Pedro Delille esteve no programa “360º” da RTP3, na passada quarta-feira. Antes de irmos ao que lá foi dito, partilho um enigma: que é feito da segunda parte? Os interessados poderão fazer o que fiz, procurar por ela na página do programa. Dos 16 que lá estão neste momento, quase todos têm duas ou mais partes disponíveis. Um dos programas só tem um vídeo por ter sido mais curto, outro por condensar num vídeo mais longo o todo dessa edição. E depois temos o vídeo onde se discutiu a providência cautelar contra a Cofina por esta publicar informações que estão sob segredo de justiça no Processo Marquês. Este termina com o anúncio do intervalo e do regresso para a continuação da conversa. Só que essa parte não está disponível. Porquê?
Pode ter sido por falha técnica. Seria uma grande coincidência, posto que essa segunda parte tem muita importância tanto para o conhecimento público do que é possível acompanhar do caso como para a avaliação das pessoas que estavam presentes em diálogo, mas as coincidências acontecem por acaso, né? Assim como quando apanhavam Sócrates a falar antes dos debates televisivos começarem ou a preparar-se para ser filmado antes das comunicações ao País e se exploravam essas cenas semioticamente obscenas. Coincidências. Alguém se esquecia, quando se tratava de Sócrates, de carregar no botão, ou se enganava no botão, e lá se exibia o bandido sem o disfarce da pose oficial para que fosse humilhado. Contudo, e se a falta desta segunda parte onde o Delille disse e ouviu das boas não tiver sido coincidência? Nesse caso, algo de muito grave teria acontecido. Irei entrar em contacto com o Provedor da RTP, solicitando-lhe que se disponibilize o acesso a esse segmento deste “360º” mesmo que ninguém apareça a explicar o fenómeno. É que também sou daqueles que adoram a liberdade.
Ora, neste dia 28, antes do esclarecimento do tribunal em causa, ainda a gente séria do jornalismo tratava a providência cautelar como um escandaloso acto de censura a merecer o mais fogoso e assanhado repúdio. Foi isso que José Rodrigues dos Santos, Francisco Teixeira da Mota, Ana Luísa Rodrigues e Joaquim Vieira disseram ao Pedro, nalguns casos juntando a essa denúncia essoutra de ser Sócrates um tirano que ambiciona acabar com a liberdade de imprensa, a liberdade de expressão, a democracia e, já sem surpresa, com a civilização Ocidental no seu todo, assim o deixem. A isto respondeu o Pedro com a reclamação dos direitos que assistem aos alvos das pulhices e dos crimes da Cofina. Não teve qualquer sucesso, pelo contrário, tendo o programa terminado com o Rodrigues dos Santos a apelar à desobediência à Lei dos jornalistas da Cofina de forma a continuarem com o que andaram a fazer até agora. O Dâmaso terá aplaudido o homem da sopa de peixe que foi “nobre” à moda do esgoto a céu aberto.
Ainda na 1º parte, Delille teve a oportunidade de explicar como é que o CM fez esta capa:

De acordo com a versão do advogado de Sócrates, tal resultou de uma escuta onde Inês do Rosário, mulher de Carlos Santos Silva, estava a chorar ao telefone enquanto lia para uma amiga as notícias de jornais onde apareciam as suspeitas sobre o seu marido. Estando a repetir o que lia, e lendo que o dinheiro do seu marido era de Sócrates ou que o motorista fazia isto e aquilo, fora de contexto isso equivale a ter sido ela a confirmar as suspeitas posto que as reproduzia ipsis verbis. A ser verdadeira esta explicação, e que saiba o CM ainda não desmentiu Delille, a canalhice que se pratica a mando do Octávio Ribeiro é de uma violência que não imaginávamos possível na imprensa portuguesa. E de nada valerá ao pasquim invocar que esteve apenas a reproduzir o que encontrou no processo, sendo a interpretação da escuta da responsabilidade do Ministério Público, pois foi precisamente para preservar a privacidade dos envolvidos e evitar o dano de um eventual erro desses que se colocaram sob segredo de justiça esses documentos. O CM, ao usar as informações em causa, não está a servir o interesse do público porra nenhuma, a menos que se trate de um público que ambiciona ser cúmplice de criminosos. O CM está é a explorar num registo sensacionalista aquilo que neste momento é parte de um processo judicial cujo desfecho é desconhecido. Nesse sentido, assume um papel de apoio à acusação, veiculando e promovendo as versões mais caluniosas da investigação como se elas fossem o resultado final da aplicação da Justiça. Pelo caminho, destrói quanto possa do bom nome dos seus alvos e terceiros apanhados em escutas por laços familiares, profissionais, de amizade ou outros com os arguidos.
