Aviso aos pacientes: este blogue é antianalgésico, pirético e inflamatório. Em caso de agravamento dos sintomas, escreva aos enfermeiros de plantão.
Apenas para administração interna; o fabricante não se responsabiliza por usos incorrectos deste fármaco.

Eu distorcido pelo tempo

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O jornalista e poeta José do Carmo Francisco enviou-nos este texto sobre o recente romance O Cemitério de pianos de José Luís Peixoto. É com prazer que aqui o publicamos.

Nos Jogos Olímpicos de 1912 em Estocolmo, o maratonista português Francisco Lázaro morreu ao quilómetro trinta. Era carpinteiro numa oficina do Bairro Alto e vivia em Benfica. A partir deste «drama em gente», José Luís Peixoto organiza uma ficção na qual se permite algumas fugas ao verosímil. Por isso há passeios em Monsanto, há a telefonia a tocar, há semáforos e há telefones na casa do carpinteiro ou seja quatro coisas que não existiam em 1912.

Mas o que José Luís Peixoto alcança é uma ponte entre a realidade real de um carpinteiro atleta de 1912 e uma família dum certo tempo português. Uma família onde os alcatruzes da vida colocam amor e morte em doses iguais, onde se respira o verso dum folheto. O verso é o seguinte: «enquanto um de nós estiver vivo seremos sempre cinco». Tal como num poema ou numa oração, as palavras de José Luís Peixoto ligam de novo duas realidades que o tempo separou. As páginas deste livro são um encantatório ponto de encontro entre verdade e ficção. Mas sem equívocos.

O narrador avisa: «O tempo, conforme um muro, uma torre, qualquer construção, faz com que deixe de haver diferenças entre a verdade e a mentira. O tempo mistura a verdade com a mentira. Aquilo que aconteceu mistura-se com aquilo que eu quero que tenha acontecido e com aquilo que contaram que me aconteceu. A minha memória não é minha. A minha memória sou eu distorcido pelo tempo e misturado comigo próprio: com o meu medo, com a minha culpa, com o meu arrependimento».

Este Cemitério de pianos é a inesperada, fascinante e impressiva metáfora do Tempo Português do século XX. E a prova de que a única resposta à morte só pode ser o amor.

José do Carmo Francisco

Actualização
Este texto apareceu já (devo a informação a Rui Almeida, ver caixa de comentários, com a nossa resposta) no blogue Estrada do Alicerce, de Ruy Ventura.

Um bom e infeliz Natal

22 de Dezembro, Lisboa, 18 horas e tal, agência de comunicação, pessoas sofisticadas, entre os vinte e os quarenta anos. Quem vai saindo despede-se com um “Bom Natal!”. A emoção é forçada, resulta em falsete, nalguns casos raia a jeremiada. Outros, os extrovertidos, vencem rendendo-se: soltam a voz, soltam o canastrão, soltam a franga: cantam. [horror!] E todos desejam o mesmo. A todos. Um bom Natal.

26 e 27 de Dezembro, perto do Tejo, 10 horas e tal, 11 horas e tal, meio-dia coiso e tal, agência sofisticada, pessoas que trabalham em comunicação, alguns nos quarenta, muitos nos trinta, vários nos vinte. Quem chega, e quem cruza, cumprimenta com a pergunta “Então o Natal, foi bom?”. A emoção é um fardo, um esgar. As palavras queimam os lábios, saem de jacto e trespassam o ouvinte. Ninguém presta atenção à resposta. As respostas talvez nem tenham som, mesmo aquelas que foram vocalizadas. Responder o quê? É mais fácil dissertar sobre o sentido antepenúltimo da existência.

