente violentado nos seus genitais ao sofrer umha enorme pressom por umha mao policial, enquanto A.L. era espancado e agredido com um cacete com que tentárom forçar-lhe o anus.

3) Umha vez trasladados à esquadra policial, três policias fechárom o garagem no qual se detivera o veículo, deixando-nos ao “cuidado” de três agentes, entre eles os dous que levavam o carro. Após saírmos do veículo, I.B. foi deliberadamente espancado com dous fortes golpes de cacete no lombo e as nádegas, enquanto transcorria o primeiro “cacheio” a que fomos submetidos. O maior dos polícias presentes tivo de intervir exigindo o seu companheiro que se tranquilizasse.

4) Levados à ante-sala dos calabouços, na qual aguardamos quase 5 horas sem ser informados sobre a nossa situaçom, fomos postos baixo vigiláncia, alternativamente desenvolvida por um ou dous agentes. Passadas duas das 5 horas referidas, o polícia antidisturbios que provocou a nossa detençom no centro de Compostela baixou a “visitar-nos” . Ante esta inesperada e agressiva apariçom e, em previsom do que puder ocorrer, os agentes encarregados de custodiar-nos abandonárom cobarde e cumplicemente a sala.

A “intervençom” desta auténtica besta supujo que A.L. fosse agitado e insultado, trás o qual o agresor se dirigiu a I.B., a quem propinou três punhadas na cabeça com a mao direita, a qual enfundara previamente numha luva de lá, mantendo ao descoberto a mao esquerda, o que pode dar ideia da intençom com que acudiu onda nós. Acompanhando a gesta de horror com insultos e ameaças consistentes em frasses como “enséñame ahora la lengua que te la troceo” ou “esta noche la vais a pasar en los calabozos. Iré a visitaros para meteros un cuerno por el culo. Preparaos”. Ao abandonar o soto, e acreditando a natureza política das agressons, chamou-nos “desgraciados, bobos, terroristas” .

5) Sobre as 22,30 horas, após o sofrimento padecido, e ante os flagrantes danos causados em genitais, costas, nádegas e cabeça, decidimos solicitar atençom médica para I.B. Aliás, solicitamos o Habeas Corpus devido ao intolerável procedimento da detençom seguido pola Polícia espanhola em todo o momento, interpretado ao ritmo de falsidades, insultos, ameaças e agressons. Se a primeira petiçom foi demorada até as 2 da madrugada, a segunda foi denegada polo juíz, que nom achou irregularidades no procedimento.

6) Um de nós, a tratamento médico crónico de dous órgaos vitais, dirigiu-se à polícia com a finalidade de lhe ser facilitada a medicaçom precisa. A reacçom, semelhante às anteriores, foi afirmar que “isso fai-se num momento”. Duas horas depois ninguém perguntara sequer qual era a medicaçom necessária, malia a nossa permanente insistência sobre este aspecto. A medicaçom, solicitada às 22.30 para ser tomada às 23 horas, foi facilitada de jeito incompleto por serviços hospitalários às 03.30 da madrugada.

7) Finalmente informados, por volta das 01.00 horas da madrugada da nossa situaçom de detidos em qualidade de 4 delitos atribuídos (danos, desordens públicas, resitência à autoridade e atentado), fomos internados em calabouços, onde permanecemos a noite toda até às 09.00 da manhá sermos despertados para falar com o advogado e passar a instruçom.

Dito o qual, A.L. e I.B. desejamos pôr em conhecimento de todo democrata galego a detençom irregular de que fomos vítimas e, particularmente, a tortura impingida durante o tempo que estivemos custodiados pola polícia.

Achamos doloroso termos sido sujeitos passivos de violaçons tam brutais mas, ante todo, achamos intolerável que na Galiza do século XXI, uniformados espanhóis se dignem a torturar em dependências da Polícia espanhola jovens galegos pola sua condiçom política. Queremos rematar reconhecendo o trabalho mais importante do processo. É esse trabalho que fixo a gente desde o primeiro momento em que fomos levados polo ar. Ainda agora, escrevendo estas linhas, lembramos com emoçom o momento no qual os concetrados e concentradas rechaçárom a violência empregada e berrárom desde a injustiça contra os armados.

Muito obrigado a todas as pessoas que saírom o mesmo dia dos feitos à rua a denunciar o acontecido, a quem se concentrou até a nossa posta em liberdade, a todas as organizaçons e colectivos que tirárom comunicados, e a todas as pessoas que se interessárom por nós. Agora mais do que nunca decatamo-nos do importante de construirmos um movimento social que ante estes feitos nom tem mais regras das que a democracia. Por todo isto, apelamos a massa galega comprometida com os direitos fundamentais, a tomar nota do relatado e agir em conseqüência.

CONTRA A REPRESSOM, MOBILIZAÇOM!
NENGUMHA AGRESSOM SEM RESPOSTA!
TORTURAS NA GALIZA NUNCA MAIS!
FORA AS FORÇAS DE OCUPAÇOM!!

Isto é Santiago de Compostela em 2006. Você anseia por isto em Lisboa em 2026? Faz-lhe muita falta uma Polícia de Choque espanhola? Óptimo. Avise-nos já. São vinte belos anos para nos livrarmos de você.

TLEBS, a fatal

A nova Terminologia Gramatical, a soturna TLEBS, é um caso banal e entediante de correcção política. Como qualquer outra, também esta provém duma grande insegurança interior. A fim de acalmar os demónios, o indivíduo aumenta a precisão formulativa, uma mesma, sem tirar nem pôr, que faz dum «surdo» um «ouvinte alternativo».

Num artigo no «Expresso» de hoje, Miguel Sousa Tavares atira-se aos linguistas. Errado, errado. A Tlebs nada tem a ver com a linguística. É, como afloração do politicamente correcto, o mais puro «eduquês». O tal. O de sempre.

Ó excelso Ministério! Mas isto, o mando dos ayatolas, não vai parar nunca?