Na parte em falta, Delille entra em diálogo com um sorridente Joaquim Vieira que defendia a legitimidade do esgoto para dizer o que bem entendesse e como quisesse acerca do caso. No entanto, este Vieira amante da liberdade de imprensa ficou em silêncio quando o advogado lhe perguntou se ele tinha conhecimento de alguma ilegalidade que Sócrates tivesse cometido. Pelos vistos, o sorridente Vieira não passava de mais um leitor fã da pasquinagem. Essa foi a ocasião para Delille deixar um eloquente protesto contra a dualidade de critérios com que o Processo Marquês é tratado na comunicação social e na sociedade. Na prática, aceita-se qualquer suspeita acusatória como se resultasse de um facto estabelecido a que já só falta apensar uma pena judicial. Ao invés, toma-se qualquer declaração e acção da defesa de Sócrates como uma manobra para fugir à Lei. CM, Sol, Sábado, Observador, políticos do PSD e CDS, e até o primeiro-ministro que já falou do caso no mesmo registo, pretendem encher o espaço público de uma atitude persecutória e intolerante para com o próprio direito à defesa de Sócrates. Estamos a assistir a um linchamento.
Dois dias depois deste programa, Francisco Teixeira da Mota publicou Os seis telemóveis de José Sócrates. Vale bem a pena ler. Nele defende a ideia de que Sócrates sempre que recorre à Justiça está apenas a revelar quão tirano realmente é. Como político, não pode ter os mesmos direitos dos restantes cidadãos, pelo que se trata de comer e calar, declara afiando a guilhotina. As acusações de que for alvo, sejam elas quais forem, não passam do saudável “escrutínio” aos malandros dos políticos. Mas este Chico vai ainda mais longe, reclama o direito a saber o que fez ou não fez Sócrates na sua privacidade e intimidade. As suas últimas palavras são estas:
"Faz parte do direito à informação os portugueses poderem saber, por exemplo, que o ex-primeiro-ministro utilizava seis telemóveis. Se o fazia por razões lúdicas ou para esconder actividades criminais, poderá esclarecê-lo se quiser, mas temos todo o direito de o saber, como temos todo o direito de saber dos meandros de um círculo de amizades em que circulava despreocupadamente tanto, tanto dinheiro. Mesmo que não seja crime."
Curiosamente, Pedro Delille disse, no programa em que participou Teixeira da Mota, ser mentira que Sócrates tenha usado 6 telemóveis. Porém, o especialista em liberdade de expressão do Público, menos de 48 horas depois, dá como garantido que esse é um facto comprovado. Será que ele sabe que o advogado de Sócrates foi para a RTP mentir à boca cheia? Mas se sabe, como o soube? Questões a que não irá responder, e que ninguém terá oportunidade de lhe fazer. Entretanto, pregou mais um prego no caixão do respeito pelo Estado de direito e pela decência neste caso. É que mesmo que Sócrates venha a ser condenado, seja lá pelo que for, esta febre justicialista onde os fins justificam os meios continuará a ser uma regressão a um estado de animalidade em que se pretende impor a lei do mais forte. No confronto com um Ministério Público e um juiz que, por actos e omissões, permitem a continuação da sistemática campanha negra em que Sócrates se vê envolvido desde o Freeport, é fácil de aferir onde está a força e a fraqueza. O apelo populista mais rasteiro vindo de um jurista deste calibre e preocupações é quase tão impressionante como os 6, 66 ou 666 telemóveis da Besta.