Apenas por causa desta farsa natalícia, faço uma concessão à felicidade. Porque o problema nasce de se ter trocado uma fórmula testada durante séculos — o “Feliz Natal” — por um exotismo recente que está a ser origem de tragédia sociológica. Naquele tempo, de feliz memória, não lembraria a ninguém perguntar se o Natal tinha sido feliz. A felicidade tem essa tão aliviante qualidade: arrasta um pudor, ou um fastio, que anula a curiosidade, impõe sacro respeito. E desejar “Feliz Natal” gera fenómenos miméticos, psicossomatismos saudáveis por movimento associativo. O pessoal, nesses segundos elocutórios, ofusca-se numa hiperbólica e disforme encenação da felicidade — que é consolo, júbilo. Mas quando se dá como bitola o adjectivo “bom”, tudo fica reduzido a uma escala, obriga à mensuração. Porque o “bom” é maralha, anda metido com o “melhor”, o “mediano”, o “sofrível”, o “excelente”, o “fantástico”, o “medíocre” e até o bera do “mau”. Fica difícil, não nos façam escolher.

Louvada seja a felicidade, uma só vez ao ano. Para o resto do calendário, estão a valer as palavras de Flaubert, carta a Louise Colet em 1846, que permanecem definitivas:

Etre bête, égoïste, et avoir une bonne santé, voilà les trois conditions voulues pour être heureux ; mais si la première nous manque, tout est perdu.

O Estado da Nação

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A economia portuguesa é naturalmente próspera, graças aos recursos naturais do país, designadamente, ao petróleo, à energia hidroeléctrica, ao gás natural e, mais que tudo, à classe trabalhadora, com natural destaque para os funcionários públicos (a nossa força de trabalho é altamente qualificada, especializada e interessada – trabalhadora na verdadeira acepção da palavra, portanto).

Portugal é o país que apresenta a maior igualdade entre sexos, menos pobreza e desigualdades sociais. 99 por cento da população pertence à classe média.

O nosso país possui também a única economia mundial que não atravessou uma recessão e continua a viver praticamente em pleno emprego.

Somos o primeiro maior exportador mundial de petróleo e de gás natural, com reservas conhecidas para cerca de 1000 anos.

O Estado português, graças aos recursos naturais acima referidos, dá lucros fenomenais. O excedente estatal vai nos 90 por cento, equivalente a mais de um terço do Orçamento de Estado norueguês (apenas para fazer alusão a um dos menos afortunados).

Para além do mais, e consequência de quase tudo o que acima ficou dito, somos o único país do hemisfério ocidental sem dívida externa.

Por tudo isto, não se percebe que raio passou pela cabeça de Rui Rio quando se lembrou de negar a tolerância de ponto aos trabalhadores da Câmara do Porto no dia de hoje (ainda cheira a Natal, caramba!), com as fracas desculpas de que se trata de “um dia normal de trabalho para o sector privado que até precisa dos serviços da autarquia” e de que, pasme-se, tal medida, ajudará à “construção de um país solidário, mais justo e competitivo”. Ainda mais, caramba?

Cá eu entendo que não será um dia de trabalho a mais que marcará a diferença. De resto, o que é que o homem quer dizer com “país mais competitivo”? Que raio está ele a insinuar? Que não estamos assim tão bem?

Desvarios inexplicáveis, isso sim, mesmo porque, da forma como por cá se trabalha, e atendendo à pujança da economia, urge, isso sim, pugnar pela semana de trabalho de dois dias – e intercalados que é para possibilitar aos esforçados trabalhadores portugueses a possibilidade de fazerem ponte.

Felizmente, restam os esclarecidos que, pondo de parte qualquer tipo de demagogia, não hesitam em defender os reais interesses do nosso afortunado país. Ainda que isso não seja popular e lhes possa vir a custar votos.

Gigas

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A presença de Freitas do Amaral na RTP comoveu-me. Falo de presença, e não de entrevista, porque seria indiferente ter tido outro jornalista ou outro elenco de questões. Freitas é igual a si próprio, o que o levou para o percurso heterodoxo que incomoda tanta gente. E que o incomoda a ele. E que me comoveu.

Da direita à esquerda, da autarquia ao Governo, o tipo de político mais frequente é um misto de manha, pesporrência e más companhias. O “sistema” está disponível para observação e estudo atento nas juventudes partidárias, as quais servem para fazer a triagem dos eticamente “adaptáveis” ou “versáteis”: permitem ensaiar futuros papéis sem risco de causar prejuízo eleitoral e levam os neófitos a iniciarem-se nos benefícios da carreira política; havendo abundância de opções laborais, confortavelmente remuneradas, para entreter os rapazes-boys. Mas ainda mais embriagante do que a materializada segurança financeira e social é, ui!, a inefável sensação de impunidade. O Estado e seus recursos, a Lei e a Ordem, aparecem sarapintados a duas ou três cores (não mais, não mais…) nas pupilas dos políticos de profissão, permitindo localizar com rigor as zonas de protecção e influência. E os almoços e jantares, as festas e eventos, os aniversários e casamentos, vão selando outras negociações com as cores concorrentes. Todos ganham, desde que sejam discretos, porque todos procuram exactamente o mesmo: um sistema alternativo — e muito mais eficaz e eficiente, porque muito mais controlado e restrito — de redistribuição da riqueza.

Ora, Freitas, num passo do seu testemunho, disse que é do a-b-c da política começar os preparativos para a reeleição logo a partir do momento em que se é eleito. E disse-o com a impaciência alegre de quem explica a uma criança como usar os talheres à mesa. Este nada no meio do discurso, que nada suscitou na jornalista, é na sua cândida formulação um curso inteiro de ciência política. Se o político deve, em boa prática disciplinar ou artística, tentar garantir a reeleição, dai decorre que essa avidez é inevitavelmente o seu maior objectivo político e o primeiro do seu programa. Porém, como o político reconhece a desvantagem de assumir publicamente esta regra tácita da sua actividade, não a vai comunicar ao eleitorado, nem a admite em caso algum se calhar ser interrogado. Tem, então, de mentir; isto é, mente ainda mais alucinadamente.

Eis que vi Freitas do Amaral como nunca o tinha visto antes. Um homem a carregar peso dilacerante às costas, as quais se mostravam fracas para tal fardo, tanto física como moralmente. Porque nele coexistiam, em paridade, a estátua idealista e o cimento realista, o projecto de serviço e o plano de poder, a ilusão criativa e a desilusão pragmática, a identidade e a tentação. Como tal, foi supinamente educativo colher a ambivalência com que falou de Cavaco Silva. E o mais extraordinário, dentro desse extraordinário registo, consistiu nisso da genuína gratidão se saber, em concomitância, maquiavelicamente traída. Falta um coevo Shakespeare para esta tragédia.

Comove-me a transparência deste homem, que é coragem. Comove-me a sua grandeza, que é verdade. Comovo-me pelo falhanço da sua ambição, com o acerto da sua vida.

Que futuro para o pretérito perfeito?

Agora que todos, incluindo bravos ateus e petrificados marxistas, estão submergidos pelo melífluo tsunami consumista do Natal, e ainda menor é a disposição para blogues e seu cortejo de irrelevâncias, parece-me o tempo próprio para partilhar uma raiva cada vez mais quotidiana; e talvez bizarra para a catatónica maioria dos meus patrícios. Trata-se do take over hostil que o presente do indicativo vem fazendo ao pretérito perfeito do mesmo. Posso estar douradamente enganado, sugerindo que o foco da epidemia se situa algures na região do Porto e é corrupção amplificada pelos dirigentes futebolísticos invictos, mas em muito a praga ultrapassa essa fauna e já invade outrora imaculados santuários. A gota de fel foi ter constatado, ontem, que o vírus chegou à TSF, tendo o locutor (jornalista?…) largado um falamos quando o sentido temporal da acção obrigava a um falámos. Uma vez que está em causa a TSF do Fernando Alves, implacável capataz do rigor gramatical da sua equipa (ou assim era, em época não tão distante), é caso para ficarmos apavorados. Fenómenos há assim na oralidade, em que o desvio, de tão frequente, perverte a própria capacidade de discernir a norma. Língua viva, óptimo, mas excesso de vida é letal — ou será que andamos a querer destruir o que andámos oito séculos a criar?

Tradução com rabo de fora

Vem o “Público” de hoje com um artigo sobre o desenlace da batalha legal que tem oposto o antigo organista dos Procol Harum aos declarados autores do vetusto hit “A Whiter Shade of Pale”.
A linhas tantas do luso artigo, surge a intrigante frase “cujo acompanhamento se baseia em vários trabalhos de Johann Sebastian Bach’s works, incluindo Air on a G String”. Assim mesmo, com a entrada intempestiva de palavras inglesas e o adeus ao solfejo. Seguindo pistas do Google, não foi difícil dar com este artigo e, sobretudo, com este. Ah; a prosa em idioma misto está assinada por um jornalista português.

Micro-causa

Ouvi a notícia e não quis acreditar: a direcção da Antena 2 decidiu proibir Jorge Rodrigues, o autor e animador do programa Ritornello, de fazer entrevistas a convidados portugueses. Se for verdade (ainda me custa crer…), trata-se de um caso de censura explícita e de um atentado ao serviço público que Jorge Rodrigues vem prestando há muitos anos, ao fim da tarde, na rádio estatal.
Deixo-vos aqui um texto sobre o “caso”, assinado pelo compositor António Chagas Rosa:

»Apoio ao Ritornello

O programa Ritornello da Radiodifusão Portuguesa, da autoria de Jorge Rodrigues, é provavelmente o programa de maior audiência de toda a Antena 2. O Ritornello é produzido há mais de 10 anos com uma imaginação, diversidade, inteligência, sentido formativo e informativo tais que se tornou, na prática, uma referência incontornável para todos os amantes da música dita erudita em Portugal.
Mas não só da música. A poesia, o teatro, a literatura, a dança e a cultura portuguesa, em geral, circulam no Ritornello como numa grande coreografia, cruzando-se através da temática de cada programa – criteriosamente escolhida pelo seu autor – e por meio dos convidados que nele têm tido voz. Ao longo dos últimos 10 anos, mais de 2000 individualidades, nacionais e estrangeiras, foram entrevistadas por Jorge Rodrigues, permanecendo o testemunho de muitos gravado na memória dos portugueses.
Recentemente, alegadamente por conduzir entrevistas desinteressantes (!), a direcção da Antena 2 proibiu Jorge Rodrigues de continuar a entrevistar convidados portugueses. Ficam assim excluidos do programa as vozes de José Saramago, de Agustina Bessa Luís, de Paula Rego, de Maria João Pires, etc.,etc… Sob qualquer ângulo que se observe, a medida é insólita e obtusa, fazendo lembrar tempos dos quais Portugal se libertou com dificuldade.
Que serviço público é este que proíbe a voz dos artistas e intelectuais portugueses no programa de maior prestígio de toda a Antena 2? Logo aquele que mais dinamicamente tem contribuido para manter os ouvintes, directa ou indirectamente interessados, ao corrente das causas culturais portuguesas! O mérito de Jorge Rodrigues deveria ser premiado por ser do interesse cultural nacional e não obstruído desta forma ridícula.
Se discorda desta proibição e se acha que os artistas e intelectuais portugueses merecem continuar a ser entrevistados no Ritornello, por favor divulgue esta informação.»

Quem quiser assinar uma petição contra este absurdo, pode fazê-lo aqui.

Um estranho caso de amnésia

Em entrevista ao DN, a propósito do lançamento do filme 20, 13 (estreia hoje), diz o realizador Joaquim Leitão:

«(…) acho que não temos nada que ter vergonha daquilo [Guerra Colonial]. Evidentemente que há episódios menos dignos, mas não há nenhuma guerra em que não haja episódios menos dignos (…)»

Para Joaquim Leitão só tenho uma palavra: Wiriamu.

Grande arte, pequenas formas

A «pequena história» é uma arte. Direi mais: não se a julgue uma arte menor. Cada vez que dou com mais um bom cultor dela, vários alarmes soam em mim.

Foi o caso de João Leal, de que conheci o grande talento na matéria, graças a um comentário há dias deixado num «post» abaixo. O seu blogue, Transmissão Especial contém vários contos brevíssimos.

Leia-se o espectacular «A primeira vez» e pasme-se.

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